23.8.09

Salvo-conduto

A palavra no palco se expõe como se não tivesse corpo: como se não usasse boca nem ouvidos, como se não gastasse língua e nariz... Além de tudo, a palavra se mostra como se não levasse olhos! A palavra no palco é livre como palavra cega.

No escuro do palco, onde há menos escolhas, a palavra canta em liberdade. Como se lhe faltasse horizonte – mas também como se não lhe envolvessem, jamais houvessem lhe envolvido, um único muro, alternativas bifurcando-se, limites de qualquer natureza.

A liberdade da palavra é aquela que escapa inclusive ao instinto. O instinto é obediente. A palavra que sobe o palco desobedece. Comete o desatino premeditado. Presa do corpo e livre dele, a palavra traz belo paradoxo: para cumprir um roteiro, descumpre outro. Adensa a vida pairando acima da mera sobrevivência.

A palavra no palco é nua sem saber que a nudez existe. Por isso mente com sinceridade, mente e convence – quando lhe emprestam ouvidos, olhos, nariz e boca, o resultado não pode ser outra coisa senão a verdade.

A mudança se faz com a palavra. Da guerra à paz, a palavra atravessa um campo de batalha. Prisioneira, a palavra cala quando soa em vão. Sufocada, a resistência espera a hora da palavra. Mutilada, chora o que o grito de dor não recupera.

Na ira incontida dos que se anulam, na carga invisível das cicatrizes, a palavra exprime lamento e lembra o resquício do sonho roubado. O desespero vê de soslaio um consolo, com a lágrima que rola na face endurecida pela amargura.

O testemunho do horror consome de uma vez futuro e passado, deixando no lugar do indivíduo presente um estranho desfigurado a cada gota que passa. A palavra não cura, não traz de volta – mas busca no sonho a costura do ser desencantado.

A justiça que importa vem edificada pela palavra. Para dizer da igualdade no sofrimento, na impotência, na vergonha. Para ecoar essa igualdade se a palavra é uma ordem – ou quando é mais imperativa, explode em forma de arte.

Salvo-conduto em branco, a palavra no palco conduz e corrige a trama, de ato em ato.


Tempos de paz (Brasil, 2009)
Direção: Daniel Filho.
Com Tony Ramos e Dan Stulbach.

7.8.09

Teatro do absurdo

Com o sonho de virar protagonistas da história nacional, jovens chineses levam o entusiasmo de um grupo de teatro universitário para o movimento de resistência contra a ocupação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. A glória quente do aplauso é descartada em favor da expectativa pelo julgamento frio, a glória póstuma, porém duradoura, da História com “h” maiúsculo.

O fingimento artisticamente praticado desce o tablado para ganhar o lado de fora. A arte do ator deixa de ser um episódio cercado de rituais, transformando-se em instrumento de um ideal, a serviço da lógica da força máxima contra o inimigo. Assim, a causa do aniquilamento do outro, do assassinato brutal em nome do bem comum, é o desfecho esperado, ainda que adiado, em cada encenação.

A espiã disfarçada que se aproxima do alvo para atacá-lo, apaixonando-se e se deixando apaixonar por quem odeia, não faz uso da artimanha impunemente. O conflito a persegue. O sentimento simulado perde terreno. Uma nova gama de emoções aflora, advinda de reações imprevistas aos atos pré-programados.

Ao empurrar a verdade para a fogueira, a mentira também se queima. Se a aparência maquinada precisa ser perfeita para que a armadilha funcione, sob as cinzas do fingir constante, toda aparência é mentirosa. E a própria habilidade de ver, submetida à vontade de mentir, mal distingue um palmo adiante do nariz.

Tal ruptura entre a arte e a vida, aberta com violência de modo a permitir a infusão de uma na outra, feito matérias distintas, pode deixar em estilhaços a imagem que o sujeito tem do mundo e de si. Quanto mais fundo o mergulho na aparência criada, maior fica a distância entre a identidade e a falsificação dela.

Basta desconfiar de um fingimento e a realidade se desfoca: cada ponto refletido pelo avesso revela superfície opaca, de luz ausente. Na novela Um, nenhum, cem mil, Luigi Pirandello escreveu:

“Quando me punha diante de um espelho, acontecia uma espécie de sequestro em mim, toda espontaneidade acabava, cada gesto meu me parecia fictício ou postiço. Eu não podia me ver vivendo.”

Esse auto-sequestro decorreria da visão inesperada do hábito invisível que nos ata. Imagine o exercício fatigante de agir como se estivesse sobre um palco, sem palco; defronte ao espelho, sem espelho. Não apenas cada gesto seria acompanhado como se fosse ficção, mas o próprio pensamento, a fim de se passar por verdade, assumiria a condição de pensamento postiço de um personagem em ação.

Desejo e perigo (Lust, caution, China/EUA, 2007)
Direção: Ang Lee.
Com Tang Wei e Tony Leung.





1.8.09

De paradigma a piada














As restrições para entrar e viver em terra estrangeira são um sinal desconcertante do descompasso entre a política e o espírito de nossa época.

A burocracia resiste, por natureza, à disposição de mistura e convivência, cuja negação é anacrônica num tempo em que até as gripes tratam o planeta como um lugar só.

Existem dificuldades práticas para uma “abertura geral dos portos” que faça da patrulha de fronteira coisa do passado. Massas de jovens desempregados adorariam a chance de emigrar em busca de trabalho. Legiões de refugiados espremidos nas zonas de exclusão abraçariam a possibilidade de retorno e a liberação de um destino possível.

Há certamente milhões de pessoas, hoje, que correriam aos portões nacionais abertos feito ávidos consumidores avançariam numa loja em liquidação. No primeiro momento, é provável que algo assim acontecesse. Mas depois, esgotada a ânsia inicial, é possível imaginar que os fluxos para os locais mais cobiçados encontrassem seu equilíbrio, amenizando o susto dos autóctones em face das “invasões bárbaras”.

No fundo, a construção de muros, cercas, barreiras e postos contra o livre trânsito do cidadão é a grande contradição do discurso globalizante. A ilusão de separação é tão antiga quanto a certeza de segurança dentro das cidades muradas na Idade Média. Mas a sensação de segurança segregada proporcionada pela exclusão é vergonhosa. A doutrina da segurança quer impor a paz pela força, o que é logicamente absurdo. A paz não está dentro das fortalezas. A paz é quando se pode ir ao lado de fora sem medo, quando a relação com o outro não é discriminatória.

O controle de entrada e saída dos países deve assumir novos padrões no terceiro milênio. O documento será solicitado como informação, não para constrangimento, tampouco cerceamento. A vigilância do século 20 e dos primeiros anos do 21 será entendida, lá na frente, com um olhar parecido ao que lançamos aos nossos antepassados, para os quais o estrangeiro era apenas um prisioneiro de guerra sujeito à escravidão.

A transição para essa nova realidade, em que o espaço de liberdade se globaliza, conferindo à cidadania o status planetário, já começou. É possível percebê-lo no instante em que o carcomido paradigma do visto de permanência vira motivo de piada – na comédia, no riso fácil sobre o ridículo, sobressai o reconhecimento da mudança em curso.


A proposta (The proposal, EUA, 2009)
Direção: Anne Fletcher
Com Sandra Bullock e Ryan Reynolds.