21.11.08

O ego da paixão

Na busca de uma causa para grandes efeitos, achamos que vem do lado de fora o que se pronuncia em nós, agudamente, por dentro. Os olhos explodem, fixados, enquanto o pensamento se remexe no esqueleto, inquieto. A nova disposição pede reações físicas, concretas, que exprimam a forte sensação de mudança. O indivíduo se percebe num mundo dinâmico e deseja participar dele – aliás, deseja mais: quer tirar do mundo o velho molde, e fazer com as próprias mãos uma realidade menos estranha à imagem que enxerga em seu espelho.

A contínua vertigem apaixonada é o segredo dos grandes artistas, para Unamuno. Talvez seja. Mas a vertigem cobra o seu quinhão. A paixão é um estado alterado, cujas perturbações se manifestam à flor da pele em simultâneo a tempestades íntimas. O preço cobrado varia do breve deslocamento de rota a um longo período à deriva. Sim, o apaixonado é capaz de impressionantes feitos. A paixão do gênio não deve ser confundida, contudo, com o gênio da paixão. Nem todo fruto de almas agitadas é reconhecido depois como fruto genial.

Já no palco do romantismo amoroso, a intensidade do encontro desvela a carne da paixão vestida nos trapos da ilusão – de pares que se fundem ou se opõem, em harmonia ou brutalidade. A paixão extrema tende ao fim no limite do mesmo horizonte que a deixa viva. Nesta situação, o crime passional realiza a metáfora do amor perfeito na potência máxima do ego em descontrole – onde o pensamento “morro por ti” não hesita em virar “morres por mim”.

Na Folha de São Paulo, Contardo Calligaris, ao comentar o filme, diz que a paixão é tentadora porque representa a idealização da vida plena, da vida intensa. De fato. E essa idealização também é a da experiência culminante do ego na escalada de si mesmo. Os superlativos não escondem: são aventuras de egos as paixões. Se o Dr. Contardo avisa que não basta esbarrar nela, “é preciso encará-la quando ela se apresenta”, entre outros motivos, é porque encarar a paixão significa mergulhar no self, no desejo, na possibilidade de ser outro, com a esperança de transformação radical.

Nas paixões, o indivíduo vê a chance de trair-se, de abandonar-se, como se um aguardado caminho de fuga se abrisse... Em pura contradição, é claro, com a paixão convicta de que jamais se foi tão sinceramente verdadeiro. Essa esquizofrenia da paixão, quando não levada demasiadamente a sério, permite que se brinque com ela, como escreve Calligaris, “sem perder a ilusão da liberdade” de que necessitamos.

Pois em cada paixão se traduz um indivíduo – somatório único de medos, sonhos, certezas e delírios. Para cada ego, um coração, de onde partem sentimentos e atos, ou se desdobram palavras e obras no deslumbre que provoca o surgimento de si.


Vicky Cristina Barcelona (Espanha/EUA, 2008)
Direção:
Woody Allen.
Com Scarlett Johansson, Rebecca Hall, Penelope Cruz e Javier Bardem.