27.6.07

A força invisível

Balas são pedras que gritam e voam, lapidadas em série, recheadas de preto para semear a destruição.

Balas são pedras que cumprem ordens. Ordens que vêm de armas que não sabem de nada. As armas disparam no escuro balas perdidas e balas que acertam a direção do alvo desejado pelo gatilho. Mas quem puxa o gatilho também desconhece a origem da bala, como se o gatilho fosse invenção da arma, ou extensão natural da bala.

Quem compra a arma e a bala não puxa todos os gatilhos. Porém nunca faltaram braços para atirar pedras. E quanto mais leves e rápidas as pedras, menos braços faltam. Para os portadores de pedras rápidas, metalizadas, prontas para receber ordens, as armas significam menor esforço e maior demonstração de força.

A força da bala é um valor imenso atribuído a objeto diminuto, quase invisível. Tão invisível que o animal armado nem se dá conta dele, apenas da força que o torna simbolicamente indestrutível – e o que está em volta, absolutamente vulnerável ao movimento mínimo engatilhado.

O que se vê não é a bala. É o que sobra de sua trajetória. A bala é a força invisível que faz do gatilho um detalhe. E de quem dispara, um super-herói aos próprios olhos, e um fantasma aos olhos dos outros.

No entanto, balas não caem do céu, armas não brotam do chão.

As guerras são feiras fúnebres de armas, balas e corpos. Corpos de animais ensangüentados, a maioria deles desarmada. Supra-sumo da matéria quente, a matéria viva sucumbe à matéria fria da arma, ao fogo falso de um bólido. O cheiro ancestral da carne em sangue desfeita alimenta a ilusão do encontro selvagem, instintivo, com a natureza do animal humano.

Protegido pela sombra da munição – seja de pedras à mão, ou de balas lascadas a laser – o homem se desumaniza, armado até os dentes.

Diamante de sangue (Bloody diamond, EUA, 2006)
Direção: Edward Zwick
Com Leonardo Di Caprio e Jennifer Connely.

3.6.07

Quebra-cabeças

Começamos pelas bordas. É mais fácil identificá-las, ligar as extremidades para fechar a moldura. Os limites achados dão-nos a sensação de dever cumprido, embora o interior do quadro esteja oco e tudo apenas começando.
As peças, do mesmo tamanho, nos confundem. Procuramos padrões além de sua forma semelhante – mas é noutras semelhanças, de cores e desenhos, que depositamos as esperanças. Grupos indefinidos são separados: céus com nuvens e céus azulados, os galhos e o tronco da árvore, ou as flores vivas de um Van Gogh estão à espera da descoberta, do desvelar-se, para que o nosso olhar reúna o que o tempo despedaçou.
Ao final restará uma tarefa, pois a figura inteira pede a distância. Será preciso abandonar o tato que juntou as peças para desvendar algum sentido no conjunto que se mostra de longe à visão.
Talvez não seja o resultado previsto nem desejado. Mas o que era mesmo que prevíamos ou desejávamos? Os modelos são ilusórios. O quebra-cabeças do tempo não tem um cenário-guia estampado na frente da caixa. São apenas as peças soltas que vão chegando uma a uma – segundos, minutos, dias – num fluxo incessante em que sempre faltarão peças, e sobrarão pedaços que não se encaixam e buracos sem solução.
E talvez, entretanto, quanto mais peças contamos mais se torne previsível o destino do tempo amontoado. Afinal as bordas já estão prontas, cada agrupamento em seu canto. Agora é juntar as partes, ver o azul no azul, o branco no branco, Van Gogh em Van Gogh.
O segredo das cartomantes e de todos que lêem adiante é compreender o passado que se posta à nossa frente tal e qual um quebra-cabeças montado – mesmo que não seja possível montá-lo completamente.

Premonições (Premonition, EUA, 2007)
Direção: Mennan Yapo
Com Sandra Bullock e Julian McMahon