30.12.07

Promessa do amor

A promessa do amor distante reduz a chance de erro enquanto protege o sonho contra a realidade. Uma chama elevada consome a paixão afastada até restarem pequenas brasas entre as cinzas da união abstrata.

Se o amor não está do lado, não está em lugar nenhum. Ou segue no mesmo barco, ou não espera na outra margem, de braços prontos pra quando o amor aportar. Então, não ir, desistir da luz que desponta longe? Nunca. Mas ir atrás de uma imagem, de um ideal, é bem diferente de encontrá-los no fim do caminho.

Embora a aventura amorosa sirva-se com fartura das trilhas da imaginação, e o coração romântico se fortaleça na plenitude de sua fraqueza – antecipando a falta que lhe traz companhia – a aventura é maior e verdadeira na troca do idealismo pelo real.

Quais as vantagens dessa troca? Para começar, o desejo deixa de ser ânsia do impossível, para se tornar o aguardado prazer que se repete. O sofrimento de existir dá vez à alegria de viver. A embriaguez do espírito é substituída pela lucidez do corpo: agora o corpo manda e o espírito obedece (quando o espírito manda, o corpo adoece).

A idolatria de um ser distante – ausente – é destroçada pelo aprendizado da companhia de um ser presente. Admirar o outro é possível, mas não mais condição de permanência ideal. A admiração não é causa, e sim, conseqüência. A presença de quem sem ama é uma dádiva que se aproveita, não uma graça alcançada.

O amor como promessa não se dilui com a proximidade, nem se faz tão concreto que perca a aura sobrenatural. Mas é fora do plano etéreo e da pureza romântica que vigoram as melhores paixões – na fruição do amor, e não, de sua impossibilidade.


Noivas (Brides, Grécia, 2004)
Direção: Pantelis Voulgaris
Com Damian Lewis e Victoria Haralabidou.


23.12.07

Simbiose

No resguardo do ser animado e posto em moto próprio resiste o tecido mágico, isolante e interativo, anteparo e continuidade do mundo. Tecido formado por células que trabalham, poros que filtram, genes perpetuados. De magia nem sempre discernível no lusco-fusco de coisas fechadas para as quais parece não surgir nada.

O estranhamento do corpo libera pensamentos metafísicos que podem ir do pânico ao nirvana. Tomado por embalagem da alma, o corpo aprisiona um ente convulsivo que não se culpa ao pretender, nos piores e melhores momentos, “sair de si”.

Diante de outras embalagens – de idêntico conteúdo? – prisioneiros e iluminados têm que “sair”. É um movimento complexo, duro de entender. Movimento involuntário, quase sempre, deixando o espírito (conteúdo) embatucado.

Porque os corpos animados em torno do nosso constituem alvo de fascínio ainda maior, extensão daquele provado pela mente ao se descobrir habitante de matéria igual: montada com os mesmos átomos, na arrumação fundadora de realidade única, no tempo comum.

A saída supõe a chegada. Encontros viram desencontros. Azar e sorte se alternam na perspectiva de indivíduos que se esbarram enquanto seus corpos existem. Neuroses e paranóias aproveitam para se instalar no intervalo, nas frestas do desencaixe, nas cicatrizes mal fechadas.

O indivíduo livre devido à solidão radical do corpo deseja o fim da solidão e a abdicação da liberdade. O indivíduo anseia por utópica simbiose. Quer dividir a matéria animada – o corpo em que vive – como divide o mundo forjado e ocupado pelo pensamento.

Mas a relação simbiótica não voga para os da mesma espécie. A necessidade do outro é indireta, complementar, apenas simbolicamente vital – ou seja, em termos humanos, necessidade concreta e indispensável. De sobrevivência? Talvez não. De comunhão das impressões que atravessam as embalagens corpóreas, certamente.



Invasores (The invasion, EUA, 2007)
Direção: Oliver Hirschbiegel
Com Nicole Kidman e Daniel Craig.

14.12.07

Aproximação

Era um drama chegar perto. Um problema sem solução, a timidez bloqueia todos os músculos, exceto o coração. Um delírio à luz do dia impede raciocinar sobre qualquer outro assunto, deixando a lucidez delirante emaranhada nos fios que podem levar o pensamento fixo ao encontro do esperado destino.

Chegar perto era um dilema. O que se deseja tanto provoca tremores de causa desconhecida. Tremores de origem incerta, deixando o corpo febril e a mente inquieta em torno de uma pergunta: a própria causa é capaz de aplacar a febre?

Era uma questão de honra, chegar perto. Nada no mundo equivale ao que emana da mais íntima intuição, que se mostra no mais perfeito reflexo do lado de fora. Como o íntimo que emana do mundo, na forma intrigantemente familiar de quem nunca se viu na vida – ou a quem o costume habitou o olhar e incentivou o olho a não querer largar. Aí não se quer permitir a aparição regredir, desaparecer, se ir – pois seria como regredir, desaparecer e se ir junto.

Era difícil chegar perto. Ainda é. O porto seguro jamais se alcança, jamais é perto o bastante. Após a primeira aproximação se percebe a necessidade de outras... Porém a distância mantida não é igual, nem é igual o gosto doce de apaixonante incerteza diante do inefável prestes a se materializar.

A doçura das distâncias quebradas reserva um sabor para cada aproximação. Cada aproximação é um drama, um dilema, e uma necessidade.

Apesar da vertigem e das dores, da embriaguez alienante, da febre e da razão que se esvai, é preciso chegar mais perto. Conviver para compreender as vertigens, as dores, a embriaguez e a febre do outro. E assim compartilhar lágrimas e sorrisos, perdas e afetos como só se consegue ao rés da intimidade do mesmo mundo.



O despertar de uma paixão (The painted veil, China/EUA, 2006)
Direção: John Curran
Com Naomi Watts e Edward Norton.
Baseado no livro de W. Somerset Maugham.


10.12.07

Fuga do presente

O esquecimento faz infinito o tempo que a lembrança vê escasso. Para esquecer não há fórmula, talvez sorte. Para lembrar, basta qualquer condição que mine a chance de se distrair da contagem regressiva.

