13.10.10

Bom é aproveitar




Uma viagem que não se completa pode ser extenuante até o momento em que se percebe e se sente o gosto puro de viajar. Mesmo sem sair do lugar, já que não é sempre o corpo externo que necessita do movimento, da variação.

Por isso o ensinamento inclui o sorriso do fígado: da alma do corpo que se retrai. A meditação não vale apenas para a mente aquietar-se. Vale para o corpo inteiro sair do declive e achar a justa velocidade no percurso que não tem volta.

O equilíbrio humano é sutil e enganoso. Há quem se equilibre no alto do abismo, há quem prefira a segurança de ondas na beira do mar. O engano está em supor o equilíbrio seguro, ou tomar uma zona de conforto pelo equilíbrio final.

Escapar do conforto é uma busca clássica, no entanto, que também não garante a jornada tranquila... Estar em constante fuga, e em eterna manutenção, é próprio do homem - da insatisfação do ser que não se cansa de estar atrás de si mesmo, de experimentar os prazeres, as dores, os traumas e alegrias de uma travessia que é feita, de uma forma ou de outra.

Através do tempo, e de cada um, caminhos se formam e se cruzam, aqui ou em outro lugar. E à semelhança do desbravamento de mundos e do deslumbre de novas paisagens, o primeiro passo é pedido a quem quiser aventurar-se no vasto repertório de imagens, direções, paladares e transcendentes ligações possíveis durante toda a viagem - que todos querem, mas nem todos sabemos ou podemos aproveitar.


Comer rezar amar (Eat pray love, EUA, 2010)

Direção: Ryan Murphy
Com Julia Roberts e Javier Bardem.

26.9.10

Partido da opinião pública




Editorial do Jornal do Commercio

A manifestação promovida pelo Partido dos Trabalhadores, sindicalistas e partidos aliados na última quinta-feira, contra o que se chamou de “golpismo da mídia”, extrapola o âmbito eleitoral, apesar de convocada neste momento. Irritados com a sucessão de notícias sobre as denúncias envolvendo a ex-ministra da Casa Civil Erenice Guerra, ex-assessora da candidata palaciana à sucessão de Lula, Dilma Rousseff, os manifestantes coroaram, com o evento, uma série de declarações infelizes feitas nos últimos dias a respeito do tema.

O ex-ministro – e quem sabe futuro – José Dirceu foi o primeiro a disparar contra o estado de direito que o transformou em réu do mensalão, dizendo que “o problema no Brasil é excesso de liberdade de imprensa”. Na mesma linha, o presidente da República afirmou que “o povo mais pobre não precisa de opinião pública. Nós somos a opinião pública”. Para Lula, jornais e revistas tomam as dores dos virtuais derrotados e se comportam como se fossem um partido político. Na ótica do líder petista e chefe da Nação até 31 de dezembro, o fortalecimento democrático atrelado à liberdade de imprensa só parece ser válido se estiver isento de críticas – o que seria a negação do princípio de independência que deve pautar a livre expressão em qualquer país do mundo.

O secretário de comunicação do PT, André Vargas, ratificou as palavras de Dirceu e Lula. “Achamos que isso pode influenciar a eleição. Não podemos esperar isso acontecer”, disse, referindo-se aos editoriais que estariam “muito agressivos” na cobertura do escândalo da Casa Civil. A manobra diversionista que ataca os emissários de notícias desagradáveis à cúpula partidária não é novidade na história petista. É quase um expediente de manual: houve denúncia, primeiro dá-se a vitimização dos suspeitos, e em seguida, tira-se o foco do mérito para fazer de alvo os canais de comunicação.

O que nos deixa mais preocupados é a elevação do tom de guerra contra a imprensa ao longo do tempo. Quanto mais o PT permanece no poder, menos a agremiação se mostra confortável com o funcionamento das instituições cujo dever é prezar pelo aperfeiçoamento democrático. Se os casos de corrupção que afetam o partido e o governo não passam de “invenção da mídia”, porque todos os principais suspeitos foram afastados de seus cargos, desde 2005, incluindo José Dirceu e Erenice Guerra? Sintomaticamente, a frequência com que se tem tratado da questão da liberdade de expressão no Brasil é incompatível com um ambiente democrático amadurecido.

