24.7.12

Neurofilosofia



A ciência costuma abrir trilhas para a investigação filosófica, ao lançar novas perguntas a partir das respostas que elabora. O trabalho do conhecimento não tem fim, e por isso é instigante, apesar de parecer cansativo para quem não se dispõe a enfrentar questionamentos constantes que podem reformular o modo como se vê o mundo – ou ainda, como o indivíduo se vê no mundo que o recebe e envolve.

Se os avanços científicos limpam o terreno para a exploração do pensamento, nas últimas décadas grandes excursões foram possibilitadas pela neurociência. O mapeamento do cérebro e suas relações com o que sentimos e fazemos proporcionou a abertura de veredas incríveis que mudaram a percepção que tínhamos da sua complexidade e do seu papel no organismo humano. O “computador úmido”, na expressão do neurocientista David Eagleman, seguiu a linha evolutiva para desenhar adaptações para a espécie. Neste trajeto, longe de ser um receptor passivo, o cérebro molda a realidade que observa: a subjetividade possui a função objetiva de garantir a sobrevivência, e para isso o cérebro é plástico, dinâmico, e não estático.

Do mapeamento cerebral surge a base para um novo salto – a leitura do cérebro. Em entrevista à Veja, outro neurocientista, Philip Low, falou de um novo aparelho, batizado de iBrain, que ajudará pessoas como o físico Stephen Hawking a se comunicarem. Hawking, gênio que desvendou mistérios referentes ao horizonte de eventos dos buracos negros, atualmente se comunica pelo movimento de músculos da bochecha... mas nem isso será capaz de fazer em breve, por causa do agravamento da doença degenerativa que o mantém prisioneiro no próprio corpo desde a juventude.

A comunicação direta entre o cérebro e uma máquina, que já permite a realização de movimentos virtuais a grandes distâncias, como provou, entre outros, o cientista brasileiro Miguel Nicolelis, antecipa algo imaginado pela ficção científica: o diálogo da telepatia. Diante das vertigens da neurociência contemporânea, no entanto, essa é apenas uma das perspectivas vislumbradas da janela mental.

A pesquisa científica nunca se resume às conquistas que assume. As descobertas, mais cedo ou mais tarde, são pontos de apoio para dúvidas que extrapolam o âmbito do conhecimento de cada época. É assim que a física quântica e a teoria da relatividade amparam, hoje, viagens teóricas como a teoria de cordas, os universos paralelos e o multiverso holográfico. No caso da neurociência, assim como na leitura do genoma, as questões imediatamente postas desafiam os conceitos estabelecidos de natureza humana, de consciência e, para alguns, até de uma alma além da mente.

O mapeamento do cérebro já mostrou que os animais dispõem de níveis de consciência similares aos nossos, embora não carreguem a inteligência consciente que nos atribuímos. De acordo com Philip Low, o que a neurociência procura agora é “descobrir se a consciência está confinada a uma área única do cérebro e se pode ser gravada, preservada e reproduzida”. Isso mesmo, como uma memória transferível do “computador úmido”.

É compreensível e desejável que o ceticismo equilibre o delírio no esboço de explicações para perguntas que talvez jamais venham a ser respondidas. Como de hábito, a filosofia corre atrás dos cientistas num primeiro momento, para em seguida buscar a visão privilegiada do que se descortina aos observadores, em um universo em expansão contínua.



9.7.12

Do local para o global



A extensa pauta de discussões, a quantidade de pessoas e organizações presentes e até as extravagantes manifestações que deram ao encontro de quase duas semanas um clima de carnaval fora de época, criaram a expectativa de que a Rio+20 poderia ter um saldo melhor. Nos últimos dias da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a chegada de chefes de estado reacendeu a esperança de que o documento tímido apresentado pelas delegações, chamado ironicamente de “rascunho zero”, pudesse sair do zero e ser mais que um rascunho, ao receber o título pomposo de “O futuro que queremos” em sua versão final. Mas a chama logo se apagou. Os presidentes passaram, e as metas para um planeta sustentável foram atiradas, como de hábito, para o terreno semeado pela insustentabilidade.

A sensação de frustração no âmbito dos acordos de cúpula, que ignoraram a necessidade de objetivos concretos perseguidos por políticas de amplo alcance e medidas de ruptura dos padrões de consumo, não foi propagada pelo governo brasileiro. Como anfitriã, a presidente Dilma Rousseff insistiu na defesa do minimalismo pactuado, apesar das lacunas evidentes. Ao abdicar da pressão sobre as nações visitantes, o Brasil se limitou a hospedar o maior evento sobre sustentabilidade já realizado, sem exercer a liderança que naturalmente nos caberia. Um País com o capital verde como o que nós dispomos não poderia apenas abrigar a conferência das Nações Unidas com “calorosas boas-vindas”. Foi muito pouco.

