30.12.07

Promessa do amor

A promessa do amor distante reduz a chance de erro enquanto protege o sonho contra a realidade. Uma chama elevada consome a paixão afastada até restarem pequenas brasas entre as cinzas da união abstrata.

Se o amor não está do lado, não está em lugar nenhum. Ou segue no mesmo barco, ou não espera na outra margem, de braços prontos pra quando o amor aportar. Então, não ir, desistir da luz que desponta longe? Nunca. Mas ir atrás de uma imagem, de um ideal, é bem diferente de encontrá-los no fim do caminho.

Embora a aventura amorosa sirva-se com fartura das trilhas da imaginação, e o coração romântico se fortaleça na plenitude de sua fraqueza – antecipando a falta que lhe traz companhia – a aventura é maior e verdadeira na troca do idealismo pelo real.

Quais as vantagens dessa troca? Para começar, o desejo deixa de ser ânsia do impossível, para se tornar o aguardado prazer que se repete. O sofrimento de existir dá vez à alegria de viver. A embriaguez do espírito é substituída pela lucidez do corpo: agora o corpo manda e o espírito obedece (quando o espírito manda, o corpo adoece).

A idolatria de um ser distante – ausente – é destroçada pelo aprendizado da companhia de um ser presente. Admirar o outro é possível, mas não mais condição de permanência ideal. A admiração não é causa, e sim, conseqüência. A presença de quem sem ama é uma dádiva que se aproveita, não uma graça alcançada.

O amor como promessa não se dilui com a proximidade, nem se faz tão concreto que perca a aura sobrenatural. Mas é fora do plano etéreo e da pureza romântica que vigoram as melhores paixões – na fruição do amor, e não, de sua impossibilidade.


Noivas (Brides, Grécia, 2004)
Direção: Pantelis Voulgaris
Com Damian Lewis e Victoria Haralabidou.


23.12.07

Simbiose

No resguardo do ser animado e posto em moto próprio resiste o tecido mágico, isolante e interativo, anteparo e continuidade do mundo. Tecido formado por células que trabalham, poros que filtram, genes perpetuados. De magia nem sempre discernível no lusco-fusco de coisas fechadas para as quais parece não surgir nada.

O estranhamento do corpo libera pensamentos metafísicos que podem ir do pânico ao nirvana. Tomado por embalagem da alma, o corpo aprisiona um ente convulsivo que não se culpa ao pretender, nos piores e melhores momentos, “sair de si”.

Diante de outras embalagens – de idêntico conteúdo? – prisioneiros e iluminados têm que “sair”. É um movimento complexo, duro de entender. Movimento involuntário, quase sempre, deixando o espírito (conteúdo) embatucado.

Porque os corpos animados em torno do nosso constituem alvo de fascínio ainda maior, extensão daquele provado pela mente ao se descobrir habitante de matéria igual: montada com os mesmos átomos, na arrumação fundadora de realidade única, no tempo comum.

A saída supõe a chegada. Encontros viram desencontros. Azar e sorte se alternam na perspectiva de indivíduos que se esbarram enquanto seus corpos existem. Neuroses e paranóias aproveitam para se instalar no intervalo, nas frestas do desencaixe, nas cicatrizes mal fechadas.

O indivíduo livre devido à solidão radical do corpo deseja o fim da solidão e a abdicação da liberdade. O indivíduo anseia por utópica simbiose. Quer dividir a matéria animada – o corpo em que vive – como divide o mundo forjado e ocupado pelo pensamento.

Mas a relação simbiótica não voga para os da mesma espécie. A necessidade do outro é indireta, complementar, apenas simbolicamente vital – ou seja, em termos humanos, necessidade concreta e indispensável. De sobrevivência? Talvez não. De comunhão das impressões que atravessam as embalagens corpóreas, certamente.



Invasores (The invasion, EUA, 2007)
Direção: Oliver Hirschbiegel
Com Nicole Kidman e Daniel Craig.

14.12.07

Aproximação

Era um drama chegar perto. Um problema sem solução, a timidez bloqueia todos os músculos, exceto o coração. Um delírio à luz do dia impede raciocinar sobre qualquer outro assunto, deixando a lucidez delirante emaranhada nos fios que podem levar o pensamento fixo ao encontro do esperado destino.

Chegar perto era um dilema. O que se deseja tanto provoca tremores de causa desconhecida. Tremores de origem incerta, deixando o corpo febril e a mente inquieta em torno de uma pergunta: a própria causa é capaz de aplacar a febre?

Era uma questão de honra, chegar perto. Nada no mundo equivale ao que emana da mais íntima intuição, que se mostra no mais perfeito reflexo do lado de fora. Como o íntimo que emana do mundo, na forma intrigantemente familiar de quem nunca se viu na vida – ou a quem o costume habitou o olhar e incentivou o olho a não querer largar. Aí não se quer permitir a aparição regredir, desaparecer, se ir – pois seria como regredir, desaparecer e se ir junto.

Era difícil chegar perto. Ainda é. O porto seguro jamais se alcança, jamais é perto o bastante. Após a primeira aproximação se percebe a necessidade de outras... Porém a distância mantida não é igual, nem é igual o gosto doce de apaixonante incerteza diante do inefável prestes a se materializar.