Ainda que o calor da disputa tenha afetado a emoção presidencial, nunca antes na história de seu mandato Lula foi tão contundente. Para ele, a verdadeira opinião pública dos pobres é aquela veiculada pela voz inconfundível, exclusiva, da autoridade do governo. O que o presidente não diz é que, sem imprensa livre, não há opinião pública – pois a imprensa tutelada, restrita à redação oficial, produz apenas a opinião de governo.

Além disso, vale lembrar que a opinião pública não vem somente do que dizem os meios de comunicação, mas repercute o que pensa parcela importante da sociedade. Ou o PT teria coragem de afirmar que entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também são inimigas que precisam ser derrotadas? Em atenção aos fatos e em resposta à urgência ética que passa à margem do PT e ultrapassa a agenda eleitoral, foi lançado, um dia antes do evento petista, um manifesto em defesa da liberdade e da democracia, assinado por juristas e personalidades como o cardeal dom Paulo Evaristo Arns, Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior, Ferreira Gullar, Carlos Vereza, e o ex-secretário da Receita Everardo Maciel. Com o nome de Se Liga Brasil, o documento traz um alerta contra o autoritarismo latente nas propostas restritivas do exercício da atividade jornalística e da liberdade de opinião.

Passada a estação eleitoral, esperamos que o presidente e o PT recuperem o bom senso, e se convençam de que o partido da opinião pública não tem sigla, nem dono, sendo a pluralidade e a capacidade de crítica seus principais atributos.

Foto: Último Segundo/iG
 

18.9.10

Queda na Casa Civil



Editorial do Jornal do Commercio

A saída de Erenice Guerra do governo federal, por força das circunstâncias, não pode deixar de ser devidamente analisada em detrimento do pleito eleitoral que se aproxima. Pelo contrário, é por causa das eleições gerais que o episódio precisa ser posto à luz da objetividade, sem as lentes de aumento de casuísmos.

Neste sentido, importante é ressaltar o papel que coube à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). No dia anterior à renúncia forçada, o presidente nacional da entidade, Ophir Cavalcante, defendeu o afastamento imediato de Erenice, pelo bem das instituições e das investigações. A manifestação isenta e veemente da OAB em prol de valores éticos na política é um bom sintoma de amadurecimento democrático. Sua participação na redemocratização, desde 1985, merece capítulo à parte em nossa história recente – e não seria diferente agora, nas graves denúncias contra a ex-ministra, seu filho, marido, irmãos e círculo familiar.

Quando organizações como a OAB entram em cena, a propósito, logo sucumbem as tentativas de se desqualificar certas denúncias como mero produto de uma mídia engajada. Apenas poucos dias atrás, o Partido dos Trabalhadores, o Palácio do Planalto e a candidata Dilma Roussef faziam questão de detonar o mérito das notícias, como se fossem balões de ensaio arquitetados pelos concorrentes. A contundência dos fatos, no entanto, elevou o volume das críticas nos principais órgãos de imprensa do País, culminando no posicionamento firme, em tom de cobrança, do presidente da OAB.

A gravidade do escândalo que toma o governo Lula em plena transição eleitoral se fia na suposição de que o balcão de negócios da politicagem voltou a se instalar com desenvoltura, servindo-se do privilegiado ponto de apoio e articulação da Casa Civil – como nos tempos de José Dirceu, denunciado pela Procuradoria Geral da República como líder da quadrilha do mensalão. Foi isso que levou a OAB e parcela dos meios de comunicação a aumentarem a pressão, diante da fratura exposta no círculo familiar de Erenice Guerra. Com ou sem eleições à porta, o Palácio do Planalto não poderia seguir fazendo de conta de que tudo não passava de factoide, e continuar eximindo-se da responsabilidade de dar uma resposta à sociedade.

