31.8.08

A longa espera do medo

No confronto entre sair ou ficar, fugir ou se manter preso, crescer ou estagnar, envelhecer ou não vivenciar, partir ou não voltar, viver intensamente ou apenas não morrer nunca – a demora indecisa desperta os piores temores e as melhores fantasias infantis.

A jornada tem início com o passo rumo ao desconhecido. O desconhecido, esse monstrengo moldado pelo medo, essa sombra esquisita e irreal. Curiosamente a armadilha do monstro não afasta, chama. O monstruoso também atrai. Impensáveis fantasmas ganham vida, como num sonho aberto aos olhos. O sonho não é pesadelo porque não é puro susto: contornos bizarros, aos poucos, viram contornos comuns, coerentes com o território a ser desbravado – se antes inconcebível, logo antecipado pela nova respiração.

Na terra da fantasia, o chamado à sobrevivência é igualmente potente. A intuição criativa da imaginação navega nas águas do instinto. E se depara com a inevitabilidade da luta. Luta, aqui, não tão violenta quanto lúdica. Na suspensão espacial do sonho, o risco é um salto seguro, mesmo de altitude insabida. Para o virtual corpo onírico, a luta inevitável se adéqua ao desejo profundo de seguir lutando.

O confronto de todos os medos impõe ao desejo profundo, em seguida, um outro desejo: o de ir além, superar caminhos trilhados, transpor barreiras carcomidas e alterar o horizonte interno com uma nova visão defronte. Como o desejo, mais ou menos amedrontado, dos momentos de passagem – dos movimentos de mudança.

O ideário da mudança é a mesma biblioteca simbólica do movimento, cheia de túneis e pontes, paralisia e velocidade. Para sair da longa espera do medo, a fantasia dá vez ao mundo simples que se pôs de cabeça para baixo. Depois que tudo se explica em exagero sob a vigência do medo, o percurso da espera é desfeito. Afinal, simplificar é a função do susto.

Toda criança madura sabe disso – mas nem toda criança medrosa amadurece.


A viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi, Japão, 2001)
Animação
Roteiro e Direção: Hayao Miyazaki.


26.8.08

O olhar íntimo está lá fora

Impossível é o que não acontece. Previsível é tudo que se espera. O que não acontece também se prevê, e talvez exista uma hora ou data marcada, uma espécie de tela de aviso de não-chegadas.

O amor como se canta o amor não é possível até que seja imprevisível. Até que não seja visto com antecedência, a quilômetros de distância, como uma sombra, uma ausência intuída na soma geral dos átomos no universo. Quando algo está faltando claramente, o amor aparece. E surge como aquilo que falta, presumivelmente impossível.

Não fosse a poesia recorrente, a insistente chama, a compreensão tardia, o amor teria como definição perfeita ser uma patogenia: algo de mórbida fonte. Mas colocamos a sua raiz no objeto, na luz de um olhar que não se esquece, no calor de um corpo intocado. O amor, pensamos, nasce no outro, e nos atinge por natureza, por destino, por inevitável sorte.

Uma conjunção de fatores complexos é necessária para a realização amorosa. Um alinhamento raríssimo de corpos celestes espelha o alinhamento raríssimo de corpos terrenos. É preciso que estejamos aqui, no mesmo lugar, na mesma hora, no mesmo humor, com os mesmos dilemas e vontades. O amor tinha que ser uma exclusividade literária. Só a literatura o torna inteligível. E ainda assim as palavras não se cansam de se provar batidas, pequenas e dispensáveis, pois na essência romântica pulsa o orgulho do que jamais é concretizado – ainda que venha a ser toscamente dito.

Mas uma conjunção de fatores complexos não significa obrigatoriamente sorte. A sorte muito maior é descobrir a paixão por outra fonte, porque no amor a sorte é a origem mais mórbida. Existem outras? Para o romantismo enfeitiçado e para a cultura romântica, não. Nem a amizade que evolui, nem aquela que degenera. Somente um raio de inexplicável poder que se abate sobre corações vazios, preenchendo-os subitamente com a imagem imutável e insuperável do outro.

Ela pode ser quem não esquecerei, a face eterna do arrependimento, a conquista mais cara, o preço mais alto que pagarei. Ela pode ser a melodia do tempo que sei de cor, mas não cantei. Ela pode ser o anjo dos meus sonhos, sorrindo ao meu reflexo, mesmo quando o espelho não for o que esperei. Ela pode ser para sempre uma alegria na multidão, o olhar íntimo do meu olhar. Ela pode ser o amor que não foi feito pra durar, um amor do passado até o fim. Ela pode ser o motivo que me faz viver, imaginando que estou onde ela está, e o sentido de seja lá o que for que mora em mim.


Um lugar chamado Notting Hill (Notting Hill, EUA/Inglaterra, 1999)
Direção: Roger Michell
Com Hugh Grant e Julia Roberts.