30.1.09

O mundo não é nosso?

Há algo destoante na fertilidade de um planeta isolado, tão longe de planetas da mesma espécie como se outros nem existissem. Como se o homo sapiens não fosse como os outros seres, e não pudéssemos partilhar da engrenagem fértil que nos inclui sem um grande pasmo, antes de qualquer fascínio.

Saint-Exupéry escreveu: “Em um mundo em que a vida se une tanto à vida, em que as flores amam as flores no próprio leito dos ventos, em que o cisne conhece todos os cisnes, só os homens constroem a sua solidão.”

A singularidade da Terra eleva a “sensação térmica” do ser que dirige o olhar para fora da ilha planetária, da atmosfera de vida, e não vê nada ou ninguém no ponto mais remoto acenando com um possível resgate. E a solidão humana se crê, assim, universal.

Para não pensar no assunto, ou se consolar pelo silêncio, o macaco falante inventou a posse da ilhota terrestre. Virou o “rei da selva”, o “filho de Deus”, assumiu o controle do conhecimento e almeja a regência da natureza. Fez do privilégio da visão consciente o motivo bastante para se considerar “dono do mundo”. Fez da solidão implacável uma desculpa para agir como se estivesse, de fato, sozinho, no controle de um barco vazio à deriva no cosmo desértico.

A noção matemática de posse abrange as noções de inclusão e domínio, expressa na teoria dos conjuntos pela idéia de grupos maiores contendo grupos menores ou elementos individuais. Segundo tal fórmula, diríamos que a Terra é um elemento do homem? Ou que o homem é um elemento da Terra? O que parece sensato? Matematicamente, portanto, soa absurdo dizer “o nosso planeta” no sentido de referência a um objeto de posse humana.

Por outro lado, no reino natural – no conjunto maior da biosfera – que pensamos tutelar, a posse não é realidade incomum. A biologia é cheia de exemplos, e atinge os mamíferos autoproclamados “superiores”. A mãe que carrega o filhote tem por certo que o filho é “seu”, pela relação simbiótica estabelecida, ao menos até que a necessidade exija. A lógica persiste no habitat que possibilita a proliferação de gerações de uma mesma espécie. A Terra tinha os dinossauros, os dinossauros não tinham a Terra.

A relação da humanidade com o planeta que nos carrega é especial, do prisma de nossa aparente potência de modificação da realidade terrestre. Mas não somos os proprietários deste pequeno ponto celeste, e muito menos da vida que emerge, fenece e ressurge no intervalo entre eras glaciais. O que fazer com a não-posse? O que fazer com a desconcertante liberdade do homem animal?

A percepção de que o mundo não é nosso pode gerar uma revolta inútil contra fatos inexoráveis, e apenas acelerar a extinção humana. Ou pode trazer um pouco de humildade à celebração de nossa virtual solidão – e aí, recordemos outras palavras do mesmo Antoine de Saint-Exupéry: “Que misteriosa ascensão! De uma lava em fusão, de uma lama de astro, de uma célula viva germinada por milagre, nós saímos e pouco a pouco nos elevamos até escrever poemas e pesar as vias-lácteas.”

Até onde vamos nessa ascensão, até onde vinga a nossa germinação, qual a extensão do milagre humano ou a duração da linha que nos trouxe do acaso – são questões que escapam do nosso campo de visão. Mas esse alcance depende, possivelmente, de nossa capacidade de superar a vontade de poder provinda de um notório complexo de inferioridade que acompanha toda solidão.


O dia em que a terra parou (The day the Earth stood still, EUA, 2008)
Direção: Scott Derrickson
Com Keanu Reeves, Jennifer Connelly e Kathy Bates.
Refilmagem de clássico da ficção científica de 1951.



4.1.09

Castelos de areia

Nesse estado alterado de consciência a realidade é o que menos importa. O mundo reduz-se a uma única visão, que consegue dar forma e cor inéditas ao mundo. A novidade desaparece com a desilusão, e com o retorno do velho cenário em preto e branco capturado pelo olhar a maior parte do tempo.

De um ponto de vista externo, o apaixonado está quase sempre enganado. Aquilo que lhe aparece não é bem o que parece, aquilo que sente não é tudo, e aquilo que diz não é só o que devia dizer. Há muito mais para notar e explorar do que supomos quando somos monotemáticos.

A restrição do significado – o universo cabe na luz de seu rosto, no som de sua voz, na presença de seu corpo – é o maior engano. O chão que some sob os nossos pés ou se apresenta como nunca antes, com tal solidez, tem o piso falso. E sabemos disso. Eis o pior. Tudo faz tanto sentido de uma hora pra outra que não pode estar certo, seria fácil demais. Seria bom demais: sem coisas incompreensíveis, sem perigos ameaçadores, sem qualquer sombra por perto.

O que não limita à mentira o objeto valorizado pela febre amorosa. O engano das paixões não as torna erros puros – assim estaríamos cometendo, aliás, o mesmo erro duas vezes (e de fato, cometemos, várias vezes). Mas se há mais do que o equívoco, é talvez porque seja algo essencial, exposto à falsificação. Algo cuja descoberta muda o mundo aceito e replicado no modo monótono da existência. Que ironia – a paixão monotemática retira a razão da monotonia...!

De onde vem, como surge e como some a essência das paixões é um mistério cujo deciframento pode não nos interessar. Basta-nos saber que a essência oculta dá-nos a graça de ser ativada e esmorecida em pontos diversos da vida.

A pressa dos apaixonados, descabida para os que espiam de longe e juram conhecer de cor o enredo farsesco, é pressa justificável. Pois é preciso se atirar à experiência da paixão, antes que a febre recue, o delírio passe, a maré avance e derrube a construção delicada, perfeita, de beleza esculpida sob medida na areia do acaso.


Amor sob medida (The best man, Inglaterra/EUA, 2005)
Direção: Stephan Schwartz
Com Seth Green, Stuart Townsend e Amy Smart.