O esquema de propinas flagrado na Casa Civil recorda a sistemática da República de Alagoas – como ficou conhecido outro famoso esquema de corrupção coordenado, no governo Collor, por Paulo Cesar Farias. Os indícios de momento estão longe de configurar, como escreveu Erenice em sua carta protocolar de renúncia, uma "sórdida campanha" dirigida à sua família. A diversidade de fontes e a identificação de novo foco do mal crônico que circula pelos corredores de Brasília contribuíram para tornar insustentável a sua permanência no cargo.

O escândalo da Casa Civil volta a revelar o perigoso fio solto de um Estado corrompido, corruptor e corrupto, em que ideologia e patrimonialismo andam de mãos dadas. É verdade que é possível extrair algum peso da crise, sob a alegação de que nem o governo Lula, nem o PT inventaram o sórdido pecado que assola a nossa elite política. Assim como o atual governo não foi o único, neste quarto de século, a ostentar viciada máquina pública às voltas com suspeitas de desvios, comissões, superfaturamentos e outras maracutaias engendradas para assaltar o dinheiro suado do contribuinte.

Ocorre, todavia, que o viés político da crise não se encerra com a saída de Erenice Guerra. Até porque uma relação de afinidade profissional também entrou em crise – aquela que, desde a época do ministério de Minas e Energias, fez de Dilma Rousseff a principal protetora de Erenice no governo, tornando-a sua sucessora na Casa Civil. Tal relação solicita da candidata governista, favoritíssima nas pesquisas para suceder Lula, que ofereça o seu quinhão de respostas às perguntas no seio do escândalo.

A apuração das denúncias é necessidade premente. Mas a queda na Casa Civil demonstra ao menos que, no Brasil, o poder central ainda não é capaz de fazer ouvidos moucos ao clamor da opinião pública.

Foto: Agência Brasil.
 

13.9.10

Mimo na agenda cultural





Editorial do Jornal do Commercio

A sétima edição da Mostra Internacional de Música de Olinda (Mimo), encerrada dia 7, foi um grande sucesso de público. Este ano, a mostra cresceu em todos os aspectos: o número de atrações saltou de 27, no ano passado, para 39, houve expansão geográfica, com eventos também no Recife e em João Pessoa, e o público estimado durante os seis dias de programação pode ter passado de 100 mil pessoas. Além disso, a organização também diversificou apostando na exibição paralela de filmes de temática musical, juntamente com as palestras e oficinas. Até a repercussão do festival, que nesta edição homenageou o mineiro Wagner Tiso, foi maior, com cobertura da crítica especializada da Alemanha e da França.

O interesse da mídia internacional foi consequência direta da escolha dos convidados. Das 1.200 pessoas envolvidas na produção, 650 eram músicos. Alguns deles, consagrados no exterior, e pouco conhecidos do nosso público, como os pianistas McCoy Tyner e Mario Canonge, e ainda o guitarrista Mike Stern, vencedor de seis prêmios Grammy. Entre os convidados nacionais, nomes de destaque como o maestro Isaac Karabtchevsky, o pianista Jean Louis Steuerman, o cantor Tom Zé, Leo Gandelman, Egberto Gismonti, Dado Villa-Lobos e Carlos Malta deram mais brilho ao festival. Talentos regionais tiveram seu espaço, como Antônio Madureira, Ana Lúcia Altino e Leonardo Altino, o Conjunto de Cellos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), bem com as orquestras sinfônicas da UFRN e da cidade do Recife. A Orquestra Sinfônica de Barra Mansa, do Rio de Janeiro, foi a orquestra residente.