Esquecimento não é dúvida. Duvidar da finitude de tudo é tática existencial que permite a coragem insana da guerra. Mas se a tática não funciona, a iminência do fim recorda a voracidade do tempo, a coragem é diluída na vergonha – numa bravura maior.

Bravo daquele a crer no verdadeiro presente, sem engano, sem disfarce. O presente insustentável como o ser de Milan Kundera, inadiável como a busca detalhista de Marcel Proust. O presente pede a bravura, pois nem se sustenta, nem se adia.

Como explicar a verdade de um instante que muda antes de vir e prossegue mutante até sair? Do instante que somente se cristaliza depois? Ou a urgência de um segundo que por tantos ângulos em nada difere do precedente, ou daquele que poderá ser visto em seguida?

O presente não se explica. A vida é o presente que se desenrola, breve – “infinito enquanto dure”, proclamou Vinicius de Moraes. E cada um de nós tem a sua brevidade infinita. Mesmo quando a humanidade é uma mancha visível, no horror frívolo das guerras, pertence ao indivíduo o presente dolorosamente sentido como tempo desperdiçado.

No naufrágio da loucura a salvação é o esquecimento. Na tortura de uma consciente demência, na terra arrasada de combatentes iguais, de egos quase anulados, dirigir o pensamento para longe pode significar a sobrevivência. Para longe de onde? De si, do presente.

Para os dias banais de uma vida perdida cujo retorno é celebrado em sonho. Para os braços e os olhos do amor longínquo considerado o último e maior dos prêmios. Para o aconchego mental de um deus criado à imagem e semelhança dos tementes ao tempo.


Além da linha vermelha (The thin red line, Canadá/EUA, 1998)
Direção: Terrence Malick
Com Sean Penn, Adrien Brody, John Cusack e Ben Chaplin.


4.12.07

Livros não viram cinzas

Letras enfileiradas em palavras. Palavras encadeadas em frases. Frases agrupadas nas estrofes e parágrafos, reunidos em páginas numeradas para encadernação. Os livros são objetos construídos. Com muito suor e, quem sabe, lágrimas, os livros depois de prontos respiram como crianças, e falam como anciãos. Pois um livro carrega o frescor da infância e a sabedoria dos mais velhos – concentrando a vida do autor, que não passa de “um lugar em que o tempo existe”, segundo José Saramago.

Queimar livros, portanto, é querer destruir a memória viva de uma época. Cada época com seu estilo, filosofia, anseios, heresias e visionários, possui nas obras dos antepassados a representação de trilhas tomadas ou ignoradas. Queimar livros é tentar atalhar o futuro ou impedi-lo, como se na disjunção das palavras esfumaçadas fosse desfeita a história que levou aos homens e mulheres que escreveram os livros.

A realidade, lembrando Borges, é um livro de areia com páginas infinitas, onde nenhuma página pode ser lida duas vezes. “Mas o nosso dever é edificar como se fora pedra a areia…”, sugeriu o argentino que, mesmo depois de cego, continuou preenchendo os cômodos de casa com livros. Para Borges, ateu, o livro era um objeto sagrado.

Para escapar da areia que não podemos apreender, lemos bíblias, enciclopédias, ensaios filosóficos, peças literárias. Jornais, revistas e blogs. Para ter o prazer ou a ilusão de carregar nas mãos um punhado dessa areia (in)formadora do real.

Na areia movediça da ignorância, em pleno deserto de intolerância, religiosos, nazistas, feministas – e até uma associação de pais ingleses preocupados com estórias infantis de final triste – tentaram rechaçar o perigo contido em letras embaralhadas com sentido pela razão literária.

Em vão. Livros não viram cinzas. Religiosos, nazistas, fascistas, pais zelosos, todos voltaremos a ser parte do livro de areia borgeano – queiramos ou não.

O que ficará de nós, enquanto o tempo existir em algum lugar, talvez se ache nas letras encadeadas... em frases agrupadas... nas páginas do universo que construirmos.


Fahrenheit 451 (Inglaterra, 1966)
Direção:
François Truffaut
Baseado no livro de Ray Bradbury.
Com Julie Christie e Oskar Werner.


24.11.07

Andar junto

O horizonte guarda todos os caminhos na distância e expõe cada um deles à imaginação, para que, antes, o passo se firme em terreno menos árido, menos duro, menos simples que o chão. O passo, antes, pode ser alvo de partidas sem volta, dos desvios mais improváveis, de altíssimos muros que se erguem a perder de vista.

Até que se nota uma trilha tomada, e quão pouco o pensamento contribuiu para que assim fosse. As trilhas não vêm do nada – mas dificilmente recordam a conseqüência exata de planos cumpridos, ou desenham a imagem concretizada de sonhos ou pesadelos antigos.

Os caminhos se formam no tempo, mas não é apenas no tempo que se identifica um caminho. Como escreve o ditado, sabemos que estamos numa estrada se na mesma estrada andam outros. “Dize-me com quem andas” – e logo verás onde estás.

O melhor é que a sorte pura como água não explica o destino compartilhado que traz fôlego e repouso, une trajetórias, e faz surgir no tempo laços que parecem fora dele.

Para que possa ser contada, a vida é repartida com gratas testemunhas de nossas fraquezas e de nossos bons momentos. É à luz de testemunhos duradouros que um caminho se ilumina.

A sabedoria do eremita é triste porque não é sábia a falta de alegrias divididas. Por isso há um sentido que escapa quando personagens do nosso caminho estão ausentes. Mesmo se as companhias cruciais mudam ao longo do caminho – e com freqüência esta é a regra – é através delas que enxergamos alguma lógica na maluquice da existência.


Johnny & June (Walk the line, EUA, 2005)
Direção: James Mangold
Com Joaquin Phoenix e Reese Witherspoon.


9.11.07

O banquete

“De onde vem – essa busca? A necessidade de solucionar os mistérios da vida, quando as questões mais simples sequer são respondidas? Por que estamos aqui? Que é a alma? Por que sonhamos? Talvez fosse melhor não procurar resposta alguma, não ir atrás desse desejo de saber. Mas não é assim a natureza humana. O coração humano não é assim. Não é para isso que estamos aqui. Lutamos para fazer diferença. Mudar o mundo. Sonhar com esperança. Sem saber quem encontraremos pelo caminho. Quem, entre os estranhos no mundo, vai nos dar as mãos, tocar o nosso coração, e dividir conosco a dor de tentar.”