Rebatendo as críticas que saíram de todos os lados, o secretário geral da Presidência, Gilberto Carvalho, disse que “seria muito pobre reduzir a Rio+20 apenas àquilo que é o documento final”, preferindo enaltecer a “festa democrática” realizada com sucesso e sem atropelos – embora os moradores do Rio de Janeiro tivessem razões para reclamar, especialmente da falta de mobilidade que entupiu a cidade por causa da passagem das comitivas, apesar da decretação de três dias de feriados escolares e no serviço público. A afirmação de Carvalho serve como reconhecimento oficial do curto fôlego de um documento cercado de grandes expectativas, e que resultou em grande decepção.

O consolo daqueles que participaram das atividades no Riocentro e nos debates e exposições paralelas, como no Forte de Copacabana, no Jardim Botânico e na área portuária do Rio, bem como dos atentos olhares no resto do País e do mundo, é que fica cada vez mais claro o papel de protagonismo das esferas governamentais e não-governamentais locais, diante dos impasses de uma agenda internacional paralisada pela crise financeira. O desafio, a partir do fracasso institucional da Rio+20, é acelerar o mecanismo de programas e projetos exitosos, com base em pressupostos comuns que fazem das iniciativas de ONGs, empresas e prefeituras a melhor aposta, não para o futuro que queremos e não sabemos concretizar, mas para o futuro que podemos construir imediatamente, sem hesitar, nem depender das complexas teias da desgovernança global.

Editorial do Jornal do Commercio, 9/7/12.

19.6.12

A capela dos consensos



Enquanto os impasses aumentam a impaciência dos delegados oficiais e o ceticismo dos convidados credenciados no RioCentro, onde se produzem os documentos para os chefes de estado que desembarcam esta semana, bem longe dali, no Forte de Copacabana, o clima é diferente.

Pra começar, o aglomerado à entrada, o dia inteiro, todos os dias, de gente disposta a passar até duas horas na fila para ver uma exposição sobre o meio ambiente, promove o impacto visual necessário para preparar o espírito de quem vai lá com outro propósito: o de expor ideias e experiências na programação de debates do Humanidade 2012, um dos eventos paralelos da Rio+20.

O principal espaço dessa programação integra a exposição, e está aberto à visitação do público. Foi batizado de Capela Humanidade, numa concepção que recorda o caráter uno da nossa espécie, com dizeres inscritos nas paredes, ilustradas ainda, até o teto, com bonequinhos representando a raça humana. A sala possui uma mesa central, redonda, para os debates, e é rodeado por livros, a partir de listas sugeridas por personalidades. A cor predominante é o dourado, talvez simbolizando a riqueza do conhecimento.

Como se já não bastasse a inspiração da decoração, há um ritual antes de cada encontro, que também acontece noutros momentos, quando a visitação é intensa. Trata-se da “cerimônia do pêndulo”, em que um pêndulo colocado no canto da mesa central, ligado por um fio à cúpula da sala, se desloca para o centro, representando a busca de prumo para a humanidade. Em seguida, ao som de cânticos, pássaros brancos de plástico atravessam as paredes da biblioteca, de um lado a outro, proporcionando um sentimento de integração com a natureza.

É desta maneira que as conversas são introduzidas. Então, na alternância de vozes em inglês e português, com tradução simultânea e a mímica da linguagem Libras, os consensos brotam com naturalidade. Ainda que seja em cima de situações de extrema dificuldade de abordagem, ou sobre cenários nada otimistas, parece que o som da capela é o som do consenso dos povos, em contraste à cacofonia paralisante da divergência dos governos nacionais e dos corpos diplomáticos reunidos no RioCentro.

No painel sobre urbanização de favelas, por exemplo, ficou patente o papel da infraestrutura habitacional na construção da sustentabilidade. O arquiteto Cláudio Acioly, da ONU-Habitat, apresentou números inquietantes sobre o aumento da favelização no planeta, impulsionada pela transferência em massa das zonas rurais para as cidades. Essa é uma tendência mundial preocupante para a qual não se vislumbram soluções tão cedo. “E não dá pra pensar em sustentabilidade num mundo de favelas”, disse Acioly. No mesmo painel, o governador de Lagos, na Nigéria, Babatunde Raju Fashola, foi enfático: “Enquanto não tivermos uma política global de controle populacional, não conseguiremos avançar muito”, falou o africano, sem disfarçar o cansaço de quem está acostumado a travar uma luta invencível.

