17.3.12

Democracia fisiológica




Uma das faces do pragmatismo, o fisiologismo abusa da repartição de cargos e verbas por critérios políticos, e rende, como frutos, apoio no Congresso e ampliação de alianças eleitorais. Governos montados sob bases fisiológicas, mais atentos a demandas privadas do que às necessidades da população, tendem a exibir altos graus de ineficiência e de corrupção. Seria um mal da democracia? Em entrevista à rádio JC/CBN no sábado, 11, o cientista político e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Marco Aurélio Nogueira, disse que, “antes de ser o preço de um governo de coalizão, é o preço de um governo democrático. O que se espera da democracia é justamente esse tipo de negociação”, disse Nogueira.

O professor comentou na ocasião a derrota do governo no Senado, que reprovou a indicação da presidente Dilma Rousseff para o comando da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Dias depois, Romero Jucá, virtual mentor da rebelião, perdeu o posto de líder no governo no Senado. Jucá foi líder dos governos de Fernando Henrique, de Lula e de Dilma. Deve ser um especialista na arte da coalizão e nos insondáveis caminhos da governabilidade, assim como o seu partido, que conta com o vice-presidente da República. Quando candidato, Michel Temer declarou que a vice e a participação no programa de governo eram os únicos compromissos do partido para a formação de chapa. “Não há nada disso de partilha de cargos. O que o PMDB vai fazer é colaborar com o governo. O PMDB repudia essa coisa do fisiologismo”, afirmou em um debate, em 2010.

A derrubada da indicação oficial para a ANTT revelou a crise na base aliada, e levou à troca dos líderes no Parlamento. Além de Jucá, Cândido Vaccarezza, do PT, foi destituído de suas funções na Câmara, num lance duplo transmitido como gesto de autoridade de Dilma. Debelada a crise, se assim o for, retorna o jogo do fisiologismo. “Temos um sistema que facilita a negociação em torno de vantagens e de poder, e parlamentares e partidos aceitam fazer parte desse jogo”, afirmou à JC/CBN Marco Aurélio Nogueira.

O PMDB, que sempre reclama, mesmo quando “repudia”, já havia se queixado da “gula” do PT por cargos, que estaria ameaçando a fidelidade da base aliada. Como se o PMDB não estivesse sempre lá, desde Sarney, abocanhando fatias generosas do orçamento e dando a sua contribuição inestimável para os maus serviços da máquina federal. Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, o historiador Marco Antonio Villa chamou atenção para o fato de que a disputa fisiológica escancarada, do primeiro escalão até as empresas estatais, é cada vez mais considerada natural. Mas a banalização pode cair diante dos problemas na economia, que “não está mais sustentando o presidencialismo de transação”.

Ao se admitir com tanta naturalidade o fisiologismo como elemento democrático, permite-se o alargamento ético que descamba na degeneração da própria democracia. E se embarca no relativismo que não vê com estranheza os movimentos torpes de uma democracia fisiológica.

(Editorial do Jornal do Commercio/PE, 17/03/2012)

Foto: Roberto Stuckert Filho/PR