24.5.15

O homem que viveu



Poucos loucos na primeira sessão de um domingo à tarde foram ver o filme de despedida de Eduardo Coutinho, em cartaz no Cinema da Fundação há algumas semanas. Despedida sem assinatura: o documentarista morreu antes de concluir a obra, batizada, em sua homenagem, de “Últimas conversas”. Finalizado por João Moreira Sales, o documentário sobre estudantes do ensino médio de escola pública no Rio de Janeiro, no entanto, dá a impressão de ser mesmo o último olhar de Coutinho: pela presença, pela voz inconfundível e os comentários secos e precisos.

Logo de cara, para os fãs, a saudade enche a tela: sabemos que o diretor que se mostra ali, pleno de vida, saiu de cena. Talvez fosse outra a leitura, se Coutinho não estivesse morto? Também seria outro filme. Mas de todas as possibilidades, foi essa que entrou no script.

Se a infância é o reino encantado dos traumas, a adolescência é o pesadelo do desencanto que é o encontro com o mundo. Coutinho estava insatisfeito. O que pode contar um jovem com menos de 20 anos? Ele não tem memória, porque mal viveu, e sem passado... vai falar o que? E como são tristes os jovens! A melancolia adolescente é melancólica pra quem viveu um pouco mais. Difícil, às vezes, é sair dela. Quantos adultos de 30, 40 ou 50 não se comportam como se ainda morassem no tempo do desengano, em eterno lamento?

E o que se toma eterno, sim, além do tédio, pode provocar um curto-circuito mental. Como a eternidade adolescente é uma tarde sem ter o que fazer, os curtos-circuitos não param de aparecer.




Os depoimentos começam. As histórias contadas realçam o drama repetitivo da juventude. Crianças mal crescidas, a maioria de famílias desfeitas, exibem ora tristeza, ora futilidade, para as câmeras. Até que... uma voz baixinha, tímida, se destaca do marasmo e da descrença. Coutinho se espanta. A menina da voz de criança quer pilotar avião, sem nunca ter entrado num. E dar a mãe, mais tarde, todo o amor que a mãe não lhe deu. A dureza da mãe não endureceu a filha, que diz ser o amor, antes, um abraço e a companhia, do que comida e roupas.

Mas jovens são românticos. E o romantismo não demora a chegar. Um garoto poeta – aliás, há mais de um dentre eles – se declara adepto do ultraromantismo... sabe como é, o amor ou a morte? Eduardo Coutinho não se contém. Espera: o amor e a morte. A vida e a morte. Não são dois lados, é o mesmo. Não é um ou outro, são os dois, juntos.

Os depoimentos se sucedem. Uma das entrevistadas, do alto de seus 18 anos, divide o mundo entre loroteiros, ou espertos, e ingênuos, ou bobocas. Ela é loroteira. E diz que se impõe porque todos devem ter a mesma opinião que ela, pois a sua é sempre a certa. E diz que quer estudar cinema. Conta uma história de trama de novela, com traição, morte e muita, muita lorota.

O final do filme é de arrepiar, não pela surpresa. Mas por virtude do acaso, calhando de juntar a emoção e a razão, a ingenuidade e a experiência, a alegria tenra e a alegria madura num mesmo plano. As luzes acendem, as lágrimas não param. Se é difícil ter fé, e mais ainda retomá-la, o último filme de Coutinho fez da sala de cinema um templo.

O homem que morreu é Deus? Não. O homem que viveu achou, no ofício criativo, na investigação da realidade aberta na expressão de simples depoimentos, a humana divindade.