Noutro debate, estavam à mesa ambientalistas e empresários para discutir como estabelecer uma agenda comum. Representantes das federações industriais de São Paulo e do Rio de Janeiro estavam à vontade para dialogar com o Greenpeace e outras organizações. Daquele encontro, saiu a sugestão de criar um curso de MBA sobre o bioma amazônico, por exemplo, e ficou a sensação de que todos se entendiam perfeitamente. O criador do conceito de “pegada ecológica”, que mede a quantidade de recursos naturais necessária para uma localidade manter seu padrão de consumo, Mathis Wackernagel, lembrou que o planeta atualmente consome uma vez e meia suas reservas naturais em um ano. Dois consensos decorreram da mesma discussão: a adequação dos padrões de consumo de cada nação à capacidade global de recursos naturais, e a mudança na medição de riqueza, incorporando-se custos e benefícios ambientais aos valores tradicionais do Produto Interno Bruto (PIB).

Até os Estados Unidos entraram na capela dos consensos da Rio+20, através da participação de Shalini Vajjhala, da agência norte-americana para o meio ambiente (EPA). A representante do governo Obama dividiu a mesa com gestores das prefeituras da Filadélfia e do Rio de Janeiro. Para Shalini, o problema da sustentabilidade não é dinheiro, e sim, o tamanho dos projetos: são quase sempre pequenos demais. Todos foram convencidos de que é preciso formatar os projetos em larga escala, transformando iniciativas isoladas em empreendimentos maiores que garantam a sua viabilidade econômica.

Como se dá pra perceber, nem sempre os consensos resolvem a questão. Mas partir de pontos de vista comuns já é um avanço. Inclusive à vista de retrocessos evidentes e obstáculos de porte. Para Ana Toni, do Greenpeace, que lidera um movimento de “desmatamento zero” para a Amazônia, o governo brasileiro está devendo ações concretas em defesa do meio ambiente, especialmente depois do Código Florestal e dos incentivos à compra de veículos. Quanto aos obstáculos, Walter De Simoni, da secretaria estadual de meio ambiente do Rio de Janeiro, ao questionado sobre o futuro da sustentabilidade num estado em que a perspectiva de desenvolvimento vem da chegada de grandes empreendimentos da antiga economia, como siderúrgica e indústria automotiva, foi simplesmente pragmático. Respondeu esperar que daqui a quatro anos se veja um quadro diferente, com a economia mais verde, mas por enquanto é o que o Rio dispõe, e não pode desperdiçar.

Eis o ponto em que o consenso estanca. Em Pernambuco, acontece o mesmo. No Brasil e em outros países emergentes, o presente insustentável não atrapalha o sonho de um amanhã de esperança, embalado pelas preces da humanidade na capela. 

14.6.12

O futuro está nos olhos deles


Com vontade de influir nas decisões tomadas para mudar o mundo, 
milhares de jovens participam da Rio+20


Muitos deles nem eram nascidos em 1992, quando o Brasil recebeu pela primeira vez um encontro de cúpula internacional sobre o meio ambiente. A maioria dava os primeiros passos ou entrava na pré-adolescência, e nem sonhava em fazer parte daquilo duas décadas mais tarde. Mas a geração com menos de 30 anos é a grande depositária da esperança dos rumos da Rio+20, e por isso a voz da juventude terá grande destaque no evento.

Ontem, foi encerrada a reunião do grupo de interesse de crianças e jovens da Organização das Nações Unidas (ONU), no Centro de Convenções Sul América, no centro da cidade. Dois mil jovens de 120 países estiveram presentes, expondo seus problemas e ideias, discutindo experiências e ajustando como levar a visão deles para o palco oficial, no Rio Centro, onde terão papel garantido, e para o público que irá acompanhar tudo pela TV e, principalmente, pelas mídias sociais.

O grupo de interesse de crianças e jovens foi criado pela ONU em 1992, junto com outros oito grupos, entre os quais os de povos indígenas, de empresários e de organizações não-governamentais. Os grupos compõem espaços oficiais de diálogo entre as Nações Unidas e a sociedade, sendo coordenados por entidades sociais e ONGs, sem o controle direto da ONU. Antes de cada conferência da entidade, o grupo de interesse de crianças e jovens realiza um evento prévio, de capacitação e planejamento. “É para fazer o pessoal entender o que está acontecendo, como funcionam os instrumentos de negociação na ONU, e quais os canais de influência possíveis”, explica Pedro Telles, um dos organizadores da Youth Blast – nome dado ao encontro prévio dos jovens para a Rio+20. Pedro tem 24 anos e integra o Vitae Civilis, fundado antes ainda da ECO92, em 1989, em São Paulo, e voltado para “a governança da sustentabilidade sócio-ambiental”, segundo o site da organização.

