22.1.12

Metafísica das rochas



Monges budistas diante da pedra sagrada, em Mianmar.


A foto de Steve McCurry está numa exposição em São Paulo, e aparece em reportagem da revista Época desta semana. O corte superior não mostra a cúpula na parte de cima, cuja descoberta tira um pouco da beleza da cena, na minha opinião: a pedra deixa de parecer um capricho da natureza, ao ganhar um chapéu esquisito e inapropriado.

A Golden Rock é local de grande peregrinação de budistas e turistas. Segundo a lenda religiosa, é sustentada por um fio de cabelo de Buda. No site do fotógrafo, integra o álbum "Faith", que abre com a lógica indefectível de São Tomás de Aquino: "Para aquele que tem fé, nenhuma explicação é necessária. Para aquele sem fé, nenhuma explicação é possível".

O equilíbrio aparentemente instável da grande pedra dourada é um deleite para os olhos e a imaginação. À luz do pôr do sol, o brilho cintilante monta o cenário para os usos e abusos da fé (o mercado da peregrinação já toma conta do lugar, com hotéis e bares ao redor da visão inusitada).

A adoração de pedras não é incomum no Oriente. E era comum entre os povos antigos. A cultura indígena nas Américas também está repleta de pedras sacras, assim como as tribos africanas.

Na metafísica das rochas, a finitude humana encontra na matéria natural uma ponte para a eternidade. Ou a carga de culpa e sofrimento levada vida afora. Ou ainda, a inspiração para o foco necessário à meditação e à revelação. Pode ser também fonte de conduta ética, na imobilidade da crença, do valor e do costume que estão em seu lugar, e de lá não saem nem com a gota.

19.1.12

O repertório de cada voz


O canto vocaliza o que o corpo se acostuma a calar


Assim como de cada mão sai um traço, de cada olhar um chamado, de cada passo um caminho, em cada pessoa há um som. A vida dos personagens de histórias reais se comprime no tom que acumula os anos. Na expressão do rosto fatigado ou sereno que lembra muito mais do que a letra de uma canção.

Ele entoa segurança, ela, decepção. Outro não esconde a vergonha, aquela não disfarça a paixão empacada no passado. Orgulho estampado numa face, e o arrependimento, feito fino véu, recobrindo tantas. Momentos recuperados duelam com tempos perdidos.

A narrativa musicada parece ganhar peso, enquanto alivia a carga de quem canta na expiação sem pecado, na confissão repetida como um refrão. A culpa é tragada por um sorriso, na dor que se cumpre sempre que escuta a ilusão redimida.

A palavra cantada vocaliza o que o corpo se acostuma a calar, ou não exprime na forma que a música permite. Na dimensão que a música admite. Na afinação com o sentimento que a voz subitamente atinge.

Na respiração alterada em novo sentido a emoção encontra a memória que a explica. Da matemática nas notas da escala emerge a razão acolhida encolhida pelo silêncio do hábito.

Solta a garganta que chora antes da primeira lágrima cair. Solta o verso conhecido que em todas as vozes é verso diferente. Solta o instante que ressoa e abarca por inteiro o presente.

Canta do jeito que sabe, o fôlego da poesia, no repertório do sopro de cada voz.


As canções (Brasil, 2011)
Documentário de Eduardo Coutinho.



5.1.12

O fim de uma "guerra estúpida"