A gente acredita no que sente. E o sentimento realimenta a crença. O amor é uma sinapse forte. Uma sinapse que se repete. Por isso a gente ama o que conhece – a sinapse forte, repetida, dá sentido ao mundo percebido, formado por milhões de sinapses por segundo.

O mundo é montado em sinapses. As sinapses encaixam as peças do mundo. A gente crê nas sinapses, que nos delineiam a realidade e fazem do mundo, pra nós, um lugar real.

Para que a realidade cresça e floresça, precisamos de sentimentos fortes – de sinapses conhecidas. O mundo pode ser feio ou bonito: depende do sentimento forjado pelas sinapses.

As ligações nas extremidades neuronais, dentro do ponto criador de universos que é o cérebro humano, não explicam, contudo, a intensa busca processada por trás dos sentidos. O desejo de saber que nos compõe é tão radical que chega a negar-se, como se não restasse outra coisa para os habitantes de uma ilha do imenso negrume povoado de incontáveis outros planetas, estrelas e astros quase invisíveis, por inalcançáveis (como a fronteira do infinito para a vida protozoária, na escala do que vemos lá fora, talvez não muito diferente da nossa).

Negar a pergunta é comum quando a resposta demora ou escapa. O mais difícil é refazer a questão de modo a torná-la nova.

Apesar de sua raiz aparente – no extracorpóreo medido pelos sentidos – tomamos o sentimento por algo profundo. O que acolhemos à flor da pele remetemos ao nosso corpo íntimo. Remetemos à essência do que chamamos humanidade.

Uma essência que ansiamos transcendente, chave possível para os enigmas que percebemos e sentimos. Para os enigmas que somos.

Em um mergulho no conhecimento do corpo íntimo, a alma – essência transcendental em nós – de repente se revela nos porões da matéria viva que, temporariamente, ocupamos. E nos assalta a convicção – ou nos revigora a fé – de que sobram respostas nesta arca: pois deve existir muito mais em nossos genes do que supõe a nossa infante biologia.

No arco mágico a unir a natureza humana à natureza sem humanos, determinismo genético à explosão cósmica, bioengenharia à física das cordas e neurociência à física quântica, a consciência do que há em volta e dentro de si encontra um vasto campo intocado à frente, com o horizonte livre em quase todas as direções.

O banquete das velhas perguntas está só começando.

Heroes – 1ª temporada (Heroes – Vol. 1, 2006)
Criação: Tim Kring
Com Hayden Panettiere, Jack Coleman, Masi Oka, Sendhil Ramamurthy.

3.11.07

Cultivo à distância

O olhar aceita um sorriso e um abismo se desfaz. A parede de vidro some quando nos damos as mãos. O círculo indevassável de cada um abre passagem ao impossível na tangência do outro, que resume o espaço, suspende o tempo e distrai o abismo que nos aparta dos mundos fora de nós.

Absurdo é ganhar o privilégio do contato e perdê-lo inexoravelmente, no emaranhado de relações fluidas da “vida líquida” de que fala o sociólogo Zygmunt Bauman: “Não há como saber, pelo menos com antecedência, se viver juntos acabará se revelando uma via de tráfego intenso ou um beco sem saída”, escreve ele.

E o que há como saber com antecedência em nossa vida líquida que a cada dia parece escorrer mais rápido à revelia das dúvidas que imploram por menos pressa em direção à última gota?

O tempo de nossas relações líquidas é entrópico: desorganiza encontros, desarmoniza até os laços natos. Em uma hora dada de sua vida, pode estar mais perto quem está mais longe, e a ausência dos presentes pode ser bem clara. O pior tipo de romantismo agradece, o pior tipo de amor, ainda que seja o melhor consolo.

O tempo, no entanto, é também antrópico – depende o seu movimento dos passos que a gente dá. “Amar se aprende amando”: o tempo passado não destrói, apenas, relações enfraquecidas com os anos. A construção é feita igualmente no tempo. Poucas são as ligações fortes, em geral nutridas desde o berço, ou mantidas intactas no percurso.

Numa época de escassez e velocidade, a água, que já foi símbolo de placidez, é metáfora da turbulência. Sensações e sentimentos fluidos são turbulentos. Precisamos redescobrir a água. Ao invés de nos atirar à correnteza, mergulhar lentamente, reencontrar a lentidão.

Para reencontrar os mundos possíveis dentro e fora do nosso. Cada encontro não tem que ser um esbarrão. Lembranças podem ser doces e longas, e não um fragmento de memória quase cego de tão veloz.

Temos medo das invasões. De entrar sem convite, receber sem vontade. Ainda assim nos estranhamos – e talvez o temor seja o próprio estranhamento. Não há jeito. Familiares se estranham, grandes amigos se estranham, pessoas íntimas se estranham. O que nos leva a buscar em desconhecidos, e no convívio breve, momentos interessantes.

Aproximar-se é invadir, afastar-se é abandonar, no leito de água corrente. No leito de água corrente, qual a melhor distância para dois? Qual a melhor para todos?

Aproximar-se sem invadir, afastar-se sem abandonar, mergulhados num mundo alheio que nos reconhece em progressão – eis o cultivo do outro que nos arranca de vez em quando da abissal condição humana.

Cultivo capaz de transformar habitantes paranóicos em um mundo sedutor.


Invasão de domicílio (Breaking and entering, Inglaterra/EUA, 2006)
Direção: Anthony Minghella
Com Juliette Binoche, Jude Law e Robin Wright Penn.

28.10.07

Poética do corpo

A dança desenha sentidos simples para quem olha e sente o que vê.

O avesso da dança é o silêncio vestido com frases que se calaram e deixaram ausente o movimento.

Almas em cárceres tão amplos que vão além do horizonte podem se dar ao luxo de negar a dança e sua potência. A cor do mundo, com freqüência, desbota diante da única forma que cambia impressões sobre as demais. Mas a escuridão reinante desfia junto se o que anima a busca some da vista. Há múmias mais vivas do que isto.

