30.11.06

A sorte do encontro


Na face dos que se mostram vê-se às vezes o anseio de uma jornada perdida, frustrada ou inacabada – a jornada que se desenha na busca do outro. Que de forma geral, quase sempre se perde ou se frustra, e nunca parece ter fim, porque o outro que se procura não se define, não vem da soma das nossas expectativas, nem é o que sobra das desilusões.

A rede das relações humanas é confusa, e se complica ainda mais na teia cheia de tramas do tempo. Um prato feito para os contadores de histórias, com sabores e dissabores para quem as vive. E por isso, Vinícius: o encontro na vida é arte, já que a vida é desencontro. O poeta da paixão falava com a experiência da doçura e da amargura, de quem se encantava pelas pessoas tão facilmente quanto se desencantava – pelo menos, fosse infinito o encanto, enquanto durasse.

Então o encontro é sorte, ainda que seja arte prepará-lo, permiti-lo. O acaso ronda as “almas gêmeas”, mas você mora em São Paulo e eu, no interior da França! Ou você está ali na esquina, mas não tivemos a chance de um esbarrão de cinema, no lugar preciso, na hora exata. O encontro tem seu momento certo, onde é ingênuo e forte – ali ele é fruto da sorte – e o dia seguinte do encontro, menos ingênuo e mais fraco, onde o esforço é necessário, a arte sobressai.

O momento certo, contudo, não é o fortuito episódio. Está mais para uma conjunção de mistérios – dos astros, das nuvens, do ângulo da luz, daquilo que preferir – aliada a uma disposição dos espíritos que se cruzam e, de repente, se acham. O momento certo até dura, portanto.

Porém convém não tomar duração por eternidade, inclinação bem freqüente, acentuada defronte da sorte.


Você é tão bonito! (Je vous trouve três beau, França, 2006)
Direção: Isabelle Mergault
Com Michel Blanc e Medeea Marinescu
Destaque do 5º Festival Varilux do Cinema Francês
Em cartaz no Cinema da Fundação neste final de semana.

4.11.06

Na encruzilhada outra solidão



Em cartaz - O menino joga sozinho o futebol de botão. O velho acorda sem ninguém. O jovem picha os muros do país, um país que se distrai com a Copa na TV. A solidão dos encontros, muda, serena, o hábito e os costumes trazidos de longe, esquecidos na memória.

Enquanto é infinita, a infância sai recolhendo os indícios do mundo no afã de aprender, abandonando os restos percebidos sem pensar no tempo gasto no gesto repetido e no medo daquilo que nem vê.

A vida aberta em mil vias destoa da lentidão da velhice. A pressa é inimiga da idade que não tem prazo de validade porque hoje foi ontem, um agora remexido mal se livra do antes, e amanhã é mais distante que os dias que povoam o presente.

Durante a jornada, uma revolta se levanta contra a opressão e a vilania. Mas é só uma revolta no meio de tantas tiranias... Até que a liberdade tardia retorne, a diferença dá-se os braços e se defende como pode.

Nos idos da ditadura da história a ditadura do tempo promove abraços inusitados na encruzilhada da solidão. Outros olhares perdidos, outros temores na carne, outros consolos no coração. O estranhamento é idêntico, contudo, e se estampa na face da multidão que grita alto, a cada gol, como uma só voz – como se não fosse uma voz só.

O ano em que meus pais saíram de férias (Brasil, 2006)
Direção: Cao Hamburger
Com Germano Haiut, Michel Joelsas, Liliana Castro e Caio Blat

O grande fardo


Seguimos atrás de compensações diante do abismo acima de nós. O instante eterno de um piscar de olhos nos força a tecer inversas comparações, inventar opostos contra a solidão.

Sentimos que os olhos abertos não contam toda a verdade, tem que haver mais por trás do mundo visto-criado-pela-visão. Assim o que vemos não é real pois a realidade não vale quando não basta.

Queremos nos livrar do peso existencial. Construir algo que faça mais sentido que um universo tão silencioso quanto isolada parece a nossa posição nele. Queremos desfazer os mitos científicos e voltar a ler nas paredes frias da caverna os rabiscos que deixamos para nós mesmos.

Celebramos ora a prisão do corpo, ora a liberdade da alma – como se um não fosse livre e prisioneira a outra, vez nenhuma. A poesia concreta, tangível, abstraímos do mesmo mundo negado... Somos seres, sim, insustentáveis, não entendemos o que se passa.

Como a vida pode ser leve ante o peso de tudo, a nossa consciência do que gira em volta trata de esquecer uma consagrada irrelevância no concerto para trilhões de instrumentos que mal conseguimos escutar.

De repente, a morte. De repente, a lembrança: o sangue tem um caminho a trilhar. Cada organismo é matéria diferenciada em esforço insondável, ínfimo ato no meio de movimentos grandiosos (invisíveis) que nos conduzem de lá pra cá e de cá pra lá.

O problema é que a acolhida da consciência pela vida soa inexata e incompleta – a morte, vivida, dada à consciência, sempre é violenta, agressão gratuita ao ser que, em sua leveza, brincava.

Morrer, tal como matar o outro em nós, na morte próxima: esse é o fardo insustentável.


A insustentável leveza do ser (EUA, 1988)
Direção: Philip Kaufman
Roteiro: Jean-Claude Carrière, baseado no romance de Milan Kundera
Com Daniel Day-Lewis, Juliette Binoche e Lena Olin