29.6.08

Notícia do eterno

Lembra do tempo em que não havia o que lembrar e a imaginação tinha que se virar para construir um mundo para os olhos que inventavam o mundo?

Saudade quando é aguda, quando é pesada, culpa. O desejo intenso de voltar atrás e refazer o caminho, consertar o que não se remenda, encontrar de novo as experiências marcantes como se fossem novidades. A lembrança é essa falsa notícia do eterno a bifurcar-se em duas direções – no labirinto do passado, beco sem saída, ou na clareira do consumado que apresenta o futuro.

Esquecer, por sua vez, é fazer de conta que o presente, ou a notícia presenciada, não existe. Ou pior: esquecer é desconhecer. Entre tantos lapsos, desconhecer a diferença entre o eterno falseado e o instante feito real. Quem não se lembra não discerne onde nem o que. Habita a eternidade da dúvida sem provar a eficácia do espanto. Para espantar-se é preciso lembrança, e como raramente vem o conhecimento sem o susto, há de ser esquecido aquele que não sabe, sequer, o que é.

Aliás, para Dante, o inferno é doloroso pela lembrança da boa hora que acomete o desgraçado na hora ruim. Como se a memória do contraste, ao invés de atenuar o sofrimento, alargasse a ferida, na tortura do condenado que não se desengana ao regressar aonde não tem como ir.

Está claro que esquecer é vital, e o que não for naturalmente (automaticamente) esquecido, lembremo-nos de esquecer. Mas lembrar o que for para lembrar. Para saber mais, uma vez que lembrar é saber. O conhecimento é o resgate do conhecido, depois do sonho da descoberta.

Para amar? Pode ser, já que esquecer é deixar de amar, no mesmo dicionário romântico que define o amor como a recordação que não passa. A incursão psicanalítica diz que não pensar é uma maneira de reprimir o sentimento que a lembrança permite.

Além de conferir ao mundo coerências particulares e alucinações procedentes, essa falsa notícia do eterno permite a cada um personalizar verdades, conceber mentiras e assumir ilusões antigas.

O labirinto sem saída é um lugar para se visitar, não para viver lá.


Allegro (Dinamarca, 2005)
Direção: Christoffer Boe
Com Ulrich Thomsen e Helena Christensen.


18.6.08

Do amor que se deseja

Se pudéssemos matar em nós a morte que nos mata – viveríamos mais?

Ele nem pensava nisso. Antes de matar a morte que lhe mata tentaria afastá-la da dela, na esperança de que ao menos enquanto estivesse por perto ela estaria segura.

E se para preservá-la tivesse que fazer mais, aumentando a força que os atrai até o limite da resistência? Não hesitaria. Crer na atração é descrer que haja limite. Preservá-la seria saber que resistia, e sabê-lo seria preservar-se, resistir junto.

Mas a permanência cobra tarifa. A do sonho romântico é o realce da impossibilidade... Um sonhador francês já descreveu o arco patético do ciúme em face do alcance mínimo dos corpos como algo fadado ao desespero. Só que eles não leram, ou não se importaram com as minúcias românticas de Proust. De corpos intactos e intácteis, incapazes de se tocar, reescreveram a história dos que desfrutam e padecem de amor perfeito, em que a paixão não recua nem o desejo se sacia.

O tom de paradoxo não descolore o estranho apelo neoromântico. Em seu amor transparente, a impossibilidade recua diante da ternura, a infelicidade típica dá vez a uma alegria convicta: a alegria dos que têm ciência de que não podem ser mais próximos do que são. Nessa distância que não se quebra – nem é expandida – a utopia particular dos amantes impossíveis se forma.

Era como se o poder da vida e da morte selasse uma antiga promessa que se cumpria enquanto não se consumasse. A ressurreição dela não implicava senão a relativa renúncia de ambos ao amor que não se sepultava, diante da recuperação de uma beleza conjugada que julgavam para sempre perdida.

Se podemos viver em nós a vida que vem de fora – sim, vivemos mais.


Pushing Daisies (1ª temporada, EUA, 2007)
Criado por Bryan Fuller
Com Anna Friel e Lee Pace.