“A gente conseguiu atingir um público que não é envolvido nas negociações da ONU”, disse Juliana Russar, 27, voluntária na Youth Blast. “Não é só os governos que vão tomar as decisões, é importante a participação de toda a sociedade. Organizações e indivíduos que façam parte dos grupos podem influenciar as decisões da ONU”, acredita Juliana, coordenadora de uma entidade criada em 2008, voltada para a “busca de soluções pra crise climática”, segundo a expressão dela. Chama-se 350.org, em referência à concentração de carbono na atmosfera considerada segura pelo cientista da Nasa, James Hensen, de 350 parte por milhão (ppm). Atualmente essa concentração está em 400 ppm. Na Rio+20, Juliana e seus amigos da 350.org promoverão uma campanha pelo fim do subsídio aos combustíveis fósseis.

A estimativa é de que cerca de três mil jovens participem da Rio+20 a partir de hoje, quando começa de fato a programação oficial, enriquecida por uma programação paralela repleta de debates e exposições em vários locais da capital fluminense. Na Cúpula dos Povos, que acontece no Aterro do Flamengo, o Acampamento Internacional das Juventudes promete ser um dos focos de agitação e ativismo. Por outro lado, as delegações oficiais não iriam desperdiçar o apelo que vem dos olhos que miram o futuro. O governo brasileiro tem na delegação 12 jovens, cuja missão será tentar traduzir o pensamento das novas gerações do País, que será o centro das atenções do planeta nos próximos dias.

A energia abundante da pouca idade também está sendo aproveitada no trabalho voluntário na gestão de um evento de grande porte como a Rio+20. São 1.200 voluntários oriundos de universidades e escolas técnicas de todo o Brasil, além de alunos da rede pública do Rio de Janeiro. No encerramento da capacitação, no Museu de Arte Moderna do Rio, o ministro Laudemar Aguiar, coordenador do comitê de organização do evento, cuidou de estimular mais os jovens colaboradores: “Vocês são multiplicadores das ideias de sustentabilidade, de inclusão social, de acessibilidade e de erradicação da pobreza”. 

E são mesmo. Mas a ocasião é importante demais para que se percam oportunidades de abertura de novos caminhos, ainda que se tenha a continuidade de um debate que vem de pelo menos quatro décadas, desde Estocolmo, em 1972. Na Rio+20, o melhor é que nas faces da juventude se veja a expressão de seus anseios e sonhos, a mobilização da liberdade criativa que impulsiona o conhecimento, e não apenas a condução de planos ultrapassados que caducaram sem jamais terem sido postos em prática. Que sejam multiplicadores das próprias expectativas, e não meros repetidores da monotonia dos discursos frustrados dos embaixadores da diplomacia ambiental. 

(Jornal do Commercio, 13/06/12)

Foto: Youth Blast/Fora do Eixo

27.5.12

O vício de si


O silêncio do hábito esconde o vício que parou num porto do acaso


Quando a silenciosa trajetória da rotina é interrompida, explodem restos deixados para trás, e surgem, como fantasmas, rotas perdidas.

O silêncio do hábito esconde o vício por baixo do tapete do tempo. Somos dependentes dos gestos que repetimos, das desculpas que damos, do prazer compensatório que nutrimos, do pensamento travado no mesmo ponto, há anos sem sair do lugar – mesmo que tenha parado ali por acaso, e longe de ser firme convicção, continua frágil como aportou.

A instabilidade dos portos existenciais é típica dos costumes de uma época retratada mais por aquilo que falta do que pelo que tem, mais pelo que se destroi do que pelo que se conquista, mais pelo que é consumido do que por outro qualquer motivo.

Então, o vício da solidão no seio da multidão se torna escudo obrigatório até no desfrute das companhias fugazes, das amizades interessadas e das relações íntimas criadas para a satisfação da rotina.

E o que aparenta ser escape do vício é, de fato, a manifestação da sua essência.


(Crônica sobre o filme Shame, de 2011, dirigido por Steve McQueen)

8.4.12

Os aliens do Xingu




Uma cultura alienígena desconhecida, que modifica tudo por onde passa, espreita o território ocupado por outra, que tira a subsistência do ambiente sem transformá-lo drasticamente. Os alienígenas aproximam-se do habitat dos nativos com a adrenalina em carga máxima. O coração dos aliens dispara ao primeiro contato com os gritos animalescos que denunciam a presença nativa. Uma torrente de medo e excitação percorre a circulação sanguínea dos visitantes, que se tomam por conquistadores de um pedaço de planeta virgem, isolado como uma ilha que precisa ser anexada ao continente – mesmo que isso seja logicamente impossível.

Os aliens vestem trajes pesados, inadequados para aquela ilha distante. Estão deslocados mas agem como se os perdidos fossem os outros. Avançam sobre fronteiras que jamais pisaram como se os estrangeiros fossem os outros.