Nas Igrejas da Sé, da Misericórdia, do Convento de São Francisco, de Guadalupe, da Madre de Deus, ou na Praça do Carmo, as orquestras de música clássica e os grupos de jazz deixaram os ambientes lotados e o público emocionado com inesquecíveis performances. O que teve início modestamente, com cinco concertos, sete anos atrás, em pouco tempo rendeu os frutos esperados de uma boa ideia, capitaneada pela produtora carioca Lu Araújo, diretora do evento, e hoje consolidada na agenda do País graças ao apoio de grandes patrocinadores, como o Ministério da Cultura (MinC), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Companhia Elétrica do São Francisco (Chesf), além da Prefeitura de Olinda. O custo desta edição foi de R$ 1,5 milhão. Apesar do sucesso reconhecido, a Mimo enfrenta dificuldades para sua sustentação, uma vez que promove eventos gratuitos. “Ficamos numa gangorra para fechar os patrocínios”, afirmou Lu Araújo à reportagem do JC.

A proposta de utilização das igrejas como casas de espetáculos para shows e concertos musicais gratuitos não poderia ter outro destino senão o êxito obtido pela Mimo. Aproxima o público dos artistas, serve de vitrine tanto para monstros sagrados como para aqueles que estão buscando espaço, populariza a arte musical e ainda valoriza o patrimônio histórico representado pela bela arquitetura religiosa encontrada no Brasil. O investimento na expressão cultural em locais vocacionados para a arte se revela igualmente proveitoso para a economia. O turismo obtém ganhos importantes, com o aumento da taxa de ocupação de hotéis e pousadas, a movimentação gastronômica e o comércio no entorno dos pontos de realização dos eventos. De acordo com a Associação dos Empreendedores do Sítio Histórico, a ocupação média do setor de hospedagem foi de 85% durante a Mimo.

Por outro lado, a definição de um programa eclético, marcado pela mistura entre o erudito e o popular, parece ter sido a melhor opção para um evento com o caráter de atrações múltiplas e simultâneas. Os problemas isolados de acústica nos templos transformados em palcos, ou mesmo na distribuição de senhas para os espetáculos, não retiram da Mimo a excelência conquistada. A mostra evoluiu, alcançou o respeito mundial e caiu nas graças do público pernambucano. Merece a inclusão no nosso calendário cultural, com todas as honras de um evento bem concebido, bem montado e bem recebido pela plateia apaixonada por música da melhor qualidade.


 

12.9.10

Praça vazia





No início a aventura é solitária. A descoberta de si toma o roteiro da percepção: o cheiro do ar, o som das vozes, o tato, o paladar da nutrição. Tudo é assustadoramente simples. A vida parece simples a olhos recém-chegados.

Seguir o roteiro original é seguir só até o fim. A solidão por companhia é a única certeza em uma jornada imprevista. Sem outra rota: sem alternativa. O rumo mantido traz a ilusão de que se conhece o caminho. Assim é que cada um se integra à multidão, multidão que mal se nota por causa dessa integração, que reveste a solidão em várias faces.

Até que algo acontece no meio da rua. Algo que não existia, passa a existir. Como alguém que nascesse – fora de você.

No mar de gente à deriva em todo lugar, encontrar um náufrago não é difícil. O que não é fácil é sair da condição primeira que lhe põe a vagar sem destinação, acatar um destino vinculado à imprecisão de rota alheia, que não a sua.

Quando se diz que uma pessoa “saiu de si”, é porque está fora do prumo, descontrolada. Quando você se apaixona, é o que acontece. Você perde o controle, descarrilha. A paixão faz sair de si, provoca um descentramento. Viagem fora do corpo, atrás dos segredos de outra alma, por dentro e por fora de outro corpo.

Você sempre preferiu fugir. Você fugiu do lugar em que “as coisas são sempre as mesmas” – em casa, o lugar de origem, a vizinhança familiar – para criar o seu próprio lugar de imutabilidades. Enquanto permanece só, alimenta a ideia de que a rotina de família não o contém. Mas quando a solidão é quebrada, não tarda a ver a ameaça do lar arquetípico a rondá-lo, prestes a atirá-lo num poço de areia movediça.

