30.11.06

A sorte do encontro


Na face dos que se mostram vê-se às vezes o anseio de uma jornada perdida, frustrada ou inacabada – a jornada que se desenha na busca do outro. Que de forma geral, quase sempre se perde ou se frustra, e nunca parece ter fim, porque o outro que se procura não se define, não vem da soma das nossas expectativas, nem é o que sobra das desilusões.

A rede das relações humanas é confusa, e se complica ainda mais na teia cheia de tramas do tempo. Um prato feito para os contadores de histórias, com sabores e dissabores para quem as vive. E por isso, Vinícius: o encontro na vida é arte, já que a vida é desencontro. O poeta da paixão falava com a experiência da doçura e da amargura, de quem se encantava pelas pessoas tão facilmente quanto se desencantava – pelo menos, fosse infinito o encanto, enquanto durasse.

Então o encontro é sorte, ainda que seja arte prepará-lo, permiti-lo. O acaso ronda as “almas gêmeas”, mas você mora em São Paulo e eu, no interior da França! Ou você está ali na esquina, mas não tivemos a chance de um esbarrão de cinema, no lugar preciso, na hora exata. O encontro tem seu momento certo, onde é ingênuo e forte – ali ele é fruto da sorte – e o dia seguinte do encontro, menos ingênuo e mais fraco, onde o esforço é necessário, a arte sobressai.

O momento certo, contudo, não é o fortuito episódio. Está mais para uma conjunção de mistérios – dos astros, das nuvens, do ângulo da luz, daquilo que preferir – aliada a uma disposição dos espíritos que se cruzam e, de repente, se acham. O momento certo até dura, portanto.

Porém convém não tomar duração por eternidade, inclinação bem freqüente, acentuada defronte da sorte.


Você é tão bonito! (Je vous trouve três beau, França, 2006)
Direção: Isabelle Mergault
Com Michel Blanc e Medeea Marinescu
Destaque do 5º Festival Varilux do Cinema Francês
Em cartaz no Cinema da Fundação neste final de semana.

4.11.06

Na encruzilhada outra solidão



Em cartaz - O menino joga sozinho o futebol de botão. O velho acorda sem ninguém. O jovem picha os muros do país, um país que se distrai com a Copa na TV. A solidão dos encontros, muda, serena, o hábito e os costumes trazidos de longe, esquecidos na memória.

Enquanto é infinita, a infância sai recolhendo os indícios do mundo no afã de aprender, abandonando os restos percebidos sem pensar no tempo gasto no gesto repetido e no medo daquilo que nem vê.

A vida aberta em mil vias destoa da lentidão da velhice. A pressa é inimiga da idade que não tem prazo de validade porque hoje foi ontem, um agora remexido mal se livra do antes, e amanhã é mais distante que os dias que povoam o presente.

Durante a jornada, uma revolta se levanta contra a opressão e a vilania. Mas é só uma revolta no meio de tantas tiranias... Até que a liberdade tardia retorne, a diferença dá-se os braços e se defende como pode.

Nos idos da ditadura da história a ditadura do tempo promove abraços inusitados na encruzilhada da solidão. Outros olhares perdidos, outros temores na carne, outros consolos no coração. O estranhamento é idêntico, contudo, e se estampa na face da multidão que grita alto, a cada gol, como uma só voz – como se não fosse uma voz só.

O ano em que meus pais saíram de férias (Brasil, 2006)
Direção: Cao Hamburger
Com Germano Haiut, Michel Joelsas, Liliana Castro e Caio Blat

O grande fardo


Seguimos atrás de compensações diante do abismo acima de nós. O instante eterno de um piscar de olhos nos força a tecer inversas comparações, inventar opostos contra a solidão.

Sentimos que os olhos abertos não contam toda a verdade, tem que haver mais por trás do mundo visto-criado-pela-visão. Assim o que vemos não é real pois a realidade não vale quando não basta.

Queremos nos livrar do peso existencial. Construir algo que faça mais sentido que um universo tão silencioso quanto isolada parece a nossa posição nele. Queremos desfazer os mitos científicos e voltar a ler nas paredes frias da caverna os rabiscos que deixamos para nós mesmos.

Celebramos ora a prisão do corpo, ora a liberdade da alma – como se um não fosse livre e prisioneira a outra, vez nenhuma. A poesia concreta, tangível, abstraímos do mesmo mundo negado... Somos seres, sim, insustentáveis, não entendemos o que se passa.