Uma desproporção óbvia separa aqueles dois mundos. O desconforto do primeiro encontro é mútuo. A desconfiança é quebrada pelo ímpeto do alienígena conquistador, que quer a simpatia do conquistado antes de iniciar a invasão definitiva. Badulaques e bugigangas oferecidas em troca de confiança estimulam a boa índole dos nativos – ou selvagens, como são chamados pelos aliens.

A estranheza do contato permanece até o ponto do arrependimento. O que era para ter sido deixado intacto se desmanchou ao toque do olhar alheio. Dois universos não se misturam impunemente. E se havia algo que morreu pra sempre, foi por que algum outro apareceu e matou.


Xingu (Brasil, 2011)
Direção: Cao Hamburguer
Com João Miguel, Felipe Camargo, Caio Blat e Maria Flor. 

17.3.12

Democracia fisiológica




Uma das faces do pragmatismo, o fisiologismo abusa da repartição de cargos e verbas por critérios políticos, e rende, como frutos, apoio no Congresso e ampliação de alianças eleitorais. Governos montados sob bases fisiológicas, mais atentos a demandas privadas do que às necessidades da população, tendem a exibir altos graus de ineficiência e de corrupção. Seria um mal da democracia? Em entrevista à rádio JC/CBN no sábado, 11, o cientista político e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Marco Aurélio Nogueira, disse que, “antes de ser o preço de um governo de coalizão, é o preço de um governo democrático. O que se espera da democracia é justamente esse tipo de negociação”, disse Nogueira.

O professor comentou na ocasião a derrota do governo no Senado, que reprovou a indicação da presidente Dilma Rousseff para o comando da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Dias depois, Romero Jucá, virtual mentor da rebelião, perdeu o posto de líder no governo no Senado. Jucá foi líder dos governos de Fernando Henrique, de Lula e de Dilma. Deve ser um especialista na arte da coalizão e nos insondáveis caminhos da governabilidade, assim como o seu partido, que conta com o vice-presidente da República. Quando candidato, Michel Temer declarou que a vice e a participação no programa de governo eram os únicos compromissos do partido para a formação de chapa. “Não há nada disso de partilha de cargos. O que o PMDB vai fazer é colaborar com o governo. O PMDB repudia essa coisa do fisiologismo”, afirmou em um debate, em 2010.

A derrubada da indicação oficial para a ANTT revelou a crise na base aliada, e levou à troca dos líderes no Parlamento. Além de Jucá, Cândido Vaccarezza, do PT, foi destituído de suas funções na Câmara, num lance duplo transmitido como gesto de autoridade de Dilma. Debelada a crise, se assim o for, retorna o jogo do fisiologismo. “Temos um sistema que facilita a negociação em torno de vantagens e de poder, e parlamentares e partidos aceitam fazer parte desse jogo”, afirmou à JC/CBN Marco Aurélio Nogueira.

O PMDB, que sempre reclama, mesmo quando “repudia”, já havia se queixado da “gula” do PT por cargos, que estaria ameaçando a fidelidade da base aliada. Como se o PMDB não estivesse sempre lá, desde Sarney, abocanhando fatias generosas do orçamento e dando a sua contribuição inestimável para os maus serviços da máquina federal. Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, o historiador Marco Antonio Villa chamou atenção para o fato de que a disputa fisiológica escancarada, do primeiro escalão até as empresas estatais, é cada vez mais considerada natural. Mas a banalização pode cair diante dos problemas na economia, que “não está mais sustentando o presidencialismo de transação”.

Ao se admitir com tanta naturalidade o fisiologismo como elemento democrático, permite-se o alargamento ético que descamba na degeneração da própria democracia. E se embarca no relativismo que não vê com estranheza os movimentos torpes de uma democracia fisiológica.

(Editorial do Jornal do Commercio/PE, 17/03/2012)

Foto: Roberto Stuckert Filho/PR





22.2.12

Sorrisos nus


Disposição de proximidade, partilha, prazer e paz


No resto do ano as faces encobertas pelos panos das convenções, do atropelo de afazeres e pelos mantos transparentes das inibições, disfarçam a expressão solta agora, sem vergonha nem economia. O Carnaval expõe sorrisos nus.

O menino no colo do pai está desconfiado, só ensaia careta sem graça, franze a testa, vestido de super-herói. A irmã, de fita nos cabelos, faz pose com uma alegria serena. Os pais, de óculos escuros para encarar o sol de Olinda, não escondem o orgulho e escancaram a felicidade na foto de álbum de família.

Vestida de coelhinha, a menina ergue os ombros e sorri numa esquina do Recife Antigo. A mãe que não desgruda aparece no Marco Zero, de boina e um sorriso nas cores da bandeira de Pernambuco. Outra mãe que não se aguenta de emoção segura o estandarte e o filho. A garotinha de rabo de cavalo, óculos quadrados e o cruzeiro do sul salpicado na bochecha também brinca no Eu Acho é Pouquinho, flagrada pelas lentes de Juliana Lombardi. Uma geração inteira de índios bebês aparece, no Galo, na Rua do Bonfim, na Bom Jesus.

