28.10.07

Poética do corpo

A dança desenha sentidos simples para quem olha e sente o que vê.

O avesso da dança é o silêncio vestido com frases que se calaram e deixaram ausente o movimento.

Almas em cárceres tão amplos que vão além do horizonte podem se dar ao luxo de negar a dança e sua potência. A cor do mundo, com freqüência, desbota diante da única forma que cambia impressões sobre as demais. Mas a escuridão reinante desfia junto se o que anima a busca some da vista. Há múmias mais vivas do que isto.

O que nos anima? Quase nada. Quase sempre um tênue reflexo. Um olhar desata o gesto invisível perdido e reposto em cada passo ou no menor esboço de mudança no rosto, de si, de alguém. Olhares se cruzam pelo caminho. O caminho das cruzes do olhar.

São as paixões dispersas no palco que contam melhor o instante, do mistério transmitido de dentro para fora, que se transcende na contramão. O instante é a eternidade, de repente real.

A poesia não precisa ser dita? Tem que ser ouvida a poesia! Ainda que vague por nanodutos frágeis para todos os lados, sem direção, em um “caniço” arrogante e inerte.

A poesia no abismo de luz ao fim do percurso é o moto perpétuo jamais pensado, indispensável, chave de um segredo encoberto pelo próprio pensamento.

No animal consciente, o exposto não se impõe fácil.

O explícito pede espelhos. Imagens imploram por palavras. E o que é dito requer o esconderijo das últimas aparições.

Matemático e belo balé que se repete.

Para a contemplação muda.

Para a narração contemplativa.

Para o amor em plena forma de poesia.


Fale com ela (Hable com ella, Espanha, 2002)
Direção: Pedro Almodóvar
Com Leonor Watling, Javier Câmara e Dario Grandinetti.

15.10.07

Estrela cadente

Um amor ideal não se realiza, assim como não se projeta um verdadeiro amor. É contraditório o espírito romântico, e o tempo só faz piorar a situação, na esperança que desespera, no silêncio do que termina.

A esperança – na linda e singela definição contida no romance A mulher de costas, de Márcia Tiburi – é um medo verde, brotado no peito dos que têm paixão. Medo que finde o nem começado, medo colado ao desejo de completude a luzir nos olhos de quem ama.

Aliás, Márcia escreve como quem filosofa, e filosofa como quem conta estórias. Durante o programa Saia Justa, do canal GNT, exibido na semana passada, ela resumiu numa sentença a mudança nas relações amorosas – transição pós-moralista, quiçá pós-romântica – que nos afeta.

Uma mulher que mora sozinha perguntou que espaço deveria reservar para o namorado em sua casa, sem perder a privacidade e o prazer da relação. Tiburi foi clara e distinta: “O seu corpo, apenas, e nada mais”.

A resposta foi ilustrativa do novo mundo amoroso que germina, a partir de um novo e bem-vindo protagonismo das mulheres. Na tradição romântica, o corpo do outro é exatamente aquilo impossível de ocupar.

Para fugir do impossível, o romântico tradicional pensava noutra coisa, e arrumava impossibilidades maiores. Marcel Proust, ao tratar da insuperável ansiedade dos apaixonados, chega a dizer que a sua busca são todos os pontos do espaço e do tempo já ocupados e ocupáveis pelo corpo da figura amada.

Daí o ciúme como extrato obrigatório da cultura do amor romântico. O ciúme é o que aparece junto com a prisão da utopia (e a utopia da prisão).

Na época pós-moralista – longe da superação do moralismo, que resiste e se reinventa, como observa Gilles Lipovetsky – o corpo é tanto a conquista quanto o limite da nova ética amorosa.

Para o sofredor romântico, o corpo do outro é menos objeto e mais imagem, menos real do que fruto de uma idealização – já que o que sobra é a fantasia, ante a ausência da concretização. Inclusive a fantasia dos ciumentos, diante do desejo impossível de talhe proustiano.

O corpo do outro, no romantismo clássico, é feito estrela cadente riscando mais a imaginação que o céu. É romantismo da alma: da essência intocada e intocável, que faz do outro um deus, e o aprisiona, em reverência e vigilância.

No romantismo que desponta, o romantismo do corpo, o amor é compartilhado por dois sujeitos autônomos, que repartem o mesmo “objeto” da paixão. A noite estrelada deixa de ser o mote para um pedido exasperado, e se torna o espelho de laços oscilantes numa miríade de possibilidades.


Stardust (Inglaterra/EUA, 2007)
Direção: Matthew Vaughn.
Com Claire Danes, Michelle Pfeifer, Robert De Niro e Charlie Cox.