Soldados americanos no Iraque: a linha da insensatez


Levou mais tempo do que o candidato Barack Obama esperaria do presidente Obama: mais de oito anos depois de iniciada, e decorridos três quartos do primeiro mandato do democrata, a ocupação militar do Iraque pelos Estados Unidos chega ao final. Alvo de crítica ácida na campanha presidencial norte-americana de 2008, e de praticamente todas as nações do mundo desde o princípio, em 2003, sob o apoio do ex-presidente George Bush, filho, do primeiro-ministro britânico Tony Blair, e a desaprovação da maioria da plateia global, a presença de tropas estrangeiras em território iraquiano deixou um saldo de quase 120 mil mortos, dos quais apenas 4,5 mil americanos. Cerca de 1,5 milhão de refugiados foram criados. Sua maior serventia parece mesmo ter sido econômica: a de manter os contratos milionários da indústria bélica dos EUA, que totalizaram, na menor das estimativas, a bagatela de US$ 800 bilhões em gastos, ou próximo da média obscena de US$ 100 bi por ano. Há quem faça a conta de que a guerra não saiu por menos de US$ 1 trilhão.

Muito longe de atingir os objetivos de pacificação e estabilização prometidos por Bush, a retirada das tropas é quase a capitulação melancólica de uma potência bélica que, de outro modo, poderia se considerar desocupada. O ataque verbal ao uso da força como estratégia de política diversionista foi veemente em 2008 pelo então candidato à presidência Obama, que chegou a chamar a situação no Iraque de “guerra estúpida”. Infelizmente, uma vez no poder, Obama não teve força política para impedir que a estupidez continuasse ao longo dos últimos três anos, ceifando vidas e semeando o ódio de maneira insana e desnecessária.

Bush aproveitou-se do clima tenso causado pela derrubada das Torres Gêmeas do World Trade Center, em 2001, para invadir o Iraque sob o pretexto de que Saddam Hussein abrigava a Al Qaeda e escondia armas químicas de destruição em massa. Nenhuma arma desse tipo foi encontrada. A deposição de Saddam não levou calmaria ao país. Pelo contrário, incitou a desavença entre grupos que se sentiram mais próximos do controle, devido à ausência do ditador. A partir daí, o discurso oficial ianque abraçou o mantra da pacificação interna, que até hoje não foi alcançada. Em 2007, no auge desse discurso, um ano antes da campanha presidencial que elegeria um Obama opositor da ocupação, os EUA tinham 170 mil soldados espalhados em mais de cinquenta bases no Iraque. O cheiro de sangue foi intenso, mas a ordem propalada perdeu para o caos que os invasores ajudaram a instalar.

Como chefe de Estado, Obama divulgou mensagem em agradecimento ao sacrifício de milhões de homens e mulheres durante tanto tempo. Pela contundência do ex-senador na época em que a Casa Branca ainda era um sonho, é plausível imaginar a decepção do presidente americano com a demora em conseguir cumprir a própria promessa. Quando assumiu, havia 150 mil soldados no Iraque, e o número veio decaindo até a última leva, de 40 mil. A retirada teria que se feita em termos responsáveis, justificou Obama. Que seja uma vitória definitiva do bom senso sobre a estupidez.

Editorial do Jornal do Commercio, 5/1/2012.

Foto: Anja Niedringhaus/AP

4.1.12

A pauta dos vereadores


O direito à informação pelos cidadãos é tão constitucional
quanto o aumento de salário dos parlamentares


Era tão certa a polêmica, que a direção da Câmara escolheu votar e aprovar o aumento salarial de 62% para os parlamentares da próxima legislatura, a partir de 2013, nos estertores de dezembro, a um passo do recesso, na esperança de ficar a muitos passos da reprovação pública. Mas em tempos de redes sociais, o tiro de esperteza pode ter saído pela culatra. Ainda que o cálculo do desgaste tenha levado em conta o calendário de festas e de férias para minimizar a chiadeira, a reação nos meios de comunicação – incluindo a internet – elevou o tom da indignação acumulada, apenas alguns dias depois do escandaloso auxílio-moradia retroativo dos deputados estaduais vir à tona.