Em casa, antes dos cortejos, um casal de irmãos se prepara para sair de cangaceiros. Marido e mulher vão de marinheiros num grupo que tem malandro, bruxa, melindrosa e pirata. Outra índia de colo aguarda ansiosamente a primeira vez em que será ninada ao som do frevo.

Num camarote, a moça exibe-se contente ao lado do pai, os dois de camisetas verdes, como todos no espaço vip. Lá embaixo, entre o sol e a chuva, amigas nem ligam pro humor de São Pedro, e se abraçam com empolgação. Uma de máscara azul brilhante sobre os olhos, a outra de peruca rosa.

Vielas da região portuária e ladeiras de casarios antigos guardam a história de olhares trocados. Um grupo de enfermeiras topa com três vampiros, dois dráculas perseguem uma nega maluca. A bailarina rodopia, rodopia, se diverte sem parar. Uma fila de anjos quebra o colorido reinante, com asas e saias brancas, e se amostram para a TV.

Quem está trabalhando não demonstra insatisfação. Nos camarotes, nas ruas, nos bares e restaurantes, também vale a empolgação. Na cobertura da felicidade desmascarada, jornalistas, produtores, fotógrafos e câmeras vestem a camisa do ofício, sem lamento.

Casais incontáveis aproveitam para celebrar o amor de outros carnavais. Esse faz dos chapéus coloridos o mote da graça. Aquele, de verde e prateado, capricha na pose: disputam prêmio de melhor fantasia. Na Terra do Nunca, escoltada por Peter Pan, Sininho faz de conta que não vê o cordão de gente misteriosamente formado ao seu redor.

Personagens desgarrados não têm nada de solitários no seio da multidão. A tiara de flores emoldura a cigana pronta pra festa. Uma bruxinha de vermelho e preto descansa, de copo na mão. Sentado ao meio-fio, um pequeno bobo-da-corte se restabelece. Capitão Gancho toma um gole enquanto analisa o panorama. A menina assanhada pinta o rosto inteiro, em forma de labareda: é a chama que não passa. E até debaixo do boneco gigante, a disposição gigantesca segura a responsabilidade com leveza, interrompendo a performance pra foto de Hans von Manteuffel como se tudo fosse motivo de brincadeira. Por falar neles, a fila dos bonecões em Olinda é puxada por um Gonzagão à vontade, dentes à mostra, como se cantasse.

Expressão dos músculos faciais, o sorriso torna visível uma disposição de alma: disposição de proximidade, encanto, partilha, prazer e paz. A mais evidente e festejada nudez do Carnaval.

22.1.12

Metafísica das rochas



Monges budistas diante da pedra sagrada, em Mianmar.


A foto de Steve McCurry está numa exposição em São Paulo, e aparece em reportagem da revista Época desta semana. O corte superior não mostra a cúpula na parte de cima, cuja descoberta tira um pouco da beleza da cena, na minha opinião: a pedra deixa de parecer um capricho da natureza, ao ganhar um chapéu esquisito e inapropriado.

A Golden Rock é local de grande peregrinação de budistas e turistas. Segundo a lenda religiosa, é sustentada por um fio de cabelo de Buda. No site do fotógrafo, integra o álbum "Faith", que abre com a lógica indefectível de São Tomás de Aquino: "Para aquele que tem fé, nenhuma explicação é necessária. Para aquele sem fé, nenhuma explicação é possível".

O equilíbrio aparentemente instável da grande pedra dourada é um deleite para os olhos e a imaginação. À luz do pôr do sol, o brilho cintilante monta o cenário para os usos e abusos da fé (o mercado da peregrinação já toma conta do lugar, com hotéis e bares ao redor da visão inusitada).

A adoração de pedras não é incomum no Oriente. E era comum entre os povos antigos. A cultura indígena nas Américas também está repleta de pedras sacras, assim como as tribos africanas.

Na metafísica das rochas, a finitude humana encontra na matéria natural uma ponte para a eternidade. Ou a carga de culpa e sofrimento levada vida afora. Ou ainda, a inspiração para o foco necessário à meditação e à revelação. Pode ser também fonte de conduta ética, na imobilidade da crença, do valor e do costume que estão em seu lugar, e de lá não saem nem com a gota.

19.1.12

O repertório de cada voz


O canto vocaliza o que o corpo se acostuma a calar


Assim como de cada mão sai um traço, de cada olhar um chamado, de cada passo um caminho, em cada pessoa há um som. A vida dos personagens de histórias reais se comprime no tom que acumula os anos. Na expressão do rosto fatigado ou sereno que lembra muito mais do que a letra de uma canção.