Como a vida pode ser leve ante o peso de tudo, a nossa consciência do que gira em volta trata de esquecer uma consagrada irrelevância no concerto para trilhões de instrumentos que mal conseguimos escutar.

De repente, a morte. De repente, a lembrança: o sangue tem um caminho a trilhar. Cada organismo é matéria diferenciada em esforço insondável, ínfimo ato no meio de movimentos grandiosos (invisíveis) que nos conduzem de lá pra cá e de cá pra lá.

O problema é que a acolhida da consciência pela vida soa inexata e incompleta – a morte, vivida, dada à consciência, sempre é violenta, agressão gratuita ao ser que, em sua leveza, brincava.

Morrer, tal como matar o outro em nós, na morte próxima: esse é o fardo insustentável.


A insustentável leveza do ser (EUA, 1988)
Direção: Philip Kaufman
Roteiro: Jean-Claude Carrière, baseado no romance de Milan Kundera
Com Daniel Day-Lewis, Juliette Binoche e Lena Olin

27.10.06

Um preço alto demais


Acinte ao ciúme que cega, seus olhos se fecham para sempre após o vislumbre do assombro. Seu impetuoso sorriso se caricatura na face da morte brutal: o assassinato feroz rasga-lhe a boca, parte-lhe o corpo e lhe esvazia o sangue, como se isso bastasse para deformar a beleza. Na invasão do belo pelo atroz, a percepção desfigurada rearruma, pelo avesso, o real.

Aquilo que assume a perfeição é a soma ou ausência de valores idealizados. Sobre o olhar estranho que contempla antes o alvo da destruição, a máscara fúnebre de um sorriso morto é o retrato do choque de extremos que pode ser apontado como culpado.

Na ponta em que é soma, o perfeito é o equilíbrio que encanta, até apazigua os espíritos na busca da forma. Na outra ponta, em que é nada, a perfeição é desconstruída do mundo, sendo sua conquista um obsessivo exercício de subtração – de forma e conteúdo, signos e sentidos. Por isso a beleza clássica é simétrica, e o perfeito niilismo, feio desde a fonte, é a falta de parâmetros que nega a própria perfeição.

Em que medida o feio é afrontado, o disforme aviltado e a sombra, insultada, diante de seu oposto? Quando a imagem banida do espelho se reflete do lado de fora, a vida animada se recorda do torpe destino – ou simplesmente acende, dentro de si, a fogueira doentia da inveja que alimenta as chamas da frustração.

A mesma medida humana habita a paixão e a violência passional. E assim como a paixão pode criar raízes longe do objeto de desejo, os crimes bárbaros lidos como passionais nem sempre “se explicam” pela proximidade entre criminoso e vítima. Nestes casos, a beleza aparece como o estopim do ato insano e estúpido, onde a inocência paga o preço da existência – desde que seja bela.

A dália negra (Alemanha/EUA, 2006)
Direção: Brian De Palma
Com Mia Kirshner, Scarlett Johansson e Hilary Swank.

16.10.06

O homem veio do pinguim?

A Marcha do Imperador é um filme comovente porque trata os bichos como gente. Mas além da fantasia, a luta dos pingüins pela sobrevivência é um ótimo lembrete de como funciona a natureza em torno do princípio básico da vida.

Milagre ou acaso, desde que flores e frutos brotaram por aqui, é travada uma luta feroz entre os filhos da natureza por hegemonia e permanência. O que está em jogo na guerra natural não é a harmonia ambiental – é do caos elementar que surge a vida, e do ponto de vista de cada espécie, o que se busca a todo custo é o privilégio da hereditariedade: a imortalidade do DNA, eis o que interessa.

É curioso que o sucesso francês de bilheteria tenha sido usado pelos criacionistas americanos como bandeira antidarwinista. Nada tão eloqüente, no horizonte evolutivo, quanto a fuga desesperada de seres mal equipados biologicamente para um lugar ermo a fim de procriar (ainda assim, sem escapar dos obstáculos e dos predadores, como podemos ver).

Por este enquadramento, o Paraíso terrestre nunca existiu. E a lei da selva, que não é a do mais forte, mas a do mais apto, não foi revogada com a entrada do homem em cena. Assim como os sofridos pingüins no gelo, também seguimos nossa marcha. Tal qual todo ser vivo.

Apesar das nuanças extraordinárias a demarcar a beleza em detalhes individuais, a marcha da vida parece empreender um esforço fabuloso para preservar informações úteis, desde que virgens compostos de carbono produziram “máquinas” autoreplicantes, alguns bilhões de anos após o que se considera o nascimento do universo. Da Grande Explosão, do todo que era uno, nuvens de gás preencheram o vazio com usinas estelares, de cujos destroços se formaram os planetas.