O que nos anima? Quase nada. Quase sempre um tênue reflexo. Um olhar desata o gesto invisível perdido e reposto em cada passo ou no menor esboço de mudança no rosto, de si, de alguém. Olhares se cruzam pelo caminho. O caminho das cruzes do olhar.

São as paixões dispersas no palco que contam melhor o instante, do mistério transmitido de dentro para fora, que se transcende na contramão. O instante é a eternidade, de repente real.

A poesia não precisa ser dita? Tem que ser ouvida a poesia! Ainda que vague por nanodutos frágeis para todos os lados, sem direção, em um “caniço” arrogante e inerte.

A poesia no abismo de luz ao fim do percurso é o moto perpétuo jamais pensado, indispensável, chave de um segredo encoberto pelo próprio pensamento.

No animal consciente, o exposto não se impõe fácil.

O explícito pede espelhos. Imagens imploram por palavras. E o que é dito requer o esconderijo das últimas aparições.

Matemático e belo balé que se repete.

Para a contemplação muda.

Para a narração contemplativa.

Para o amor em plena forma de poesia.


Fale com ela (Hable com ella, Espanha, 2002)
Direção: Pedro Almodóvar
Com Leonor Watling, Javier Câmara e Dario Grandinetti.

15.10.07

Estrela cadente

Um amor ideal não se realiza, assim como não se projeta um verdadeiro amor. É contraditório o espírito romântico, e o tempo só faz piorar a situação, na esperança que desespera, no silêncio do que termina.

A esperança – na linda e singela definição contida no romance A mulher de costas, de Márcia Tiburi – é um medo verde, brotado no peito dos que têm paixão. Medo que finde o nem começado, medo colado ao desejo de completude a luzir nos olhos de quem ama.

Aliás, Márcia escreve como quem filosofa, e filosofa como quem conta estórias. Durante o programa Saia Justa, do canal GNT, exibido na semana passada, ela resumiu numa sentença a mudança nas relações amorosas – transição pós-moralista, quiçá pós-romântica – que nos afeta.

Uma mulher que mora sozinha perguntou que espaço deveria reservar para o namorado em sua casa, sem perder a privacidade e o prazer da relação. Tiburi foi clara e distinta: “O seu corpo, apenas, e nada mais”.

A resposta foi ilustrativa do novo mundo amoroso que germina, a partir de um novo e bem-vindo protagonismo das mulheres. Na tradição romântica, o corpo do outro é exatamente aquilo impossível de ocupar.

Para fugir do impossível, o romântico tradicional pensava noutra coisa, e arrumava impossibilidades maiores. Marcel Proust, ao tratar da insuperável ansiedade dos apaixonados, chega a dizer que a sua busca são todos os pontos do espaço e do tempo já ocupados e ocupáveis pelo corpo da figura amada.

Daí o ciúme como extrato obrigatório da cultura do amor romântico. O ciúme é o que aparece junto com a prisão da utopia (e a utopia da prisão).

Na época pós-moralista – longe da superação do moralismo, que resiste e se reinventa, como observa Gilles Lipovetsky – o corpo é tanto a conquista quanto o limite da nova ética amorosa.

Para o sofredor romântico, o corpo do outro é menos objeto e mais imagem, menos real do que fruto de uma idealização – já que o que sobra é a fantasia, ante a ausência da concretização. Inclusive a fantasia dos ciumentos, diante do desejo impossível de talhe proustiano.

O corpo do outro, no romantismo clássico, é feito estrela cadente riscando mais a imaginação que o céu. É romantismo da alma: da essência intocada e intocável, que faz do outro um deus, e o aprisiona, em reverência e vigilância.

No romantismo que desponta, o romantismo do corpo, o amor é compartilhado por dois sujeitos autônomos, que repartem o mesmo “objeto” da paixão. A noite estrelada deixa de ser o mote para um pedido exasperado, e se torna o espelho de laços oscilantes numa miríade de possibilidades.


Stardust (Inglaterra/EUA, 2007)
Direção: Matthew Vaughn.
Com Claire Danes, Michelle Pfeifer, Robert De Niro e Charlie Cox.

8.9.07

A realidade excessiva

Quando ilusões formam entulhos imaginários de tempo perdido, entupindo sinapses que levam a cenários além do cotidiano, impedindo a passagem do presente contínuo e o salto mais que necessário sobre o futuro imediato – então se costuma dizer, detrás de lágrimas, dentro do tédio, que a vida se perde em desperdício.

Antes do desengano, que trata os focos da existência inflamada, a concentração de ilusões é tamanha a ponto de proporcionar as condições primárias da mudança. Do alto da alma saturada, a vista angustiante, percebida, inquietada, faz da busca mais distante urgente proximidade. O desejo básico ressurge, do esboço traçado enquanto inexistiam os vazios aglomerados.

Mais tarde, tudo o que se juntou é revisto sem o peso de paralisia persistente. Depois da vertigem, do enjôo e da cura, são os abismos que fazem a ponte.

Desperdícios, portanto, não se jogam fora. O sonho nasce do não possível, de um projeto negado em algum momento em toda a plenitude real. Desperdícios são excessos de realidade contra o plano de fundo da ilusão.

Há um desperdício em cada vislumbre do belo porque há um sonho retido no flagrante de cada olhar.

Há um desperdício no que é dito, pois em silêncio sussurra o insinuante cortejo da poesia.

No que esconde e desvela, no que corre e desacelera, no que apaga e acende, no que jaz e sobrevive, no que foge e abraça, no que espera e cansa, no que cega e desperta – há desperdício na sobra de todo mundo ideal.


A pele (Fur: An imaginary portrait of Diane Arbus, EUA, 2006)
Direção: Steven Shainberg
Com Nicole Kidman e Robert Downey Jr.

31.8.07

A noite do dia

Nem sempre o tempo e o espaço andam juntos para a apreciação da consciência. O caminho que não se trilha pode não ser associado a dias perdidos, ou a horas paradas. Assim como um minuto poupado não costuma ser acrescido à perspectiva de novos passos.