Nos dois casos, sobressai o distanciamento da transparência e da firmeza na defesa de posições, quando se trata de interesses particulares embutidos no interesse de grupo. Os poucos que se manifestam apelam para a legalidade do recebimento dos recursos, parecendo fazer-se de surdos perante o grito dos que reclamam. A controvérsia do legal acima do moral é antiga, e não conduz a lugar algum, além do beco sem saída da decepção e do desencanto que joga os políticos num mesmo saco de baixa valia. Nesta perspectiva, o espírito corporativo na política é tão daninho quanto em outras atividades, com o agravante de bater de frente com o interesse coletivo, o qual suas excelências são pagas para servir em primeiro lugar.

Se o aumento de salário de cerca de R$ 9 mil para R$ 15 mil é legítima e democrática, como qualificou o vereador e ex-presidente da Câmara, Múcio Magalhães, por que proceder à sombra, sem trazer os números e a justificativa de maneira franca e honesta para o conhecimento e manifestação da população? Democracia à sombra lembra autoritarismo, configura prática obscurantista que em nada honra a tradição da política pernambucana.

Enquanto a Lei Orgânica do Município assegura aos vereadores o direito de fazer jus à remuneração de até 75% do que ganham os deputados estaduais, o cidadão comum tem o direito de opinar sobre a questão, inclusive opondo argumentos ao reajuste salarial máximo, no limite do teto. Aliás, o direito à informação é tão constitucional quanto o aumento máximo de salário possível dos parlamentares, e um não deveria prevalecer ao outro. É por isso que a indignação crescente tem gerado ampla repercussão, até com abaixo-assinado virtual em favor da anulação da medida. Em dois dias de circulação nas redes sociais, o documento ultrapassou a marca de cinco mil nomes, e deve ser encaminhado nos próximos dias para o Ministério Público.

Apesar da repercussão negativa e do equívoco indefensável da manobra dos vereadores, é preciso separar a função do Parlamento de eventuais descaminhos trilhados por seus momentâneos integrantes, como ressalvou o cientista político Michel Zaidan, na última quarta-feira, em entrevista a Aldo Vilela na rádio CBN. Quem sabe, no retorno ao trabalho, a pauta da cidade volte à pauta da Câmara, para que o salário de detentores do voto não abra o ano eleitoral como motivo de generalizada descrença.

Editorial do Jornal do Commercio, 04/01/2012.

Foto: Roberto Pereira/D.A Press

1.1.12

Entre dois tempos


Fim da contagem regressiva em Londres


No último dia do ano, a celebração reúne o passado e o futuro. O possível se torna visível, o horizonte se torna maior em sua aproximação máxima, delineando os contornos do desejo sem traços de dúvida. Caminhos cruzados e eventuais percalços vão para a sombra da memória, enquanto a imaginação providencia a queima de fogos para iluminar os próximos passos, de percurso nítido e evidente.

No primeiro dia do ano, a ressaca separa o futuro e o passado. Toda possibilidade volta à invisibilidade, retomando a condição de potência não realizada. O horizonte se afasta outra vez, levando o que parecia definido, devolvendo a suspeita sobre o que se esconde invariavelmente a seguir.

A sensação do futuro trespassado – consumado ou esfumaçado pelo presente – é contraditória: ao invés da novidade, o que se foi é o que se apresenta, reativado pela travessia da fronteira entre dois tempos.

Antes da contagem regressiva, olhares brilham a espreita de qualquer surpresa. É quando o sonho encontra os olhos abertos e aproveita. Com a primazia da visão na fronteira temporal, a vitória, a beleza ou a redenção sonhadas aparecem com avidez. A certeza de que tudo está para mudar embala a espera, em ritmo de vigília por um nascimento.

Depois dos abraços e das lágrimas, dos gritos e das explosões que iluminam a meia-noite, a surpresa se dissipa como a pólvora ao vento. A certeza de que tudo estava para mudar, de repente silencia. E as ilusões desenhadas no entre-tempo do Ano Novo regressam ao ventre do céu noturno. O futuro foi lançado mais a frente, está mais distante, agora que um ano ficou para trás.


Foto: Reuters.