25.7.09

A música da letra

A pausa é um silêncio por onde passa a respiração. O verso: caminho de silêncios. Pela voz o verso respira, fala ao átomo despertado.

Na respiração compassada a melodia aparece, necessária. A poesia salta na pausa que ressoa, na garupa do verso musicado.

Essa coisa viva enquanto ausente, pura quando misturada, não é vista senão distante. A trova é maior que o trovador, ainda que ele sobressaia somente se a trova existe.

Como tempo filtrado no pulmão, a mistura que vem da voz ritmada em prol da palavra apura no verso a fusão entre o som e a letra soprada, a nota e a frase montada, o leitor e o coro da multidão. Cantar é mais do que ler – é achar na harmonia do ar a escrita em ondas de canção.

Lugar em que a letra se encaixa, o caminho de silêncios ganha direção, a música dá forma à palavra como se não fosse possível distingui-las. Porque a palavra é imagem que não tem forma, e a música, forma que não tem imagem. Da união nasce um significado. Reconhecemos na letra a melodia, e vice-verso, feito a expressão de uma coisa só.

Em tal encontro, o alfabeto não disputa com a partitura. Os sinais não operam em planos iguais. São linguagens que se entendem sem ser a mesma linguagem. Sinais estrangeiros referindo-se ao mundo sem dividi-lo em reinos apartados, nem dimensões paralelas. O real expandido ao infinito – o território da poesia.

A exploração do território pode resultar na descoberta de faces do tempo ao longo do caminho. Entre elas, a brevidade do sopro, uma razão suficiente para evitar discussões estéreis, para Adriana Calcanhoto. A evidência do passado, onde tudo espera, já que o futuro não é mais que uma brincadeira em que se tropeça, segundo Tom Zé.

Ou o desejo voraz, que cresce e fortalece o coração que consome e também é consumido, presente no poema de João Cabral, Os três mal-amados, declamado por Lirinha:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato.
O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço.
O amor comeu meus cartões de visita.
O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas.
O amor comeu metros e metros de gravatas.
O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus.
O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas.
Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X.
Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia.
Comeu em meus livros de prosa as citações em verso.
Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete.
Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa.
Bebeu a água dos copos e das quartinhas.
Comeu o pão de propósito escondido.
Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas.
O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras.
Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade.
Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré.
Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.
Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia.
Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas.
Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam.
Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta.
Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra.
Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão.
Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

Palavra (en)cantada (Brasil, 2008)
Direção: Helena Solberg.
Documentário com as participações de Adriana Calcanhoto, Tom Zé, Lirinha e Chico Buarque.

7.7.09

A verdade ideal

Como você inventaria o que não existisse? Como entenderia ao cruzar no meio da rua com uma idéia perfeita? Nem tudo que se idealiza é pleno desejo, ou reflete somente o plano polido do espelho.

Ela é aquela que você vê, mas seu vislumbre ultrapassa o conceito da visão. Porque ela é, pra você, bela e sublime. A beleza dela lhe parece o mero conduto do que não se exprime sem se perder, e não se percebe sem um grande susto.

Ela lhe perturba, e por perturbá-lo assim tão claramente é que a existência dela lhe confronta. Você percebe e se assusta. Você pára e escuta, na esperança de que a ilusão se revele, e se revelando, fuja. Mas no íntimo você não quer a fuga, quer o oposto da fuga.

Um senso de realística eternidade toma conta de você ao estar na presença dela, e você imagina o quanto seria bom e fácil e simples respirar a mesma atmosfera que ela por mais vezes, até por muitas vezes mais. E se isso transparece, ela apenas acha graça no momento em que você, crente que vivencia o eterno, não se dá conta de que seus braços e pernas viram mil braços e pernas e não decidem aonde ir. Ela acha engraçado o seu desalinho, sem sorrir, pois pouco importa: aquele é seu instante, não o dela, a sua eternidade, não a dela.

Ela não é fruto de sua imaginação – ela se transforma no fruto mais doce da sua imaginação a cada encontro, por mais fortuito, breve que seja.

Você imagina que esses encontros podiam depender menos do acaso. Que a sensação de eternidade que lhe toma junto dela abandonasse o realismo maluco que enlouquece, assumindo a leveza de um dia comum. Que o sorriso dela não fosse a estrela que explode irradiando luz e energia que você presencia num lance de sorte, e sim, a chama da fogueira ao seu lado, à noite.

Imagina os olhos dela prestando atenção em algo que pode ser dito uma extensão sua. Imagina os olhos dela prestando atenção no que ouve enquanto você lê. Imagina os olhos dela buscando no vazio uma ligação com o que você pensa, mesmo que você não tenha nunca como saber.


A mulher invisível (Brasil, 2009)
Direção: Cláudio Torres.
Com Selton Mello, Luana Piovani, Vladimir Brichta e Maria Manoella.