Essa a história como a conhecemos, embora, amiúde, esqueçamos dela. Se somos tão parecidos com pingüins – se eles, estranhamente, nos recordam a nós mesmos – é porque há uma resposta provisória (sim, insatisfatória) no “milagre helicoidal”, como chama o DNA o cientista-escritor David Grinspoon, que diz o seguinte: “Num certo sentido, só existiu uma única fita de DNA, dividindo-se e multiplicando na Terra há quase 4 bilhões de anos. O DNA nunca morre, só melhora. Os afluentes evolutivos secam e desaparecem, mas a corrente central da vida impelida pelo DNA continua crescendo. (...) Esse milagre helicoidal poderá até sobreviver à sua estrela de nascimento, se partirmos e levá-lo conosco. (...) Somos as naves que o DNA inventou para navegar pelo mundo.”

Para Grinspoon, a evolução do universo até aqui transmite uma mensagem “completa e profunda” de unidade. Conclusão, aliás, comum a muitos que se debruçam sobre a arquitetura e a história cósmicas. Da mesma maneira que a inteligência humana seria parte da evolução da matéria que se torna autoconsciente, “dá uma olhada para trás para ver onde esteve e decide conscientemente como prosseguir”.

Nas voltas que o universo deu e naquelas que o DNA dá sobressaem mais perguntas do que respostas. A diferença entre homens e pingüins, por exemplo, ergue-se bem acima dos respectivos projetos biológicos cumpridos. Pouco ajuda, nesta hora, lembrar que somos ambos – todos – feitos do “mesmo barro”, ou que ao pó estelar de onde viemos um dia regressaremos.

Um dia, não tão distante, foi uma heresia dizer que o homem veio do macaco. Através das lentes da Marcha do Imperador, é tentador comparar o resto do reino animal conosco e pensar que não importa, de fato, se viemos de macacos ou de pingüins. A pergunta agora é outra.

Pouco mais de meio século após sua descoberta, o DNA é a misteriosa chave sem destino que preservamos sem desconfiar o motivo. Ao menos temos uma compensação poética – de ser formados por obra e graça de uma escada espiral perfeita, bela, infinita e eterna, como um Deus que se esconde dentro de nós.

A marcha do imperador (França, 2005)
Documentário
Direção: Luc Jacquet

9.10.06

Cumprindo prisão perpétua


Há finalidade no ato libertino? O que persegue? A felicidade? A virtude? O ato libertino é escravo daquilo mesmo que pretende negar, denunciar, afrontar ou destruir – e a libertinagem não traz prazer, nem ganhos. Sua motivação é tão obscura quanto o alvo de seus ataques: o mundo.

Na ânsia pela diferença não há desejo de originalidade... Pelo contrário, no máximo ali dormita a vergonha de ser igual. Parte indiscernível do deplorável, do mundo que lhe causa nojo, o libertino manifesta a melancolia que o consome, e o faz explícita e escandalosamente, por diversão ou necessidade.

Mas então a fuga do tédio poderia ser o bem almejado? Poderia. Desde que alguma alegria abrisse uma réstia de luz em sua alma sombria. O tipo retratado aqui, contudo, é triste antes, durante e depois do gozo. O êxtase não lhe diz nada. Por isso o transforma em gozação, na velada esperança de que o gracejo, a imitação, o ridículo terminem de extrair qualquer sentido da existência fadada a uma auto-referência sem graça.

Para azar seu, a dor tampouco é resposta. O masoquismo está fora de seu alcance. Como a pele insensível ao fogo, a alma libertina busca na luxúria, no grotesco, na privação da consciência, a razão de liberdade sentida como prisão.

A vida em essência é insana, torpe, feia, e toda ação, toda palavra, são irrelevantes, quando se está condenado perpetuamente ao próprio ponto de vista.

O libertino (Inglaterra, 2004)
Direção:
Laurence Dunmore
Com Johnny Depp e John Malkovich

4.10.06

Efeito bumerangue


Em cartaz - O que você faria, hoje, diferente de ontem, se a chance lhe fosse dada, a oportunidade, criada? O que você mudaria em sua vida se o poder de mudança estivesse ao seu alcance? Qual a carga de arrependimento, frustração e culpa que aliviaria ou retiraria das costas, caso a sorte que não teve e as escolhas certas caíssem de bandeja em suas mãos agora, de forma a consertar o mal feito cortando-o pela raiz – sem deixar que surgisse sequer uma cicatriz?