Mas se um relógio pára, a imediata imagem formada na mente é a de um mundo de estátuas e cenários congelados, como se acabasse a bateria que movimenta o real.

Para a imaginação, a realidade paralisada no tempo se ausenta apenas no espaço, contudo: até que o tempo volte a ser marcado – crono-metrado – quem permanece acordado possui todo o tempo do mundo. Aliás, quando se dorme, aonde vai o tempo enquanto ficamos no mesmo lugar?

O sonho devolve o que aparentemente se perdeu, ao produzir a sensação de que não estamos deitados de olhos fechados enquanto o mecanismo do mundo gira. Um mecanismo gigantesco, onipresente, que pode a qualquer momento alterar o sentido do que se percebe, ou a raiz do que se acredita, bastando para isso reconfigurar os moldes de uma verdade em suspensão. Ainda que haja controle, ainda que haja uma explicação que foge das mentes sob controle, não importa: o obscuro conforta ao subtrair do ser-tempo a angústia de ser consumido.

A luz do dia interrompe o sonho, arremessando a consciência, com violência, para o tempo implacável do espaço vivido. Porque a nossa compreensão do tempo – como de tudo – é imitação do que vemos, o ciclo solar é de nossa conta. Se há uma sombra perene sobre o ser que conta o tempo, é a sombra da era imperceptível antes e depois dele.

Uma longa noite de vigília pode ser tão desagradável que mesmo os orgulhosos entes noturnos recorrem ao esquecimento da sombra, fazendo de conta que não falta sequer uma gota de luz.

Por outro lado, o hábito diurno precisa sumir da própria vista nos braços da noite. Há um cansaço que não dá trégua ao abuso dos sentidos, e a lucidez é maior após o intervalo noturno.

O dia é carente de sonhos na mesmíssima medida em que o sonhador carece de luz.

Cidade das sombras (Dark city, Austrália/EUA, 1998)
Direção: Alex Proyas
Com Kiefer Sutherland, William Hurt e Jennifer Connelly.

2.8.07

O resto é ruído

O corpo não liga para a voz muda: pensamentos calados não passam despercebidos. Que silêncio impede a dança? Que música não se ouve, quando o bastante há para escutar? É no silêncio que se dança melhor, e a melhor dança é aquela que parece não ter necessidade do som.

A vida tagarela pode ser simples, transparente e bela, como ensinam os que têm os sentimentos articulados na pressa da língua de sinais. O gestual eloqüente disputa com o olhar a atenção da alma que não cabe no corpo – que não cala porque não sabe calar.

Quando falar é impossível, vemos o quanto dizer o que se quer é difícil, mesmo à voz menos trêmula, à sílaba bem coordenada. E o quanto é fácil dizer, com menos, o que falamos demais.

Diante de um mundo a cada dia maior, de informações plenas em profusão, a toda velocidade e a todo instante, a mudez soa logo estranha aos ouvidos acostumados à cacofonia. Mas por pouco tempo. De repente nos damos conta de que é a mesma linguagem, quase a mesma história, quase as mesmas pessoas com que topamos sempre, que apenas se comunicam diferente.

Falar é tão fácil e às vezes o que sai da boca era já tão explícito que, tem hora, renunciamos ao entendimento. Abandonamos o óbvio – justamente aquilo que não poderia ser abandonado. Certezas esquecidas ou aprisionadas, dúvidas escondidas à espreita, à espera da recordação, do resgate, da libertação pela mera repetição do óbvio.

Assim como a novidade que surge pode trazer o perfume de certa experiência vivida, a manifestação de linha redundante pode levar ao reconhecimento do mesmo, noutra face. Feito similar brilho em outro espelho, a revelar nova imagem à mesmíssima luz.

A compreensão pede a palavra, e a palavra pede o gesto em seu reflexo. Viver é selecionar signos e passá-los adiante. Para qualquer um? Não, eis a questão! É preciso encontrar o par de cada mensagem – no momento preciso – no imenso “jogo da memória” em que o dito e o não dito se fundem em toda voz.

Principalmente se o ser inteiro – além da fala – é essa voz.


O resto é silêncio (Curta, Brasil, 2003)
Roteiro e Direção: Paulo Halm
Com Paula Mele e Valdo Nóbrega.

22.7.07

O tempo do fogo


Queira sua parte logo, tudo a que tiver direito, porque a vida é consumida e logo está consumada. Entre o calor de que não se foge e o brilho que às vezes some, ponha a mão no fogo e ilumine a estrela perdida na noite mal-assombrada.

Queira o fogo brando na lareira que se prolonga, sem se importar se o conforto vem da mesma flama que desbasta. O tempo mata e protege, fere e cicatriza enquanto te forma e te retira de um bloco de matéria bruta concentrada. Somos esculpidos pelo tempo que passa – e fora do tempo, somos nada.

Tenha pressa com toda a razão de ser: o tempo dado custa mais caro do que se imagina. Como emprestar o que não se possui? Como pedir porção extra do que não há? Antes de se tornar pó, nutre a esperança sensata do lume buscando o ponto mais alto para depois – e só então – se apagar.

É como se coubesse, a cada um, adequado quinhão de pólvora, fósforos e cinzas. Na visão da centelha que és, tu encontras a sombra dos outros e podes não ver mais a tua. Sim, a meia-luz te tira o sono. O tempo é o fogo alimentado pelo oxigênio que vive.

Um fogo que se transmite, ensinou Gaston Bachelard, filósofo da ciência. Pra mim, pra você e todo mundo que a gente conhece, o fogo é a duração do ser. Nos teus olhos o tempo arde por um instante, soa eterno sob a respiração quente, ritmada pela brasa vermelha que pulsa no peito feito sol muito longe.

Na filosofia poética de Bachelard, o fogo é amor que se descobre. Assim o tempo é redescoberto, a vida consumida transforma aquela consumada.

Assim o fogo que se transmite é o tempo que se revela, e o ser consumido, da aurora ao crepúsculo, só pode ser percebido como tempo compartilhado.

Me and you and everyone we know (EUA/Inglaterra, 2005)
Direção e Roteiro: Miranda July
Com John Hawkes, Miranda July e Brandon Ratcliff.

