16.2.10

Holmes é Bond, House é Holmes



O artigo de Marcos Nobre na Folha de S. Paulo de hoje faz uma comparação interessante entre o novo filme de Sherlock Holmes - que está mesmo mais para o 007, James Bond - e o "detetive do diagnóstico", personagem da TV atual, Dr. House.

Talvez quem esteja mais acostumado ao Sherlock mais "cerebral" do que "ativo" estranhe a escolha do diretor, mas é questionável se o componente dinâmico dos filmes de ação - e do destaque para o uso do corpo tanto quanto da mente do famoso detetive - de fato prejudique o resultado, arranhando a imagem que temos de Holmes.

Acho que não. A abordagem é diferente, e acrescenta mais do que subtrai à figura tradicional - e caricatural - do grande detetive da ficção.

Abaixo, a íntegra do artigo de Marcos Nobre:

Holmes e House


QUEM NÃO ESTÁ ligando para o Carnaval talvez tenha ido ver o filme "Sherlock Holmes". Se foi em busca de um detetive genial, a decepção foi grande.


É um filme de ação. O diretor Guy Ritchie usou esse formato para combater manias mágicas e panteístas que vieram com "Avatar" e com séries como "Harry Potter" e "Crepúsculo". Quer mostrar que por trás da mística suave e sedutora se oculta dominação bruta. Tirou de Holmes a aura intelectual e lhe deu músculos e força. A lição é que magia não se combate com delicadeza.


O problema é que Ritchie acabou substituindo o misticismo por um endeusamento da ciência e da tecnologia, sem nenhuma crítica aos efeitos mistificadores que também a ciência pode ter. E submeteu o gênio à lógica da pancadaria.


O tema fundamental do Holmes da literatura é o de entender o que é e como funciona o gênio. Como o gênio é anticonvencional, acompanhar seus raciocínios acaba tendo o efeito de desnaturalizar ações cotidianas que fazemos maquinalmente. Ao perseguir junto com Holmes as pistas dos crimes, tornam-se conscientes convenções sociais que seguimos sem pensar.


No contexto repressivo da Inglaterra da rainha Vitória, naquele final do século 19 em que Conan Doyle inventou o personagem detetive, não foi pouca coisa.


Para quem procura esse Sherlock Holmes, o melhor é assistir a um seriado de TV. "House" é um médico que investiga casos considerados perdidos ou indecifráveis. Para descobrir o assassino invisível de seus pacientes, House engana, manipula, fere, destrói. Parte do princípio de que todo mundo mente, pacientes em especial. Ignora e desrespeita o quanto pode as leis e o código de ética médica. Sua única e profunda satisfação é provar que está certo.


House acredita que só se conhece verdadeiramente uma pessoa em situações extremas. Como as dos seus pacientes ou as dos médicos que submete a seus jogos de poder. Desse lugar privilegiado de observação, aprende como uma criança como supostamente funciona o estranho mundo que se diz adulto. Além de todas essas semelhanças, House também é viciado em um opiáceo sintético. Holmes era usuário regular de morfina e de cocaína.


Claro, não se trata de crimes, mas de doenças. House é um Sherlock Holmes em ambiente de laboratório, devidamente medicalizado. Ao contrário do Holmes de Ritchie, House manca, usa bengala.


Mas a verdade é que faz bem pouco sentido procurar qual seria o Sherlock Holmes "autêntico". Mais interessante é saber figurar de maneira inteligente a lógica implícita das convenções sociais.


nobre.a2@uol.com.br