Ainda bem que a realidade não é a superposição de imagens e efeitos digitais, e não podemos interferir tanto naquilo que vemos, que nos apresenta o real. Mas se há um limite humano ignorado pelo cinema, é este: o impossível vira infinita potência, a vida e a história são questões de edição, cada momento é do tempo somente uma versão. Como no filme em que o passado alterado é uma bola de neve, cuja seqüência é menos seqüência do que repetição.

Sonhar com um novo passado contudo não dispensa o incômodo de um futuro repaginado a cada instante. No paradoxo das viagens no tempo mora, junto com a nossa ilusão com ele – relativisticamente – a nossa desilusão com o presente. Ou melhor, talvez: a nossa aguda incompreensão sobre o ser consciente, desperto, alerta e confuso com os limites da existência... Afinal, como cantou o Poetinha, “se foi pra desfazer, por que é que fez?”

Pra refazer, provavelmente. Pois preciso e possível mudar não é o que passou, mas o futuro, sempre. Basta estar no presente.

Como intervir no que não se conhece? Este fiapo de matéria habitada por nossa mente é capaz de mexer no que não faz idéia... Assim fomos projetados, da elegância enigmática, ordenada em dupla hélice em nossos genes, ao design de fogo e caos das sinapses cerebrais – ora encarando com apreensão o espelho, ora encontrando um deus na vista silenciada.

A imagem no espelho concretiza a eternidade em fuga, o tempo que não fica. Difícil não temê-la, e de fato poucos conseguem. Enquanto a luz interior é escura, requer o recolhimento, a sabedoria do esquecimento – meio lúcida, meio louca – segundo a qual, a certa altura, para todos nós, os dilemas do livre-arbítrio serão favas contadas.

Efeito Borboleta 2
EUA, 2006
Direção: John R. Leonetti
Roteiro: Michael D. Weiss
Com Erica Durance e Eric Lively

25.9.06

A cosmética dos corpos


Em cartaz - Como num jogo de espelhos a contradizer no seguinte a imagem desfeita no segundo passado, a moda faz e refaz o encontro do ser consciente com o corpo que o veste. A vender ilusões ou retratar com perfeição a fronteira entre a pele e o mundo percebido, o olhar que reina no império dos sentidos é chamado a mergulhar na aura das aparências para vislumbrar na sombra exposta do outro um fio de luz essencial.

O olhar de cada um perscruta no reflexo de todos o traço inconfundível de estilo que revela, de relance, a personalidade única na busca incessante de si. As vestes recortam silhuetas tanto quanto as escondem, mas será assim tão fiel a cópia que aflora em nossa fôrma superficial?

A cosmética dos corpos demonstra, na estilística dos pés à cabeça, alvo de pincéis e tesouras no Egito Antigo ou em Nova York, a inclinação humana de esculpir-se de acordo com um ideal – ético ou estético, se o belo é apelo que se vê ou se intui.

Quando a cultura copia e replica, destrona, transforma os padrões do ideal, diz-se que uma moda substitui outra. No filme regido por Meryl Streep, o espelho fashion alterna a defesa do requinte com a bandeira da simplicidade, opondo o glamour frenético da mais badalada publicação de moda à vida romântica, sem maquiagem, de um casal em início de caminhada.

Uma bem-humorada crítica, que realça o contraste situado, sempre, entre os limites do corpo e aquilo que o cobre.

O Diabo veste Prada (EUA, 2006)
Direção: David Frankel
Com Meryl Streep, Anne Hathaway e Stanley Tucci

19.9.06

Revolucionários franzinos

Em cartaz - No silencioso deserto dos profetas, homens e mulheres exibem a sua figura mirrada e altiva contra a incerteza, a sandice, o feio e o descabido. A multidão os fita, e espera: saem de suas bocas palavras tão grandes que nos assustam, nos maravilham – serão as verdades ditas, diretas, de figuras etéreas, a expressão natural do mundo sublime acima do humano?

Anjos e deuses falam através desses seres miúdos de gigantesca presença. Parece-nos normal nomeá-los também anjos, semideuses, santos em corpos rebeldes que nos transmitem, destemidos, a sua rebeldia.

A imperfeição que os aflige chama a atenção para uma estranha harmonia: o espírito se agita, o olhar se aviva, e a tênue fronteira física é superada, fazendo do corpo contraditório depósito de algo que o corpo não contém.