Ele entoa segurança, ela, decepção. Outro não esconde a vergonha, aquela não disfarça a paixão empacada no passado. Orgulho estampado numa face, e o arrependimento, feito fino véu, recobrindo tantas. Momentos recuperados duelam com tempos perdidos.

A narrativa musicada parece ganhar peso, enquanto alivia a carga de quem canta na expiação sem pecado, na confissão repetida como um refrão. A culpa é tragada por um sorriso, na dor que se cumpre sempre que escuta a ilusão redimida.

A palavra cantada vocaliza o que o corpo se acostuma a calar, ou não exprime na forma que a música permite. Na dimensão que a música admite. Na afinação com o sentimento que a voz subitamente atinge.

Na respiração alterada em novo sentido a emoção encontra a memória que a explica. Da matemática nas notas da escala emerge a razão acolhida encolhida pelo silêncio do hábito.

Solta a garganta que chora antes da primeira lágrima cair. Solta o verso conhecido que em todas as vozes é verso diferente. Solta o instante que ressoa e abarca por inteiro o presente.

Canta do jeito que sabe, o fôlego da poesia, no repertório do sopro de cada voz.


As canções (Brasil, 2011)
Documentário de Eduardo Coutinho.



5.1.12

O fim de uma "guerra estúpida"


Soldados americanos no Iraque: a linha da insensatez


Levou mais tempo do que o candidato Barack Obama esperaria do presidente Obama: mais de oito anos depois de iniciada, e decorridos três quartos do primeiro mandato do democrata, a ocupação militar do Iraque pelos Estados Unidos chega ao final. Alvo de crítica ácida na campanha presidencial norte-americana de 2008, e de praticamente todas as nações do mundo desde o princípio, em 2003, sob o apoio do ex-presidente George Bush, filho, do primeiro-ministro britânico Tony Blair, e a desaprovação da maioria da plateia global, a presença de tropas estrangeiras em território iraquiano deixou um saldo de quase 120 mil mortos, dos quais apenas 4,5 mil americanos. Cerca de 1,5 milhão de refugiados foram criados. Sua maior serventia parece mesmo ter sido econômica: a de manter os contratos milionários da indústria bélica dos EUA, que totalizaram, na menor das estimativas, a bagatela de US$ 800 bilhões em gastos, ou próximo da média obscena de US$ 100 bi por ano. Há quem faça a conta de que a guerra não saiu por menos de US$ 1 trilhão.

Muito longe de atingir os objetivos de pacificação e estabilização prometidos por Bush, a retirada das tropas é quase a capitulação melancólica de uma potência bélica que, de outro modo, poderia se considerar desocupada. O ataque verbal ao uso da força como estratégia de política diversionista foi veemente em 2008 pelo então candidato à presidência Obama, que chegou a chamar a situação no Iraque de “guerra estúpida”. Infelizmente, uma vez no poder, Obama não teve força política para impedir que a estupidez continuasse ao longo dos últimos três anos, ceifando vidas e semeando o ódio de maneira insana e desnecessária.

Bush aproveitou-se do clima tenso causado pela derrubada das Torres Gêmeas do World Trade Center, em 2001, para invadir o Iraque sob o pretexto de que Saddam Hussein abrigava a Al Qaeda e escondia armas químicas de destruição em massa. Nenhuma arma desse tipo foi encontrada. A deposição de Saddam não levou calmaria ao país. Pelo contrário, incitou a desavença entre grupos que se sentiram mais próximos do controle, devido à ausência do ditador. A partir daí, o discurso oficial ianque abraçou o mantra da pacificação interna, que até hoje não foi alcançada. Em 2007, no auge desse discurso, um ano antes da campanha presidencial que elegeria um Obama opositor da ocupação, os EUA tinham 170 mil soldados espalhados em mais de cinquenta bases no Iraque. O cheiro de sangue foi intenso, mas a ordem propalada perdeu para o caos que os invasores ajudaram a instalar.

Como chefe de Estado, Obama divulgou mensagem em agradecimento ao sacrifício de milhões de homens e mulheres durante tanto tempo. Pela contundência do ex-senador na época em que a Casa Branca ainda era um sonho, é plausível imaginar a decepção do presidente americano com a demora em conseguir cumprir a própria promessa. Quando assumiu, havia 150 mil soldados no Iraque, e o número veio decaindo até a última leva, de 40 mil. A retirada teria que se feita em termos responsáveis, justificou Obama. Que seja uma vitória definitiva do bom senso sobre a estupidez.

Editorial do Jornal do Commercio, 5/1/2012.