16.7.07

Mais que um

Querer ser melhor por causa de alguém é arriscar o passo na direção oposta à costumeira, na esperança de acertar o rumo soprado pelo acaso. Acompanhar o vento que recorda à lembrança o primeiro sonho da consciência: “Acorda – sussurra – e vem brincar de não ser um”.

Retirar o mundo do próprio umbigo e reconhecer o que está em volta é um dos efeitos colaterais da surpreendente descoberta de que se é aquém do que se poderia. Descoberta à espera, verdade óbvia, revelada pelo ímpeto de se mostrar menos feio, de se enxergar menos tolo nos olhos que servem de espelho.

Querer ser melhor por alguém é não fazer do outro o centro do mundo. É descartar o peso de qualquer sobrecarga no chão. E aproveitar a leveza proporcionada pela sorte, não desperdiçar a chance de retribuir o gosto de ser leve, sem nenhum motivo.

Por algum motivo, atrelar a vida a uma outra como se entrelaçam mãos, não como se forçam correntes. Trazer à tona gestos que não se sabe de onde vêm – apenas aonde vão. Oferecer à outra vida o que não se tem, e por isso se pode doar, fartamente: o ser, indecifrado, que se vislumbra do lado.

Querer estar do seu lado sem se fazer notar, como se a solidão fosse capaz de permanecer igualmente oculta e repartida – solidão que se afirma enquanto se nega, compartilhada.

Querer olhar junto em direções diversas e ainda assim não se perder de vista, como se todo o cenário do mundo não bastasse para afastar um do outro do palco.

Querer sorrir enquanto se existe, sabendo que o sorriso que se divide é maior que um sorriso só.

Querer ir além do que se é porque diante de nova seqüência – seqüência outra, mais bela, quiçá de suma importância. Pois embora haja tanto desencontro, é pela arte do encontro que vale cada vida, como cantou o diplomata poeta.

Melhor é impossível (As good as it gets, EUA, 1997)
Direção: James L. Brooks
Com Jack Nicholson e Helen Hunt.

9.7.07


Se o mundo fosse um pergaminho muito antigo, cada vivente em seu tempo seria uma página reescrita à exaustão. Do nascimento até a morte, palavras amontoadas – e o silêncio entre elas – relatariam o drama, o tédio e as paixões de um indivíduo em sua prisão inata. Letras sobrepostas no palimpsesto do mundo dariam uma versão entre bilhões de versões no tecido de um pergaminho antigo.

Cada segundo gravado seria apagado pelo mesmo motivo que o teria gerado. Os indivíduos contariam a si as suas histórias, e buscariam do lado de fora a identidade que escapa no reduzido espaço em palimpsesta grafia.

Os entes inscritos se sucederiam como um som grave repetido com o objetivo de algo muitas vezes maior que um som repetido, como números marcados em papel tão usado quanto esquecido. Números rabiscados feito seres concebidos por magia, e prolongados até o fim que confere o único sentido possível.

O som emitido por cada indivíduo, entretanto, esbarra em outro indivíduo na cacofonia do antiqüíssimo pergaminho. As histórias não apenas se amontoam: elas se entrelaçam, estranhamente.

Pois não é um inferno, e sim um mistério, o que são os outros. A voz alheia é voz que confunde. O que o outro faz será sempre um caso de perplexidade para a consciência fugaz que o fita – talvez como monstro na escuridão, ou como um anjo luzente que fala, para lembrar Shakespeare.

Seríamos mensagens cifradas à espera de leitura, símbolos perdidos no vácuo de signos sem chaves espalhados nas faces ansiosas demais. Restaria apelar ao reflexo tênue dos contornos alinhavados antes, uma vez que o brilho ofuscante dos que são escritos com a gente não tem como ajudar tanto.

Palimpsesto gigante, a cada órbita o planeta teria novas histórias, como imaginou Carl Sagan. Pelas histórias contidas, a Terra parece algo além de um ponto minúsculo no pergaminho do universo. Pelas histórias que nos contam, lançamos a vista na direção de outras rimas, adivinhando as sílabas como se fossem de um ato nosso.

Se tudo não passasse de uma concha inóspita, a mente, sem alternativa, se inventava.

E se tu não existisses – a outra voz, uma outra palavra, monstro do escuro, anjo luzente – eu dar-te-ia forma, e uma janela bacana dentro da minha história.


Contato (Contact, EUA, 1997)
Direção: Robert Zemeckis
Com Jodie Foster e Mattew McConaughey.
Baseado no romance de Carl Sagan publicado em 1985.

3.7.07

O mundo no personagem

Decorre de um emaranhado impossível de ser visto, emaranhado de motivos e acasos, de ligações extensas e fios soltos, sem sentido, uma tarefa das mais difíceis ao ser consciente – inventar-se.

Na busca infinda pelo que não entende, para melhor conceber a si, retira do exterior o tênue véu da razão, e deste fino tecido se veste. Mas ao mirar-se no espelho toma um susto, logo se atemoriza, porque não se vê.

A razão refletida do mundo não serve de roupa para a consciência, destinada a ser invisível pela imagem que lança do mais próximo objeto existente ao mais distante: a consciência não se revela ao detalhe do microscópio, nem à luz da luneta.

Cada ser consciente é um personagem autor da própria história. Ao mesmo tempo em que se escreve, se perde, se esquece, se descola de um enredo. A história do autor-personagem só tem início quando termina, e só pode ter fim depois de começada.

Desconhecer o roteiro é a condição de ir em frente, embora não se dê um passo que não seja, passo estranho, resultante de ato deliberado na direção de algo que jamais se enxerga.

Por isso o mundo é da cor dos olhos de quem assiste, e a cor é a cor forjada pelo percebido. Trágico ou hilário, entediante ou mágico, feio ou estonteante – depende de como cada personagem se desenha, e por tabela desenha o mundo.

Sim, o mundo está dentro de cada ser consciente, assim como toda história habita o seu personagem.

Mais estranho que a ficção (Stranger than fiction, EUA, 2006)
Direção: Marc Forster
Com Maggie Gyllenhaall, Will Ferrell, Emma Thompson e Dustin Hoffman.