Nem de longe um milagre acontece. O “meio é a mensagem”, teorizou McLuhan. “A minha vida é a minha mensagem”, simplificou Gandhi, franzinamente. A força expressiva é a marca dos que usaram seu tempo na Terra para falar mais alto que a voz, para se estender além do alcance das mãos, e ir mais longe do que os seus passos foram.

Talvez por nos darem a impressão de ser vítimas da natureza, compadecemo-nos deles, por sua caminhada bizarra, qual via-crúcis no rumo certo da glória. Grandes personagens da civilização carregam miúdas compleições físicas, contrariando o preceito biológico da supremacia dos mais fortes. Ou será que não? Ou será que as revoluções franzinas ensinam justamente que é preciso desafiar os mais fortes para fazer girar a roda da história?

Vale lembrar o impacto deixado como legado, na política, na cultura e na ciência, por nomes como Newton, Einstein, Santos Dumont, Paulo Freire, Prestes, Vargas, Rui Barbosa, Herbert de Souza – apenas para citar alguns. Na religião, então, é quase lei a ascendência do revolucionário franzino sobre os corações e mentes dos crentes (e dos não crentes): São Francisco de Assis, Madre Teresa de Calcutá, Padre Cícero, Frei Damião são imediatos exemplos.

Dom Hélder Câmara, cearense de fama carioca e adotado por Olinda e Recife, faz parte dessa lista. Foi retratado quase com fervor no documentário-tributo O Santo Rebelde, cujo maior mérito é recuperar imagens e discursos que falam por si. Dentre as pérolas de um filme rico, um destaque surpreendente para o final, quando sobem os créditos e ouvimos, deliciados, a narração do texto “Sonhei que o papa enlouquecia”, de autoria do arcebispo.

Uma bela e inconteste prova da superioridade da alma revolucionária sobre a existência franzina.


Dom Hélder Câmara - O Santo Rebelde
Brasília, 2004
Direção: Érika Bauer

18.9.06

A família e o indivíduo


Em cartaz - O indivíduo que sacrifica a convivência familiar para “vencer na vida”, e a estabilidade da família que depende do sacrifício de sonhos individuais, são os pólos de um conflito, em aparência, sem solução. Mas este é um conflito real? É impossível que ambos floresçam simultaneamente?

Taí uma equação difícil de resolver, se virar um cabo-de-guerra onde palavras como “renúncia” e “dedicação” soem como argumentos absolutos, fechados a outros pontos de vista. Por outro lado, se esquecermos a oposição alegada e buscarmos a verdadeira natureza da distância que pode ser formada, chegaremos talvez a algum lugar.

Aliás, no esquecimento voluntário está a chave de muitas angústias. Esquecer é necessário, e é por isso que “esquecemos” as nossas funções vitais, e o coração bombeia sangue para os pulmões sem que tenhamos que dar ordens constantes de batimento e circulação.

Nem sempre é possível: um esforço danado é requerido para não lembrar de sentimentos que nos embalam à noite (ou nos roubam o sono). Para alguns filósofos, o domínio das paixões devia passar pelo esquecimento de seu objeto, ao menos por um momento. Assim como a consciência se desliga do corpo para deixá-lo funcionar, o corpo tem que se desligar dos neurônios em caos – que se atiram para todos os lados, em apaixonadas sinapses – para manter o equilíbrio mínimo que lhe confere saúde. Ainda que o modelo da mente e do corpo sãos imunizados contra os picos da paixão não seja um modelo ideal para a vida real a milhas e milhas da filosofia...

De todo modo, o indivíduo assoberbado pelo trabalho que “se esquece” da mulher e dos filhos é um tema recorrente na cultura competitiva que ressalta o mérito pessoal. De poucas décadas para cá, a chamada liberação feminina equiparou a “demência” ditada pelo mercado profissional, e as mulheres têm sido acusadas do mesmo pecado por companheiros e filhos deixados em segundo plano. Foi-se a época em que as mulheres ficavam em casa, reclusas, feito prisioneiras sociais, enquanto os homens investiam impunemente em suas carreiras, para “o bem da família”.

Trata-se, em grande medida, além de um fenômeno perceptível de mudança social e moral – pois os indivíduos não possuem mais, em relação à família, as obrigações morais inescapáveis que forçavam a anulação da personalidade em detrimento da criação dos filhos e da manutenção do lar – também de um mito moderno que tem tudo para ser melhor compreendido no século 21.

Na vida cada vez mais repleta de escolhas pelo caminho, mesmo que nos viesse às mãos um controle remoto universal, que permitisse saltar intervalos desagradáveis e esperas intermináveis – como no filme Click – a liberdade de que dispomos não nos eximiria de qualquer responsabilidade.