Foto: Anja Niedringhaus/AP

4.1.12

A pauta dos vereadores


O direito à informação pelos cidadãos é tão constitucional
quanto o aumento de salário dos parlamentares


Era tão certa a polêmica, que a direção da Câmara escolheu votar e aprovar o aumento salarial de 62% para os parlamentares da próxima legislatura, a partir de 2013, nos estertores de dezembro, a um passo do recesso, na esperança de ficar a muitos passos da reprovação pública. Mas em tempos de redes sociais, o tiro de esperteza pode ter saído pela culatra. Ainda que o cálculo do desgaste tenha levado em conta o calendário de festas e de férias para minimizar a chiadeira, a reação nos meios de comunicação – incluindo a internet – elevou o tom da indignação acumulada, apenas alguns dias depois do escandaloso auxílio-moradia retroativo dos deputados estaduais vir à tona.

Nos dois casos, sobressai o distanciamento da transparência e da firmeza na defesa de posições, quando se trata de interesses particulares embutidos no interesse de grupo. Os poucos que se manifestam apelam para a legalidade do recebimento dos recursos, parecendo fazer-se de surdos perante o grito dos que reclamam. A controvérsia do legal acima do moral é antiga, e não conduz a lugar algum, além do beco sem saída da decepção e do desencanto que joga os políticos num mesmo saco de baixa valia. Nesta perspectiva, o espírito corporativo na política é tão daninho quanto em outras atividades, com o agravante de bater de frente com o interesse coletivo, o qual suas excelências são pagas para servir em primeiro lugar.

Se o aumento de salário de cerca de R$ 9 mil para R$ 15 mil é legítima e democrática, como qualificou o vereador e ex-presidente da Câmara, Múcio Magalhães, por que proceder à sombra, sem trazer os números e a justificativa de maneira franca e honesta para o conhecimento e manifestação da população? Democracia à sombra lembra autoritarismo, configura prática obscurantista que em nada honra a tradição da política pernambucana.

Enquanto a Lei Orgânica do Município assegura aos vereadores o direito de fazer jus à remuneração de até 75% do que ganham os deputados estaduais, o cidadão comum tem o direito de opinar sobre a questão, inclusive opondo argumentos ao reajuste salarial máximo, no limite do teto. Aliás, o direito à informação é tão constitucional quanto o aumento máximo de salário possível dos parlamentares, e um não deveria prevalecer ao outro. É por isso que a indignação crescente tem gerado ampla repercussão, até com abaixo-assinado virtual em favor da anulação da medida. Em dois dias de circulação nas redes sociais, o documento ultrapassou a marca de cinco mil nomes, e deve ser encaminhado nos próximos dias para o Ministério Público.

Apesar da repercussão negativa e do equívoco indefensável da manobra dos vereadores, é preciso separar a função do Parlamento de eventuais descaminhos trilhados por seus momentâneos integrantes, como ressalvou o cientista político Michel Zaidan, na última quarta-feira, em entrevista a Aldo Vilela na rádio CBN. Quem sabe, no retorno ao trabalho, a pauta da cidade volte à pauta da Câmara, para que o salário de detentores do voto não abra o ano eleitoral como motivo de generalizada descrença.

Editorial do Jornal do Commercio, 04/01/2012.

Foto: Roberto Pereira/D.A Press

1.1.12

Entre dois tempos


Fim da contagem regressiva em Londres


No último dia do ano, a celebração reúne o passado e o futuro. O possível se torna visível, o horizonte se torna maior em sua aproximação máxima, delineando os contornos do desejo sem traços de dúvida. Caminhos cruzados e eventuais percalços vão para a sombra da memória, enquanto a imaginação providencia a queima de fogos para iluminar os próximos passos, de percurso nítido e evidente.

No primeiro dia do ano, a ressaca separa o futuro e o passado. Toda possibilidade volta à invisibilidade, retomando a condição de potência não realizada. O horizonte se afasta outra vez, levando o que parecia definido, devolvendo a suspeita sobre o que se esconde invariavelmente a seguir.

A sensação do futuro trespassado – consumado ou esfumaçado pelo presente – é contraditória: ao invés da novidade, o que se foi é o que se apresenta, reativado pela travessia da fronteira entre dois tempos.

Antes da contagem regressiva, olhares brilham a espreita de qualquer surpresa. É quando o sonho encontra os olhos abertos e aproveita. Com a primazia da visão na fronteira temporal, a vitória, a beleza ou a redenção sonhadas aparecem com avidez. A certeza de que tudo está para mudar embala a espera, em ritmo de vigília por um nascimento.

Depois dos abraços e das lágrimas, dos gritos e das explosões que iluminam a meia-noite, a surpresa se dissipa como a pólvora ao vento. A certeza de que tudo estava para mudar, de repente silencia. E as ilusões desenhadas no entre-tempo do Ano Novo regressam ao ventre do céu noturno. O futuro foi lançado mais a frente, está mais distante, agora que um ano ficou para trás.


Foto: Reuters.