23.11.11

Natalie e a imagem da beleza




Toda beleza é momentânea, desafia o instante,
insinuando a duração utópica que desponta no belo



Dias atrás, a notícia de reabertura das investigações sobre sua morte ganhou destaque na internet, na TV e nos jornais do mundo inteiro. Assim, trinta anos depois de deixar-nos, sua lembrança meiga mais uma vez nos arrebatou. O retorno à mídia provocou uma avalanche de acessos e exibições de poses regatadas. O brilho de Natalie Wood estava de volta. Uma multidão de olhares foi atraída pela imagem desaparecida há tanto tempo, como se algo de eterno pudesse, através dela, ser vislumbrado.

Pena que a imagem recuperada não recupera a beleza perdida, assim como a atriz que salta do baú midiático não pode ser devolvida ao convívio de fãs, dos amigos e da família. Reforçando a afirmação proustiana de que a beleza das criaturas humanas é diferente da beleza das coisas, o retorno de Natalie Wood às telas e às manchetes também serviu para ressaltar que a imagem da beleza é a beleza imaginada. Foi por via da imaginação ideal da forma feminina, ainda encontrada nela, que bastou se atiçar a memória do público – e a curiosidade dos que não a tinham visto antes – para que emergisse facilmente a admiração recordada de sua graça. Um encanto antigo, reaceso, um deslumbramento coletivo, mediado e multiplicado, repartido feito pão aos famintos do belo.

Decerto o motivo do reencontro desperta a nostalgia em torno da estrela de Holywood. E quem sabe a nostalgia de uma época mais simples, em que a aparência ideal não sumisse num emaranhado de máscaras – e faces tão preparadas que parecem mascaradas, ansiosas, à espreita de luz e atenção. Mesmo que ambas, quando cheguem, raramente primem pela permanência.

Apesar da ilusão, o fato é que nem as deusas do cinema recebem o dom da beleza eterna. Toda beleza é momentânea, desafia o instante, insinuando a duração utópica que desponta no belo. Tentar reprisá-la é tentar reeditar o instante que ficou para trás. Por sua vez, a mimetização imagética recorre à união da memória com a imaginação, à melhor maneira platônica. Novamente Marcel Proust: a beleza não é senão uma série de hipóteses.

Acreditamos hoje que Natalie Wood era linda, e dificilmente pensaremos o contrário ao mirar suas fotos e seus filmes. Mas a beleza da imagem está menos no que revela, e mais no que sugere. A beleza que está além da imagem – e se inscreve no campo de visão de uma verdade que se oferece – compartilha o alcance dos olhos com o desfrute do tempo vivido. O que é algo, por enquanto, impossível de reproduzir.

10.11.11

O pulso e o olhar




Toda contagem do tempo é contagem regressiva






É como algo “desperdiçado, dissipado suavemente”, que ela goza do muito tempo que tem. O desperdício suave que se dissipa – imagem de Hermann Hesse em “O lobo da estepe” – revela a culpa de quem gasta o que não se acha no direito de possuir. Para expiar o pecado sem perdão, deixa o tempo exagerado em sua carne escorrer sem pena entre as mãos. E mesmo assim não se desata da impressão de que o futuro é um local distante, para onde, por mais que corra, irá demorar a chegar.

Olha para o pulso – do tempo contado, acumulado e perdido... toda contagem do tempo é contagem regressiva – e imagina o próximo perigo: a duração prolonga a ansiedade e o tédio, e os renova sempre que ela fita os números girando no braço, na corrente eterna sob a pele. A liberdade, se existe, é fora do tempo, pensa, enquanto antevê o minuto seguinte, a semana que vem, o ano adiante.

Todo indivíduo é um relógio diferente... então como o tempo poderia nos fazer iguais? Ela queria viver num mundo em que se partilhasse o tempo comum, e fosse dispensado o conceito utópico da eternidade. O que é eterno, além da prisão do tempo? Sair dessa prisão seria sair da ideia, subitamente inútil, do infinito temporal. Sem a medida, que restaria do que se mede?

Ela aposta que o que sobra é a poesia sem escala, inconsumida, como o vazio incompreendido entre as estrelas, o vácuo entre astros que se atraem. Quanto tempo dura um olhar? Como se conta o instante relembrado inúmeras vezes, retocado pela memória e incorporado à imaginação – que não se rende à contagem comum, ao cerceamento ilusório do grilhão inexistente?

É preciso vencer a ilusão. Ela decide estancar o tempo, deter o império da cronocracia. Tomar o poder do tempo, assaltar os seus bancos, desafiar os mesquinhos guarda-costas, arrombar os cofres cheios de tempo sem uso... e distribuir tudo para os sem-tempo, os pobres-coitados que esmolam por horas velozes e dias curtos, que logo se vão.



O preço do amanhã (In time, EUA, 2011)
Direção: Andrew Niccol.
Com Olivia Wilde, Amanda Seyfried e Justin Timberlake.

5.11.11

Fertilidade do caos



O caos não suspende a ação por causa de uma entre outras ordens possíveis



A paixão ganha razões elementares no contraste com a privação dos prazeres, a dor prolongada e a perspectiva de morte prematura que fazem da guerra o cenário perfeito para a celebração da vida.

E a razão ganha argumentos apaixonantes diante do quadro desolador, do desespero reinante e das ruínas que nascem por todos os lugares em que a esperança se defronta com a destruição e a perda.

É do realismo chocante que brotam as raízes do delírio. É da brutalidade que se oferece com insistência à vista que a ternura se impõe necessária. É da penitência generalizada pelo terror que o perdão aparece sem esforço.

A culpa se espalha na poeira da devastação. Escombros e cicatrizes, todavia, não ficam totalmente para trás. O caminho também se faz do tropeço em escombros, e há feridas reabertas no menor passo adiante.

Pode demorar até que a redenção traga a reboque a coincidência entre o romance e a paz, unindo a liberdade de fora com a de dentro, selando o encontro do luto com um novo caminho, que surge surpreendente, confortante, sem explicação.

Sim, o caos cria mundos, novos sentidos, e até recupera antigos – mas o perigo da fertilidade caótica é que ela pode continuar indefinidamente. O caos não suspende a ação por causa de uma entre outras ordens possíveis.

O caos não para de semear e matar, como guerra sem origem sabida, nem desfecho previsível.



Esses amores (Ces amours-là, França, 2010)
Direção: Claude Lelouch
Com Audrey Dana e Dominique Pinon.