Os dilemas envolvendo a separação virtual, radical, entre a vida pessoal e a vida profissional, são invocados, muitas vezes, como desculpas para ausências, frustrações e omissões de toda monta, que detêm quase nada do rescaldo de uma cultura dominante em gerações anteriores: o que os nossos pais e avós jogavam para baixo do tapete, temos a possibilidade de pôr em pratos bem limpos – e se não o fazemos, por que a culpa não seria nossa?

O esquecimento dos desejos, hoje, é tão absurdo quanto a lembrança artificial, onipresente, de forçosa obrigação relativa à satisfação plena de uns graças ao sacrifício mortal de outros.

Click (EUA, 2006)
Diretor: Frank Coraci
Com Adam Sandler, Kate Beckinsale e Christopher Walken

14.9.06

O caminho da redenção


Numa época em que o moralismo dominava a ética, antes da liberação moral que nos traz, hoje, benefícios, males e dúvidas, a expiação era uma rota definida para o paraíso. Os culpados sabiam que precisavam ser punidos, se quisessem alcançar a salvação. Assumir a culpa devida já foi uma questão de consciência, um imperativo ético, um dever social. Como conseqüência, o condenado lutava pelo perdão – da família e dos amigos, da comunidade, ou de si mesmo, o que sempre devia ser mais difícil, tendo em vista o rigor com que os arrependidos costumavam julgar os próprios pecados.

No clássico de Victor Hugo filmado em 1998 por Bille August, a recuperação do personagem Jean Valjean é resultante da conjunção entre a evolução espiritual e a prosperidade material obtidas com o amadurecimento. Homem de firmes convicções religiosas, figura de grande respeito que é alçada à condição de prefeito graças à sua proeminência social, Valjean chega ao poder e se vê ameaçado pelo novo inspetor de polícia, que trabalhava no presídio onde ele cumpriu pena de 20 anos por ter roubado comida.

O político que esconde o passado sente a consciência pesar quando conhece a mãe solteira que vende o corpo para educar a filha. Ex-empregada da fábrica do prefeito, demitida por preconceito, Fantine é presa, e libertada da cadeia por Valjean. O vínculo que os une será como um fardo de culpa para o empresário bem-sucedido e consciencioso.

Victor Hugo pinta a culpa como um filho bastardo em busca eterna de redenção. A culpa sublimada – como rebento esquecido – permite à vida uma aparência de normalidade, cuja superficialidade é quase indício certo do segredo ou da mentira. Na identidade dos condenados – seja uma prostituta ou um senhor de proeminência – estaria a chaga da condenação. E esta, antes de mais nada, seria uma imposição social, aplicada pela lei, e refletida no preconceito, no olhar do outro, na vergonha de si. Para o roteirista Rafael Yglesias, o tema principal da obra é a redenção, e não a injustiça.

Ou mesmo o ímpeto revolucionário que também envolve a estória. O idealismo presente em Os Miseráveis é submetido a uma comparação insistente: para mudar o mundo, o indivíduo tem que mudar, mas o indivíduo depende dos costumes existentes, por maior que seja a potência “de uma idéia cujo tempo chegou”, segundo a famosa frase do autor.


Os Miseráveis
(Les Miserables - 1998)
Diretor: Bille August
Com Liam Neeson, Uma Thurman, Claire Danes e Geoffrey Rush

12.9.06

O amor no tempo e no espaço


Em cartaz - Dentro da noção de que apaixonados se encerram num mundo próprio, desconectados do mundo real, está também o mito romântico de que o tempo some, paira suspenso, naqueles instantes mágicos da paixão que somente os enamorados conhecem. Mito, sim, porque apesar do arrebatamento real que parece arrancar os inebriados pelo outro da percepção temporal, a relatividade amorosa não evita o escoamento dos segundos e a passagem dos dias.

Mas isso tampouco implica que a ilusão não exista, e em sua vigência não se possa experimentar os efeitos do lapso da marcação dos relógios. E se quem ama pode esquecer o tempo, será que o tempo não pode dar um tempo aos inflamados corações apaixonados?

A Casa do Lago, com Sandra Bullock e Keanu Reeves, joga com as conhecidas variações de um romance no tempo e no espaço. O ponto de partida é um encontro simultâneo a um desencontro no tempo: duas pessoas moram no mesmo lugar, quase à mesma época, em anos ligeiramente diferentes – como se duas almas apaixonadas não pudessem ocupar um só lugar no espaço...