27.6.07

A força invisível

Balas são pedras que gritam e voam, lapidadas em série, recheadas de preto para semear a destruição.

Balas são pedras que cumprem ordens. Ordens que vêm de armas que não sabem de nada. As armas disparam no escuro balas perdidas e balas que acertam a direção do alvo desejado pelo gatilho. Mas quem puxa o gatilho também desconhece a origem da bala, como se o gatilho fosse invenção da arma, ou extensão natural da bala.

Quem compra a arma e a bala não puxa todos os gatilhos. Porém nunca faltaram braços para atirar pedras. E quanto mais leves e rápidas as pedras, menos braços faltam. Para os portadores de pedras rápidas, metalizadas, prontas para receber ordens, as armas significam menor esforço e maior demonstração de força.

A força da bala é um valor imenso atribuído a objeto diminuto, quase invisível. Tão invisível que o animal armado nem se dá conta dele, apenas da força que o torna simbolicamente indestrutível – e o que está em volta, absolutamente vulnerável ao movimento mínimo engatilhado.

O que se vê não é a bala. É o que sobra de sua trajetória. A bala é a força invisível que faz do gatilho um detalhe. E de quem dispara, um super-herói aos próprios olhos, e um fantasma aos olhos dos outros.

No entanto, balas não caem do céu, armas não brotam do chão.

As guerras são feiras fúnebres de armas, balas e corpos. Corpos de animais ensangüentados, a maioria deles desarmada. Supra-sumo da matéria quente, a matéria viva sucumbe à matéria fria da arma, ao fogo falso de um bólido. O cheiro ancestral da carne em sangue desfeita alimenta a ilusão do encontro selvagem, instintivo, com a natureza do animal humano.

Protegido pela sombra da munição – seja de pedras à mão, ou de balas lascadas a laser – o homem se desumaniza, armado até os dentes.

Diamante de sangue (Bloody diamond, EUA, 2006)
Direção: Edward Zwick
Com Leonardo Di Caprio e Jennifer Connely.

3.6.07

Quebra-cabeças

Começamos pelas bordas. É mais fácil identificá-las, ligar as extremidades para fechar a moldura. Os limites achados dão-nos a sensação de dever cumprido, embora o interior do quadro esteja oco e tudo apenas começando.
As peças, do mesmo tamanho, nos confundem. Procuramos padrões além de sua forma semelhante – mas é noutras semelhanças, de cores e desenhos, que depositamos as esperanças. Grupos indefinidos são separados: céus com nuvens e céus azulados, os galhos e o tronco da árvore, ou as flores vivas de um Van Gogh estão à espera da descoberta, do desvelar-se, para que o nosso olhar reúna o que o tempo despedaçou.
Ao final restará uma tarefa, pois a figura inteira pede a distância. Será preciso abandonar o tato que juntou as peças para desvendar algum sentido no conjunto que se mostra de longe à visão.
Talvez não seja o resultado previsto nem desejado. Mas o que era mesmo que prevíamos ou desejávamos? Os modelos são ilusórios. O quebra-cabeças do tempo não tem um cenário-guia estampado na frente da caixa. São apenas as peças soltas que vão chegando uma a uma – segundos, minutos, dias – num fluxo incessante em que sempre faltarão peças, e sobrarão pedaços que não se encaixam e buracos sem solução.
E talvez, entretanto, quanto mais peças contamos mais se torne previsível o destino do tempo amontoado. Afinal as bordas já estão prontas, cada agrupamento em seu canto. Agora é juntar as partes, ver o azul no azul, o branco no branco, Van Gogh em Van Gogh.
O segredo das cartomantes e de todos que lêem adiante é compreender o passado que se posta à nossa frente tal e qual um quebra-cabeças montado – mesmo que não seja possível montá-lo completamente.

Premonições (Premonition, EUA, 2007)
Direção: Mennan Yapo
Com Sandra Bullock e Julian McMahon

1.5.07

Esboços

Era uma vez uma menina que gostava de contar estórias e desenhar bichos. Seu nome era Beatriz.
Os bichos falavam com ela e ela conversava com eles, e com os desenhos. Claro! Que autor não fala com os personagens? Qual criador abandona as criaturas à própria sorte? Jamais seria Beatriz.
A menina cresceu e virou uma grande autora de livros infantis.
A estória podia terminar por aqui. Mas quem pode resumir qualquer vida num esboço – a vida que leva a destinos que nem podemos imaginar?
Beatriz foi o esboço de si mesma até um dia: o dia em que foi publicada. E o livro pronto foi o esboço do que Beatriz queria dali em diante fazer.
Como a infância esboça os anos mais tarde, na preparação dos papéis, na experiência das tintas, na descoberta de formas e cores. Em cada criança o futuro brinca de agora sem a obrigação de acontecer. De mentirinha tão verdadeira que da fantasia aparece a centelha do que pode vir a seguir.
Em cada criança o futuro brinca de agora enquanto não chega a hora de achar no espelho um passado até então impossível de estar ali. O passado esboço do futuro flagrado no presente faz erodir a inocência divertida de ser o que não se era, para descobrir a velocidade com que se passa da imitação ao que se é.
Nenhum esboço fornece decerto o projeto daquilo que vem a ser cumprido. O bom dos rascunhos é a possibilidade aberta de sempre surgir outra coisa, além do que se vê, fora do que se previu.
Por outro lado, um esboço que se cumpre deixa de ser esboço para ganhar traços firmes, cores fortes, formas certas. É o tempo bem desenhado num caderno cheio de esboços e história pra contar.
Mas como Beatriz sabia, sempre há mais para desenhar: uma folha em branco convida o agora a brincar de futuro no esboço do que será.

Miss Potter (Inglaterra/EUA, 2006)
Direção: Chris Noonan
Com Renée Zellweger e Ewan McGregor

6.4.07

Sua vez



Ela não compreendia e não havia o que explicar, mas não se podia evitar um pouco de contemplação, susto, dúvida ou enternecimento à sua presença. Era como se fizesse, não o mundo parar (embora parecesse), e sim, acelerar, recuar e andar de acordo com o seu ritmo. Seu instante dominava os demais instantes: o tempo dela afetava o tempo dos outros.