Você não frequenta casamentos. As cerimônias, diz, deixam-no claustrofóbico. Qual a claustrofobia das cerimônias, senão aquela do que se impõe como escolha e, estranhamente, como destino do qual não há saída? O sufocamento e a sensação de estar numa prisão, que lhe afastam das cerimônias dos outros, servem de barreira para o caso improvável de sua sedução pelo infortúnio. Por isso você nunca irá se casar – para continuar livre. Não lhe ocorre que podem não ser, todos os elos, correntes.

Seu isolamento é visto como parte de sua força. Você habitaria o silêncio dos fortes, que não largam dúvidas pela estrada, rastros de sentimentos. Você se expressa pouco e mal. Aparenta não ter aprendido a sofrer, como se não tivesse sofrido. Acuado pela novidade, você chega a ser rude.

Você, que se enfurnava no quarto quando criança, preferiu morar longe de casa, perto da multidão – e agora faz parte dela, e isso lhe faz tão bem quanto antes, na infância, fechado em seu mundo, entocado no quarto. Hoje se entoca na rua, na boate, no shopping, no bar e no trabalho, intocado e intocável a qualquer hora.

Então você topa com alguém que olha diretamente pra você, no meio da turba, sem dar pinta de ligar para o disfarce ou o medo. Ela sorri de tudo e se mantém ao seu lado, mesmo quando está ausente. Ela toma seus braços enquanto caminham, finge não vê-lo tropeçando. Ela merece um jardim inteiro de cores floridas a cada sorriso que dá... e ela sorri tanto! E para seu espanto, ela não demonstra o menor esforço. Para ela, acompanhá-lo é natural feito respirar. A coragem que falta em você, nela sobra: a coragem de se entregar.

O problema é que ela não faz nenhum sentido. Ela é dádiva abandonada numa praça vazia – e a praça é você. Ao lado dela, você jamais sentiu-se tão bem. Por que a projeção desse estado antecipa uma duração de dor? Ela é incompreensível dentro do vazio que você montou pra você. A construção de uma vida inteira não ruiria facilmente. Nem com ela. Quando ela recosta em seus ombros, você pensa quase instantaneamente que está errado.

Ainda que tê-la presente fosse presenciar espetáculo incessante de poesia e beleza. Rapidamente ela passara a fazer parte de sua vida. A principal parte, mais importante e urgente do que tudo mais. Ela era o que você temia? Você não tem como saber. Antes de ir além, de prosseguir naquele êxtase inexplicado até o limite, antes mesmo de sequer tentar, você achou que não suportava.

Um pensamento claro lhe ilumina, “Não quero ser parte da vida de ninguém, nem que ninguém seja parte da minha”. O pensamento obscuro lhe cega. A razão supostamente de escudo, a paixão é convidada a ir embora. A razão é mera desculpa. No fundo, o que o guia no freio da desistência é um sentimento mais profundo de desamparo, que lhe atiça e lhe queima desde cedo.

Depois que ela se vai você se dá conta da merda que fez – ou que não fez. Servir-se do consolo da história que passa, reduzi-la a um episódio único, obviamente não lhe ajuda em nada.

Você aprende da pior maneira que encerrar-se em manias e rotinas, fazer-se refém de preconceitos, é perder tempo, desperdiçar chances para o inusitado, a virada, a mudança.

A aventura, pra você, é uma aventura empobrecida.



Issiz Adam (Turquia, 2008)
Direção: Çagan Irmak
Com Melis Birkan e Cemal Hunal.


 
 
 
 

11.9.10

Reforma de um monumento





Editorial do Jornal do Commercio

Devem ser concluídas, em junho do ano que vem, as obras de reforma iniciadas há cerca de três anos no prédio da Faculdade de Direito do Recife (FDR). Mais do que uma referência histórica, para muitos pernambucanos a velha faculdade é uma referência de vida. Parte expressiva de nossos atuais políticos, intelectuais e integrantes do meio jurídico passou pela Casa de Tobias - como é conhecida, graças a outro ilustre aluno, Tobias Barreto, e por onde também passaram nomes como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Barbosa Lima Sobrinho. Parte importante de nossa história foi, em suas bancas, concebida.

