24.11.07

Andar junto

O horizonte guarda todos os caminhos na distância e expõe cada um deles à imaginação, para que, antes, o passo se firme em terreno menos árido, menos duro, menos simples que o chão. O passo, antes, pode ser alvo de partidas sem volta, dos desvios mais improváveis, de altíssimos muros que se erguem a perder de vista.

Até que se nota uma trilha tomada, e quão pouco o pensamento contribuiu para que assim fosse. As trilhas não vêm do nada – mas dificilmente recordam a conseqüência exata de planos cumpridos, ou desenham a imagem concretizada de sonhos ou pesadelos antigos.

Os caminhos se formam no tempo, mas não é apenas no tempo que se identifica um caminho. Como escreve o ditado, sabemos que estamos numa estrada se na mesma estrada andam outros. “Dize-me com quem andas” – e logo verás onde estás.

O melhor é que a sorte pura como água não explica o destino compartilhado que traz fôlego e repouso, une trajetórias, e faz surgir no tempo laços que parecem fora dele.

Para que possa ser contada, a vida é repartida com gratas testemunhas de nossas fraquezas e de nossos bons momentos. É à luz de testemunhos duradouros que um caminho se ilumina.

A sabedoria do eremita é triste porque não é sábia a falta de alegrias divididas. Por isso há um sentido que escapa quando personagens do nosso caminho estão ausentes. Mesmo se as companhias cruciais mudam ao longo do caminho – e com freqüência esta é a regra – é através delas que enxergamos alguma lógica na maluquice da existência.


Johnny & June (Walk the line, EUA, 2005)
Direção: James Mangold
Com Joaquin Phoenix e Reese Witherspoon.


9.11.07

O banquete

“De onde vem – essa busca? A necessidade de solucionar os mistérios da vida, quando as questões mais simples sequer são respondidas? Por que estamos aqui? Que é a alma? Por que sonhamos? Talvez fosse melhor não procurar resposta alguma, não ir atrás desse desejo de saber. Mas não é assim a natureza humana. O coração humano não é assim. Não é para isso que estamos aqui. Lutamos para fazer diferença. Mudar o mundo. Sonhar com esperança. Sem saber quem encontraremos pelo caminho. Quem, entre os estranhos no mundo, vai nos dar as mãos, tocar o nosso coração, e dividir conosco a dor de tentar.”

A gente acredita no que sente. E o sentimento realimenta a crença. O amor é uma sinapse forte. Uma sinapse que se repete. Por isso a gente ama o que conhece – a sinapse forte, repetida, dá sentido ao mundo percebido, formado por milhões de sinapses por segundo.

O mundo é montado em sinapses. As sinapses encaixam as peças do mundo. A gente crê nas sinapses, que nos delineiam a realidade e fazem do mundo, pra nós, um lugar real.

Para que a realidade cresça e floresça, precisamos de sentimentos fortes – de sinapses conhecidas. O mundo pode ser feio ou bonito: depende do sentimento forjado pelas sinapses.

As ligações nas extremidades neuronais, dentro do ponto criador de universos que é o cérebro humano, não explicam, contudo, a intensa busca processada por trás dos sentidos. O desejo de saber que nos compõe é tão radical que chega a negar-se, como se não restasse outra coisa para os habitantes de uma ilha do imenso negrume povoado de incontáveis outros planetas, estrelas e astros quase invisíveis, por inalcançáveis (como a fronteira do infinito para a vida protozoária, na escala do que vemos lá fora, talvez não muito diferente da nossa).

Negar a pergunta é comum quando a resposta demora ou escapa. O mais difícil é refazer a questão de modo a torná-la nova.

Apesar de sua raiz aparente – no extracorpóreo medido pelos sentidos – tomamos o sentimento por algo profundo. O que acolhemos à flor da pele remetemos ao nosso corpo íntimo. Remetemos à essência do que chamamos humanidade.