Sua mágica era mostrar-se absurdamente real, sem precisar exibir-se. Algo se exibia através dela.

Algo digno de mirar-se por horas a fio sem que uma fadiga viesse. Que provocava torpor e inquietude, tão contraditório quanto efêmero e eterno, crucial e desimportante, enigmático e óbvio. E que produzia nos espíritos mais duros inegável apaziguamento.

A paixão declarada seria banal. Calar a poesia, que dela jorrava e para ela tornava, seria difícil. Na mudez atônita de uns e na eloqüência boba dos restantes ela desdenhava evidências da beleza que não via – e que sabia, assim, que não possuía.

Talvez tivesse razão. Aquele espécie de maravilha seminal, concentrada e viva, ninguém poderia “ter”. Ainda que todos pudessem “ver”.

Sua beleza era do tipo que não se repara, não se emenda, não se corrompe, nem se melhora. Que não se põe nem se tira, não está na roupa, na pele, nos pelos, no riso, na nuca, na voz, mesmo que neles se manifeste, como à revelia do corpo, a vida se mexe.

Era a vez dela. O esplendor tocou os que se aproximaram. Pura sorte: a beleza que ela não tinha mas era perceptível como vento no rosto trazia mudanças. Uma dor aguda se amainava. Algum equívoco se extirpava. Sonhos se recuperavam ou se fechavam. Cálculos foram refeitos. Certezas se afrouxaram. Esperanças, renovadas, se empilharam.

Aos olhos que seguiam os seus, sorria sem prestar atenção. Um dia tudo terminaria, e ela se juntaria à busca da multidão.


Beleza roubada (Stealing beauty, Itália, 1996)
Direção: Bernardo Bertolucci
Com Liv Tyler e Jeremy Irons.

30.3.07

Lente de aumento

A realidade está por trás dos olhos de quem vê – e não adiante, na cena iluminada pela lente da mente. É a parte mais visível da ficção, para Affonso Romano de Sant’Anna.

A ficção, nem sempre exposta, espontânea, no real, encobre o palco do mundo aberto a cada um. Do meu ângulo ou do teu, vemos porções de um cenário cuja totalidade sempre nos escapa.

Daí a função do que inventamos para preencher as lacunas daquilo que mal enxergamos. O desejo de saber é extensão inexorável do olho. Mas se o olho é frustrado, se fecha, e dá asas à imaginação.

De Platão a Matrix, os limites da realidade são transpostos pela razão – que filosofa ou fantasia, angustia-se ou se diverte de acordo com a distância em relação aos pontos que servem como cardeais.

Em uma parada qualquer entre a loucura e a lógica, a ficção é uma rota de fuga breve e leve. O mundo fictício é tão real que soa melhor que a realidade – tanto mais quanto os fios do real se confundem num emaranhado de imagens, meios e mensagens.

Possibilitada pelo caos de onde irrompe a ordem, pelo silêncio do qual emerge a fala, a ficção nos fascina ao ponto de parecer maior que a sua própria origem.


Lucia e o Sexo (Lucía y el sexo, Espanha/França, 2001)
Direção: Julio Medem
Com Paz Veja, Elena Anaya e Najwa Nimri.

29.1.07

A descoberta da diferença

Pode ser que as paixões não sustentem nada porque a matéria condensada de que são compostas evapora-se com o tempo e não deixa pistas do edifício de sonhos projetado em transe, quando a paixão é sólida como o corpo que surge mágico das brumas da multidão.

Pode ser... Mas e se não for? E se do romantismo rarefeito venha um castelo concreto de inimitável beleza transformado na adorável prisão das relações longevas, transparentes como a alma que salta do olhar do outro em muda conversação?

Pode ser que as bobices românticas não mostrem mais que espíritos em convulsão na dependência de uma âncora viva e atenta fora de si, sintoma de doença benigna causada pela pregação convincente da tradição cultural que cultiva a busca de uma realização impossível como fantasia vital.

Pode ser... Mas e se não for? E se no meio da ilusão embasbacada se ache algo alheio à ilusão, tipo a surpresa de alguém que não apenas não se importe com a fabricação virtual como desconheça e saúde os obtusos motivos que unem as pessoas em ligações consistentes após inefáveis aproximações?

Tudo pode ser ou não ser na seara das relações. Contudo “ser ou não ser” aqui não é a questão. Apaixonar-se tanto é forma de queda quanto sinal de elevação no reino breve dos mortais.

Por isso, apaixonar-se é principalmente desfazer-se da crença melancólica de que somos todos iguais perante todos os demais.


O amor não tira férias (The Holiday, EUA, 2006)
Direção: Nancy Meyers
Com Cameron Diaz, Kate Winslet, Jude Law e Jack Black.

8.1.07

Fechado a sete chaves


Os olhos de um velho sem corpo aprendem a dizer muito, inclusive sobre o horror de enxergar de dentro de um corpo que parece não ser mais seu.

Enquanto isso, no espelho das almas que falam e andam, fantasmas assombram o corpo, desejam-no, como à sombra da vida paira a morte. Feitiços de proteção ou ataque erguem a fortaleza de um “corpo fechado”, ou abrem os portões de um castelo vulnerável.

Mas tem que acreditar para que funcione. A fé precisa do corpo escravo. Precisa fazer do corpo engrenagem perfeita, encaixe de mecanismo invisível, peça medíocre de grande máquina imaterial. E apesar de tudo, com supremacia diante dos demais entes animados – matéria melhor que a matéria, o corpo humano submete-se ao incorpóreo.

Fazer do corpo objeto real e irreal, aparente e essencial, no limiar entre aquilo que toscamente percebemos e o que, além do corpo, imaginamos existir – eis o mistério da fé.

Calabouço da consciência ou “buraco branco no tempo” da matéria inanimada, como discorre o físico Peter Russell no livro com este título, o fato é que o corpo humano esconde um segredo trancado a sete chaves.

E ainda teme que a porta, aberta apenas pelo lado de lá, leve ao mundo sem fundo de um não-lugar, sem nada para olhar, onde nem luz haja mais.


A chave mestra (The skeleton key, EUA, 2005)
Direção: Iain Softley
Com Kate Hudson e John Hurt.