17.1.13

As mulheres de Sacalina





A cena é tá chocante que a sua concepção não se sustenta por mais do que alguns segundos. A imaginação não demora a afastar a visualição mental, e é difícil aceitar a notícia como realidade. Que dirá pela segunda vez. Na Índia, pouco depois da vida perdida da estudante de Nova Déli, em decorrência de estupro por seis homens dentro de um ônibus, novo caso semelhante voltou a questionar o país acerca de seus valores. Pelo menos não houve vítima fatal (como se ouvissem a frase infeliz de Paulo Maluf, que declarou, anos atrás, em São Paulo, em tom de aconselhamento: “Estupra, mas não mata”).

Aliás, a infelicidade verbal também assola a Índia. O guru Asaram Bapu disse que “a tragédia não teria acontecido se ela tivesse evocado o nome de Deus e caído aos pés de seus agressores, chamando-os de irmãos e implorando para que parassem”. É ainda mais difícil acreditar nos estupradores recuando, tementes, depois que a menina de 23 anos de idade se prostrasse a seus pés – pedindo perdão, quem sabe, por ter-lhes despertado o desejo?! E ainda emendou, não satisfeito, Bapu: “Um erro nunca é cometido apenas de um lado”.

Além de expor à luz da mídia a ignorância que se disfarça no dogma, o guru trouxe à tona a raiz do ato violento: a tradição milenar de desprezo e discriminação das mulheres. O estupro não pode ser crime quando a mulher é, por princípio, a criminosa: pecadora, bruxa, tentação, demônio a ser dominado e incessantemente punido. Para muitas pessoas, e não somente na Ásia, um estupro pode ter como causa simplesmente o fato de a mulher usar saia, trabalhar com homens ou se portar de maneira ocidentalizada, seja o que isso signifique. Em locais próximos à capital indiana, o telefone celular – sim, o celular – e a calça jeans são proibidos para o gênero feminino.

Embora em nossos dias horrorize a audiência, a barbárie contra a mulher é o crime mais comum da história da humanidade. O processo de libertação, deste prisma, é recente, lento e com longo percurso pela frente. No final do século 19, o então jovem, mas já famoso escritor russo Anton Tchekhov fez uma viagem que surpreendeu seus contemporâneos. Num trajeto de meses de desconforto e sofrimento, foi até a ilha de Sacalina, e na volta publicou um livro de relato sobre o que viu. Nesse relato, descreveu o encontro com o povo nativo, os guiliaks, que se alimentavam de carne crua e encaravam a agricultura como pecado, exibindo costumes de pelo menos centenas de anos. Para eles, segundo Tchekhov, as mulheres eram “como se fossem objetos ou animais domésticos” e podiam ser “expulsas, vendidas e chutadas como cachorros”. A referência ao romancista e dramaturgo russo é emprestada de Haruki Murakami, no best-seller “1Q84”, em que, por sua vez, a cultura machista japonesa é o pano de fundo para um dos eixos da trama.

A notícia que chocou a Índia mostra o quanto as mulheres de Sacalina ainda vivem – na terra do “líder espiritual” Bapu, no Japão das gueixas, na China de Xinran – jornalista que reuniu no livro “As boas mulheres da China” episódios de abusos e privação de direitos fundamentais em seu país. No Brasil também resiste o comportamento dos ilhéus de Sacalina. Nada menos que 40% das brasileiras foram vítimas de algum tipo de violência doméstica, segundo dados de 2011. Com a Lei Maria da Penha, em 2006, as denúncias têm aumentado, mas o medo ainda faz reinar o silêncio. Como no mundo inteiro, um véu de vergonha encobre a brutalidade e a estupidez que marcam o desrespeito à mulher.


Ilustração: expressaomulher.blogspot.com.br