22.2.12

Sorrisos nus


Disposição de proximidade, partilha, prazer e paz


No resto do ano as faces encobertas pelos panos das convenções, do atropelo de afazeres e pelos mantos transparentes das inibições, disfarçam a expressão solta agora, sem vergonha nem economia. O Carnaval expõe sorrisos nus.

O menino no colo do pai está desconfiado, só ensaia careta sem graça, franze a testa, vestido de super-herói. A irmã, de fita nos cabelos, faz pose com uma alegria serena. Os pais, de óculos escuros para encarar o sol de Olinda, não escondem o orgulho e escancaram a felicidade na foto de álbum de família.

Vestida de coelhinha, a menina ergue os ombros e sorri numa esquina do Recife Antigo. A mãe que não desgruda aparece no Marco Zero, de boina e um sorriso nas cores da bandeira de Pernambuco. Outra mãe que não se aguenta de emoção segura o estandarte e o filho. A garotinha de rabo de cavalo, óculos quadrados e o cruzeiro do sul salpicado na bochecha também brinca no Eu Acho é Pouquinho, flagrada pelas lentes de Juliana Lombardi. Uma geração inteira de índios bebês aparece, no Galo, na Rua do Bonfim, na Bom Jesus.

Em casa, antes dos cortejos, um casal de irmãos se prepara para sair de cangaceiros. Marido e mulher vão de marinheiros num grupo que tem malandro, bruxa, melindrosa e pirata. Outra índia de colo aguarda ansiosamente a primeira vez em que será ninada ao som do frevo.

Num camarote, a moça exibe-se contente ao lado do pai, os dois de camisetas verdes, como todos no espaço vip. Lá embaixo, entre o sol e a chuva, amigas nem ligam pro humor de São Pedro, e se abraçam com empolgação. Uma de máscara azul brilhante sobre os olhos, a outra de peruca rosa.

Vielas da região portuária e ladeiras de casarios antigos guardam a história de olhares trocados. Um grupo de enfermeiras topa com três vampiros, dois dráculas perseguem uma nega maluca. A bailarina rodopia, rodopia, se diverte sem parar. Uma fila de anjos quebra o colorido reinante, com asas e saias brancas, e se amostram para a TV.

Quem está trabalhando não demonstra insatisfação. Nos camarotes, nas ruas, nos bares e restaurantes, também vale a empolgação. Na cobertura da felicidade desmascarada, jornalistas, produtores, fotógrafos e câmeras vestem a camisa do ofício, sem lamento.

Casais incontáveis aproveitam para celebrar o amor de outros carnavais. Esse faz dos chapéus coloridos o mote da graça. Aquele, de verde e prateado, capricha na pose: disputam prêmio de melhor fantasia. Na Terra do Nunca, escoltada por Peter Pan, Sininho faz de conta que não vê o cordão de gente misteriosamente formado ao seu redor.

Personagens desgarrados não têm nada de solitários no seio da multidão. A tiara de flores emoldura a cigana pronta pra festa. Uma bruxinha de vermelho e preto descansa, de copo na mão. Sentado ao meio-fio, um pequeno bobo-da-corte se restabelece. Capitão Gancho toma um gole enquanto analisa o panorama. A menina assanhada pinta o rosto inteiro, em forma de labareda: é a chama que não passa. E até debaixo do boneco gigante, a disposição gigantesca segura a responsabilidade com leveza, interrompendo a performance pra foto de Hans von Manteuffel como se tudo fosse motivo de brincadeira. Por falar neles, a fila dos bonecões em Olinda é puxada por um Gonzagão à vontade, dentes à mostra, como se cantasse.

Expressão dos músculos faciais, o sorriso torna visível uma disposição de alma: disposição de proximidade, encanto, partilha, prazer e paz. A mais evidente e festejada nudez do Carnaval.