Com idas e vindas que remetem a artifícios comuns na ficção científica adepta das viagens no tempo, o filme também ingressa na onda da “filosofia quântica” atual (assista
Quem somos nós? e tire suas conclusões). A força da mente revigorada pelo verdadeiro amor subverte até as leis físicas, mesmo que não consiga se desprender do clichê de um final feliz. O custo é uma sensação de decepção – nada estranha, aliás, às relações românticas que se descobrem, não mais que de repente, paradas no tempo e no espaço.



A Casa do Lago
(The Lake House - EUA, 2006)
Direção: Alejandro Agresti
Com Sandra Bullock e Keanu Reeves

11.9.06

Explosão das diferenças

A submissão é mecânica: tornamo-nos robôs quando perdemos a humanidade para virar humanóides regulados, seres que funcionam a corda feito ponteiros de um relógio. Mecanicamente, a vontade coletiva é manipulada para sufocar a vontade individual, e os mesmos que reclamam da opressão a conclamam em uníssono, suscitando o sumiço da própria voz.

As primeiras cenas de Metrópolis, de Fritz Lang, produzido há quase 90 anos, exibem o tempo marcado no relógio, a fumaça de uma chaminé, pistons e engrenagens em movimentos circulares que parecem os mesmos de operários em fila, com a mesma roupa, a cabeça baixa, os ombros caídos e conformados, os passos mortos, sem conversa, sem outro movimento que não o da lentidão das pernas. Trabalhadores que não se falam nem se encaram, como robôs de carne e osso, mostrando que a imitação do círculo impõe repetição e respeito.

Prédios altos de variadas formadas se espremem no jardim de prazeres da elite da cidade, alheia aos dissabores dos trabalhadores que põem para funcionar as grandes máquinas que dão energia para a cidade. Aviões, carros e trens suspensos entre os prédios são tão lentos, na visão de Lang, como um sistema emperrado, um modelo em decadência, pronto para se esgarçar. As portas são imensas, como as máquinas e os prédios, reforçando a desproporção que se quer passar entre o tamanho real das coisas e o tamanho simbólico das pessoas.

Formigas treinadas, os trabalhadores ficam abaixo da superfície – abaixo até do nível das máquinas, que separam os dois mundos em duas castas, quase duas raças – operando as rodas e caldeiras em um vaivém de sincronia e enfado, cujo resultado é o desfrute dos que não trabalham, lá em cima, e a exaustão física e mental dos operários.

É claro, a temperatura não pode subir, senão explodem as máquinas, explodem os ânimos, explode Metrópolis. Será que não seria melhor deixar explodir, por acidente, a máquina que, literal, tritura gente? A fumaça está por toda parte, no caos da caldeira de operários zumbis, corpos sem vida carregando corpos mortos... E na miragem da sociedade perfeita, onde todos são irmãos, com mais semelhanças que diferenças, com mais união que desavenças.

De um olhar diferente surge a identidade – do olhar, talvez, de quem se julgava diferente. O filho do ditador do lugar toma consciência da separação radical entre os níveis da cidade, descobrindo a segregação social, quando se apaixona pela filha de um operário. Maria é o objeto da paixão de um e da esperança de muitos. Ela, que acende a rebeldia no filho do tirano, é a líder dos operários rebeldes que se reúnem nas antigas catacumbas de Metrópolis.


Maria e seu herói lutam contra a ordem – da autoridade e da mecani-cidade. A manipulação dos ponteiros de um relógio-engrenagem (pra variar, maior que um homem) representa a relação humana com, ou contra, a máquina: alguém tem que ficar na máquina, pensar por ela, comandá-la, e assim a máquina garante o mundo do homem.

Falta construir o homem-máquina. E este é o sonho do inventor da cidade, “uma máquina à imagem do homem, que nunca se cansa nem comete erros”, tornando os trabalhadores desnecessários, peças obsoletas da cidade-máquina. Os “trabalhadores do futuro” serão robôs talhados para operações perfeitas, aptos a receber instruções sem risco de insurreição. Na distopia de Fritz Lang, os robôs são cópias de gente – antecipações de Ets ou de clones no imaginário da ficção científica. É curioso notar como, no início do século passado, uma profusão de lâmpadas, raios elétricos, líquidos borbulhantes, válvulas e cabos compõem o cenário da tecnologia de ponta de Metrópolis.