A doçura das distâncias quebradas reserva um sabor para cada aproximação. Cada aproximação é um drama, um dilema, e uma necessidade.

Apesar da vertigem e das dores, da embriaguez alienante, da febre e da razão que se esvai, é preciso chegar mais perto. Conviver para compreender as vertigens, as dores, a embriaguez e a febre do outro. E assim compartilhar lágrimas e sorrisos, perdas e afetos como só se consegue ao rés da intimidade do mesmo mundo.



O despertar de uma paixão (The painted veil, China/EUA, 2006)
Direção: John Curran
Com Naomi Watts e Edward Norton.
Baseado no livro de W. Somerset Maugham.


10.12.07

Fuga do presente

O esquecimento faz infinito o tempo que a lembrança vê escasso. Para esquecer não há fórmula, talvez sorte. Para lembrar, basta qualquer condição que mine a chance de se distrair da contagem regressiva.

Esquecimento não é dúvida. Duvidar da finitude de tudo é tática existencial que permite a coragem insana da guerra. Mas se a tática não funciona, a iminência do fim recorda a voracidade do tempo, a coragem é diluída na vergonha – numa bravura maior.

Bravo daquele a crer no verdadeiro presente, sem engano, sem disfarce. O presente insustentável como o ser de Milan Kundera, inadiável como a busca detalhista de Marcel Proust. O presente pede a bravura, pois nem se sustenta, nem se adia.

Como explicar a verdade de um instante que muda antes de vir e prossegue mutante até sair? Do instante que somente se cristaliza depois? Ou a urgência de um segundo que por tantos ângulos em nada difere do precedente, ou daquele que poderá ser visto em seguida?

O presente não se explica. A vida é o presente que se desenrola, breve – “infinito enquanto dure”, proclamou Vinicius de Moraes. E cada um de nós tem a sua brevidade infinita. Mesmo quando a humanidade é uma mancha visível, no horror frívolo das guerras, pertence ao indivíduo o presente dolorosamente sentido como tempo desperdiçado.

No naufrágio da loucura a salvação é o esquecimento. Na tortura de uma consciente demência, na terra arrasada de combatentes iguais, de egos quase anulados, dirigir o pensamento para longe pode significar a sobrevivência. Para longe de onde? De si, do presente.

Para os dias banais de uma vida perdida cujo retorno é celebrado em sonho. Para os braços e os olhos do amor longínquo considerado o último e maior dos prêmios. Para o aconchego mental de um deus criado à imagem e semelhança dos tementes ao tempo.


Além da linha vermelha (The thin red line, Canadá/EUA, 1998)
Direção: Terrence Malick
Com Sean Penn, Adrien Brody, John Cusack e Ben Chaplin.


4.12.07

Livros não viram cinzas

Letras enfileiradas em palavras. Palavras encadeadas em frases. Frases agrupadas nas estrofes e parágrafos, reunidos em páginas numeradas para encadernação. Os livros são objetos construídos. Com muito suor e, quem sabe, lágrimas, os livros depois de prontos respiram como crianças, e falam como anciãos. Pois um livro carrega o frescor da infância e a sabedoria dos mais velhos – concentrando a vida do autor, que não passa de “um lugar em que o tempo existe”, segundo José Saramago.

Queimar livros, portanto, é querer destruir a memória viva de uma época. Cada época com seu estilo, filosofia, anseios, heresias e visionários, possui nas obras dos antepassados a representação de trilhas tomadas ou ignoradas. Queimar livros é tentar atalhar o futuro ou impedi-lo, como se na disjunção das palavras esfumaçadas fosse desfeita a história que levou aos homens e mulheres que escreveram os livros.

A realidade, lembrando Borges, é um livro de areia com páginas infinitas, onde nenhuma página pode ser lida duas vezes. “Mas o nosso dever é edificar como se fora pedra a areia…”, sugeriu o argentino que, mesmo depois de cego, continuou preenchendo os cômodos de casa com livros. Para Borges, ateu, o livro era um objeto sagrado.

Para escapar da areia que não podemos apreender, lemos bíblias, enciclopédias, ensaios filosóficos, peças literárias. Jornais, revistas e blogs. Para ter o prazer ou a ilusão de carregar nas mãos um punhado dessa areia (in)formadora do real.

Na areia movediça da ignorância, em pleno deserto de intolerância, religiosos, nazistas, feministas – e até uma associação de pais ingleses preocupados com estórias infantis de final triste – tentaram rechaçar o perigo contido em letras embaralhadas com sentido pela razão literária.

Em vão. Livros não viram cinzas. Religiosos, nazistas, fascistas, pais zelosos, todos voltaremos a ser parte do livro de areia borgeano – queiramos ou não.

O que ficará de nós, enquanto o tempo existir em algum lugar, talvez se ache nas letras encadeadas... em frases agrupadas... nas páginas do universo que construirmos.


Fahrenheit 451 (Inglaterra, 1966)
Direção:
François Truffaut
Baseado no livro de Ray Bradbury.
Com Julie Christie e Oskar Werner.