O anúncio da previsão do encerramento das obras é simbólico, uma vez que em 2011 o prédio completa 100 anos de inauguração. A recuperação de um dos mais valiosos patrimônios da história social brasileira tem se arrastado desde 2007, quando se comemoraram os 180 dos primeiros cursos de direito no País, criados por dom Pedro I nas faculdades do Largo de São Francisco, em São Paulo, e de Olinda, inicialmente no Mosteiro de São Bento. Somente mais tarde a faculdade seria transferida para o endereço que ocupa até hoje, na Praça Adolfo Cirne, na Boa Vista, no Recife, junto ao Parque 13 de Maio. Durante as celebrações, em 2007, a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sem recursos, foi obrigada a lançar uma campanha para mobilizar empresas, ex-alunos e a sociedade com vistas a arrecadar fundos para a restauração que se mostrava urgente. Já em 2004, a história representada pelo antigo prédio chegou, literalmente, a ruir: um pedaço do teto se desprendeu em plena aula, caindo sobre a mesa da professora.

Em 2008, graças ao patrocínio de mais da metade do projeto pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), foram levantados os R$ 3,5 milhões necessários para custear a empreitada, com intervenções nos forros, nas estruturas metálicas, no revestimento das abóbadas, na impermeabilização das calhas e nas fachadas do prédio. Segundo a diretora da FDR, Luciana Grassano, a entrada da Rua Princesa Isabel deve ficar pronta daqui a alguns meses, em novembro, e o salão nobre poderá receber os alunos na abertura do primeiro semestre letivo do próximo ano. Dois anfiteatros e a biblioteca ainda estão na agenda da restauração, preparando-se para o centenário da edificação.

Como relatamos em matéria publicada no último dia 29, o que está em vias de finalização é apenas parte de um longo trabalho. A fim de recuperar esquadrias, portas, pisos e adornos internos, um novo projeto se encontra em elaboração, para ser submetido à Lei Federal de Incentivo à Cultura. Somente depois de aprovado, a faculdade estará autorizada a captar recursos para executar essas obras.

A restauração de monumentos vivos como a Faculdade de Direito enfrenta a via-crúcis comum dos prédios tombados no Brasil. Em vez de termos uma política consistente de manutenção patrimonial, que privilegie a conservação contínua, observamos o cíclico clamor pela recuperação, quando os edifícios dão sinais de cair aos pedaços. O resultado é que a gestão da preservação por projetos emergenciais se torna muito mais caro para a sociedade, que financia o remendo milionário quando podia pagar menos pela prevenção. A deterioração dos prédios públicos é um triste exemplo da má administração que reflete o desrespeito pela história e pela tradição nacionais, que não foge à regra em Pernambuco.

Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1979, o prédio da FDR mereceria mais atenção do poder público, em suas diversas esferas. A história que se repete desde a década de 1980 é a da busca periódica de recursos financeiros para minimizar os estragos do desgaste do tempo, visíveis na deterioração acelerada de construções antigas. O cumprimento do cronograma de obras, em tempo para as festividades que certamente ocorrerão no prédio recuperado, em julho do ano que vem, deveria servir como ponto de partida para uma nova fase da política de conservação de um patrimônio que embeleza o Centro da cidade, e ecoa no interior da Faculdade de Direito do Recife.

 

8.9.10

Reciclar agora é lei






Editorial do Jornal do Commercio


Com a sanção da Política Nacional de Resíduos Sólidos, no último dia 2 de agosto, a reciclagem espera a regulamentação da lei para ganhar novo status no Brasil. Foram 20 anos de discussões no Congresso, para que se chegasse ao formato consensual que distingue, por exemplo, o que é resíduo (lixo aproveitável, reciclável) do que é rejeito (que não pode ser reaproveitado). A expectativa é de que a regulamentação ocorra ainda este ano.

