31.8.07

A noite do dia

Nem sempre o tempo e o espaço andam juntos para a apreciação da consciência. O caminho que não se trilha pode não ser associado a dias perdidos, ou a horas paradas. Assim como um minuto poupado não costuma ser acrescido à perspectiva de novos passos.

Mas se um relógio pára, a imediata imagem formada na mente é a de um mundo de estátuas e cenários congelados, como se acabasse a bateria que movimenta o real.

Para a imaginação, a realidade paralisada no tempo se ausenta apenas no espaço, contudo: até que o tempo volte a ser marcado – crono-metrado – quem permanece acordado possui todo o tempo do mundo. Aliás, quando se dorme, aonde vai o tempo enquanto ficamos no mesmo lugar?

O sonho devolve o que aparentemente se perdeu, ao produzir a sensação de que não estamos deitados de olhos fechados enquanto o mecanismo do mundo gira. Um mecanismo gigantesco, onipresente, que pode a qualquer momento alterar o sentido do que se percebe, ou a raiz do que se acredita, bastando para isso reconfigurar os moldes de uma verdade em suspensão. Ainda que haja controle, ainda que haja uma explicação que foge das mentes sob controle, não importa: o obscuro conforta ao subtrair do ser-tempo a angústia de ser consumido.

A luz do dia interrompe o sonho, arremessando a consciência, com violência, para o tempo implacável do espaço vivido. Porque a nossa compreensão do tempo – como de tudo – é imitação do que vemos, o ciclo solar é de nossa conta. Se há uma sombra perene sobre o ser que conta o tempo, é a sombra da era imperceptível antes e depois dele.

Uma longa noite de vigília pode ser tão desagradável que mesmo os orgulhosos entes noturnos recorrem ao esquecimento da sombra, fazendo de conta que não falta sequer uma gota de luz.

Por outro lado, o hábito diurno precisa sumir da própria vista nos braços da noite. Há um cansaço que não dá trégua ao abuso dos sentidos, e a lucidez é maior após o intervalo noturno.

O dia é carente de sonhos na mesmíssima medida em que o sonhador carece de luz.

Cidade das sombras (Dark city, Austrália/EUA, 1998)
Direção: Alex Proyas
Com Kiefer Sutherland, William Hurt e Jennifer Connelly.

2.8.07

O resto é ruído

O corpo não liga para a voz muda: pensamentos calados não passam despercebidos. Que silêncio impede a dança? Que música não se ouve, quando o bastante há para escutar? É no silêncio que se dança melhor, e a melhor dança é aquela que parece não ter necessidade do som.

A vida tagarela pode ser simples, transparente e bela, como ensinam os que têm os sentimentos articulados na pressa da língua de sinais. O gestual eloqüente disputa com o olhar a atenção da alma que não cabe no corpo – que não cala porque não sabe calar.

Quando falar é impossível, vemos o quanto dizer o que se quer é difícil, mesmo à voz menos trêmula, à sílaba bem coordenada. E o quanto é fácil dizer, com menos, o que falamos demais.

Diante de um mundo a cada dia maior, de informações plenas em profusão, a toda velocidade e a todo instante, a mudez soa logo estranha aos ouvidos acostumados à cacofonia. Mas por pouco tempo. De repente nos damos conta de que é a mesma linguagem, quase a mesma história, quase as mesmas pessoas com que topamos sempre, que apenas se comunicam diferente.

Falar é tão fácil e às vezes o que sai da boca era já tão explícito que, tem hora, renunciamos ao entendimento. Abandonamos o óbvio – justamente aquilo que não poderia ser abandonado. Certezas esquecidas ou aprisionadas, dúvidas escondidas à espreita, à espera da recordação, do resgate, da libertação pela mera repetição do óbvio.

Assim como a novidade que surge pode trazer o perfume de certa experiência vivida, a manifestação de linha redundante pode levar ao reconhecimento do mesmo, noutra face. Feito similar brilho em outro espelho, a revelar nova imagem à mesmíssima luz.

A compreensão pede a palavra, e a palavra pede o gesto em seu reflexo. Viver é selecionar signos e passá-los adiante. Para qualquer um? Não, eis a questão! É preciso encontrar o par de cada mensagem – no momento preciso – no imenso “jogo da memória” em que o dito e o não dito se fundem em toda voz.

Principalmente se o ser inteiro – além da fala – é essa voz.


O resto é silêncio (Curta, Brasil, 2003)
Roteiro e Direção: Paulo Halm
Com Paula Mele e Valdo Nóbrega.