Uma essência que ansiamos transcendente, chave possível para os enigmas que percebemos e sentimos. Para os enigmas que somos.

Em um mergulho no conhecimento do corpo íntimo, a alma – essência transcendental em nós – de repente se revela nos porões da matéria viva que, temporariamente, ocupamos. E nos assalta a convicção – ou nos revigora a fé – de que sobram respostas nesta arca: pois deve existir muito mais em nossos genes do que supõe a nossa infante biologia.

No arco mágico a unir a natureza humana à natureza sem humanos, determinismo genético à explosão cósmica, bioengenharia à física das cordas e neurociência à física quântica, a consciência do que há em volta e dentro de si encontra um vasto campo intocado à frente, com o horizonte livre em quase todas as direções.

O banquete das velhas perguntas está só começando.

Heroes – 1ª temporada (Heroes – Vol. 1, 2006)
Criação: Tim Kring
Com Hayden Panettiere, Jack Coleman, Masi Oka, Sendhil Ramamurthy.

3.11.07

Cultivo à distância

O olhar aceita um sorriso e um abismo se desfaz. A parede de vidro some quando nos damos as mãos. O círculo indevassável de cada um abre passagem ao impossível na tangência do outro, que resume o espaço, suspende o tempo e distrai o abismo que nos aparta dos mundos fora de nós.

Absurdo é ganhar o privilégio do contato e perdê-lo inexoravelmente, no emaranhado de relações fluidas da “vida líquida” de que fala o sociólogo Zygmunt Bauman: “Não há como saber, pelo menos com antecedência, se viver juntos acabará se revelando uma via de tráfego intenso ou um beco sem saída”, escreve ele.

E o que há como saber com antecedência em nossa vida líquida que a cada dia parece escorrer mais rápido à revelia das dúvidas que imploram por menos pressa em direção à última gota?

O tempo de nossas relações líquidas é entrópico: desorganiza encontros, desarmoniza até os laços natos. Em uma hora dada de sua vida, pode estar mais perto quem está mais longe, e a ausência dos presentes pode ser bem clara. O pior tipo de romantismo agradece, o pior tipo de amor, ainda que seja o melhor consolo.

O tempo, no entanto, é também antrópico – depende o seu movimento dos passos que a gente dá. “Amar se aprende amando”: o tempo passado não destrói, apenas, relações enfraquecidas com os anos. A construção é feita igualmente no tempo. Poucas são as ligações fortes, em geral nutridas desde o berço, ou mantidas intactas no percurso.

Numa época de escassez e velocidade, a água, que já foi símbolo de placidez, é metáfora da turbulência. Sensações e sentimentos fluidos são turbulentos. Precisamos redescobrir a água. Ao invés de nos atirar à correnteza, mergulhar lentamente, reencontrar a lentidão.

Para reencontrar os mundos possíveis dentro e fora do nosso. Cada encontro não tem que ser um esbarrão. Lembranças podem ser doces e longas, e não um fragmento de memória quase cego de tão veloz.

Temos medo das invasões. De entrar sem convite, receber sem vontade. Ainda assim nos estranhamos – e talvez o temor seja o próprio estranhamento. Não há jeito. Familiares se estranham, grandes amigos se estranham, pessoas íntimas se estranham. O que nos leva a buscar em desconhecidos, e no convívio breve, momentos interessantes.

Aproximar-se é invadir, afastar-se é abandonar, no leito de água corrente. No leito de água corrente, qual a melhor distância para dois? Qual a melhor para todos?

Aproximar-se sem invadir, afastar-se sem abandonar, mergulhados num mundo alheio que nos reconhece em progressão – eis o cultivo do outro que nos arranca de vez em quando da abissal condição humana.

Cultivo capaz de transformar habitantes paranóicos em um mundo sedutor.


Invasão de domicílio (Breaking and entering, Inglaterra/EUA, 2006)
Direção: Anthony Minghella
Com Juliette Binoche, Jude Law e Robin Wright Penn.