Em toda luta pelas diferenças, explodem contradições. Se os trabalhadores destruírem as máquinas, será que o mundo justo se refaz? Será que inexistiam injustiças antes das máquinas? No filme, a luta de classes se confunde com a luta contra a máquina, como se a máquina não fosse fruto do próprio homem. Até que ponto a máquina é o tirano atrás dela? E em que medida os conflitos se resolvem, depois que a multidão represada sai do controle e se transforma em enchente de gente?

Metrópolis não traz respostas, expõe fronteiras. Se a sociedade mais técnica pode ser a mais desigual, a mera aniquilação das máquinas poderia ser também autodestruição – num erro do mesmo porte de quem imagina que a técnica, um dia, irá substituir o homem.


Metropolis
Alemanha, 1927, P&B (restaurado em formato digital em 2001)
Direção: Fritz Lang
Roteiro baseado no romance de Thea von Harbou

O zunido da eternidade

Na aurora do mundo, a vida está à espreita – e na aurora da vida, a consciência se insinua. Pela retrospectiva lente da razão, os primórdios escondem indícios do futuro, e o futuro abriga, nas ruínas, as raízes do passado distante. Entre dois longínquos instantes, a sentinela do tempo é testemunha de uma história muito mais longa e abrangente que a história humana, cujo mistério insondável não pode o homem, sequer, imaginar desvelar.

O que não significa dizer que não possamos sublimar os limites e pôr a imaginação para brincar diante do mistério. Foi o que fizeram, primeiro, o escritor Arthur C. Clarke, e depois, o diretor Stanley Kubrick, com a obra-prima de ficção científica 2001: Uma Odisséia no Espaço.

Lançado em 1968, em plena corrida espacial que marcou a disputa pela hegemonia na Terra entre soviéticos e norte-americanos, o filme, apesar deste enquadramento, sobrevive à datação. Seu impacto sobre o imaginário do cinema atravessa gerações. Décadas mais tarde, adolescentes se mostraram – e se mostram – tão empolgados pela obra quanto seus pais.

Isto se deve, em parte, ao fato de Kubrick ter escolhido com maestria os símbolos e o acompanhamento estético das cenas adaptadas do livro de Clarke. É difícil acreditar, por exemplo, que as composições Assim falou Zaratustra e Danúbio Azul, não tenham sido feitas especialmente para o filme! O casamento perfeito entre imagem e trilha confere tal identidade e tal unidade que, ao ouvir essas músicas, pensamos logo no primata que descobre o raciocínio quebrando ossos; e na nave que vai em direção à estação circular trazendo dentro de si aquela canetinha a passear no vácuo. As cenas antológicas, e suas trilhas de luxo, são das mais belas expressões já concebidas para o balé da inteligência humana.

Por sua vez, o monólito negro carrega um zunido que é o próprio som da eternidade. No centro de macacos em alvoroço, o bloco geometricamente polido destoa do cenário de começo dos tempos e nos manda direto para o futuro, em que seria possível qualquer artefato de igual natureza.

No fundo de escavação na Lua, para o espanto de astronautas ciosos de sua capacidade de exploração do cosmo, o monólito nos joga de volta para “nossos antepassados esquecidos” – na expressão de Carl Sagan – e para uma época imemorial, fora do controle da espécie humana. Por isso o seu zunido é o zunido da eternidade.

Outro som característico deste clássico é a voz do computador HAL 9000, dona de “personalidade” que passa do servilismo à rebeldia, e se transforma na virtual encarnação, por assim dizer, das desconfianças e receios sociais em relação à tecnologia. E HAL encarna apropriadamente o mito tecnofóbico tão copiado pelo cinema, de que quanto maior o avanço, maiores a insegurança e o medo.

Porém o computador amotinado não destrói o ideal de racionalidade que põe 2001 na linha de frente de qualquer ilustração da odisséia do conhecimento. O ideal da técnica a serviço do homem, mesmo contraposto à vertigem do abismo negro e vasto fora das fronteiras terrestres, permanece no horizonte, quase 40 anos depois.

A odisséia no espaço de Kubrick e Arthur Clarke é uma viagem no tempo. E que junta, pelo caminho, as conquistas da ciência e as perguntas fundamentais da filosofia – que não se opõem em desalinho, mas se contrapõem em harmonia, como as notas musicais ou as cores e traços de autêntica obra de arte.


2001: Uma Odisséia no Espaço
Diretor: Stanley Kubrick (1968)
Roteiro: Arthur C. Clarke
Elenco: Keir Dullea, Gary Lockwood, William Sylvester, Daniel Richter, Leonard Rossiter, Margaret Tyzack.
Duração: 139 min (148 min na coleção Stanley Kubrick de DVD).