1.12.09

Kafka e o pião filosófico




A capacidade de conhecer não casa com a capacidade de contemplar.

O conhecimento e a contemplação, não sendo opostos, teriam contudo natureza diversa, levemente repulsivos um em relação ao outro – coexistindo sem “se encostar”, sem habitar o mesmo momento, animar ao mesmo tempo o mesmo impulso curioso.

Eis uma leitura possível do pequeno conto de Kafka, a seguir.


O pião

"Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças. E, se via um menino que tinha um pião, já ficava à espreita. Mal o pião começava a rodar, o filósofo o perseguia com a intenção de agarrá-lo. Não o preocupava que as crianças fizessem o maior barulho e tentassem impedi-lo de entrar na brincadeira; se ele pegava o pião enquanto este ainda girava, ficava feliz, mas só por um instante, depois atirava-o ao chão e ia embora. Na verdade acreditava que o conhecimento de qualquer insignificância, por exemplo o de um pião que girava, era suficiente ao conhecimento do geral. Por isso não se ocupava dos grandes problemas – era algo que lhe parecia antieconômico. Se a menor de todas as ninharias fosse realmente conhecida, então tudo estava conhecido; sendo assim só se ocupava do pião rodando. E, sempre que se realizavam preparativos para fazer o pião girar, ele tinha esperança de que agora ia conseguir; e, se o pião girava, a esperança se transformava em certeza enquanto ele corria até perder o fôlego atrás do pião. Mas quando depois retinha na mão o estúpido pedaço de madeira, ele se sentia mal e a gritaria das crianças – que ele até então não havia escutado e agora de repente penetrava nos seus ouvidos – afugentava-o dali e ele cambaleava como um pião lançado com um golpe desajeitado da fieira."

(Em Narrativas do espólio, Franz Kafka, Cia. das Letras, 2002, Tradução de Modesto Carone)



Foto: Ratão Diniz / www.flickr.com

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