O principal avanço da Lei 12.305/2010 é a atribuição de responsabilidades que, antes, eram de todos de maneira difusa, e portanto, de ninguém. As empresas produtoras, distribuidoras e vendedoras de material descartável – como eletrônicos, baterias, lâmpadas fluorescentes e pneus – terão que recolher seus produtos, dentro da atividade conhecida como logística reversa. É o começo do fim do desperdício. As embalagens devem permitir o reúso ou a reciclagem. Os municípios irão precisar se entender para promover a gestão integrada do lixo, e além deles, Estados e a União terão que estipular metas de reciclagem e estratégias para o tratamento e destinação dos resíduos. Segundo o governo de Pernambuco, um projeto será encaminhado em breve à Assembleia Legislativa, seguindo os rumos da legislação federal.

O fundamental é que toda a sociedade será envolvida e obrigada a adotar hábitos sustentáveis, como a coleta seletiva, inexistente ou precária em regiões como o Nordeste, e com incidência parcial em menos de 10% das cidades brasileiras. Para disseminar o espírito colaborativo necessário para que tantas mudanças aconteçam, o governo federal pretende lançar uma campanha publicitária sobre o tema nos próximos meses. O pressuposto oficial é de que, sem a participação social, a lei não pega.

O fim dos famigerados lixões a céu aberto é outra promessa contida no documento. Mas não vai ser fácil, nem barato. A Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos (Abetre) estima em custos da ordem de R$ 6 bilhões, até 2014, a implantação das medidas previstas, como a construção de aterros sanitários. O governo separou R$ 1,5 bilhão para a promoção da reciclagem no orçamento do ano que vem, segundo a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira. Dados do ministério apontam que quase dois terços das 150 mil toneladas de resíduo produzido todos os dias no Brasil são jogados em lixões, com reaproveitamento de apenas 13%. Além do desastre ambiental, isso também significa prejuízo. De acordo com cálculos da Federação das Indústrias do Estado de Pernambuco (Fiepe), cerca de 100 toneladas de plásticos e 60 toneladas de papel e papelão são enterradas por dia na Região Metropolitana do Recife.

Por outro lado, a enfática referência do governo federal à redenção dos catadores simboliza a abertura de uma trilha de oportunidades de negócios. Principalmente nos grandes centros urbanos, que são também grandes produtores de lixo. Na maior cidade do País, São Paulo, o percentual de reciclagem é ínfimo: só 1%, ou 3 mil das 300 mil toneladas geradas mensalmente pela população de 11 milhões de habitantes. A regulamentação da Lei 12.305 é aguardada tanto pelos consumidores, que se indagam pelo destino dos produtos, quanto pela indústria, por causa da baixa rentabilidade do processo. O que caberá a cada segmento e como funcionará efetivamente a cadeia de reciclagem, são questões ainda em aberto. É provável que algum tipo de incentivo fiscal seja oferecido às empresas recicladoras. Estados e municípios têm prazo de dois anos para elaborar sistemas de reciclagem, e somente então estarão aptos a captar recursos para construir os aterros que receberão os rejeitos indisponíveis depois da triagem.

Neste cenário de transição para um País onde a sustentabilidade abandone de vez o patamar de modismo, um papel que caberá à opinião pública é exatamente o de cobrança, no sentido de pressionar os governantes a elaborar e implantar os planos estaduais e municipais de acordo com a nova lei. Somente assim a gestão sustentável dos resíduos deixará de ser uma bela ideia sintetizada em documento legal, e passará a fazer parte de nosso cotidiano.

Imagem: reciclarebacana.blogspot.com
 

6.9.10

Consumo e cidadania




Editorial do Jornal do Commercio

O Código de Defesa do Consumidor brasileiro está completando vinte anos no próximo dia 11. Conquista relativamente recente, portanto, ligada à redemocratização que tem como marco a Constituição de 1988, o Código tem pautado nas últimas duas décadas a relação nem sempre amistosa entre produtores e fornecedores de bens e serviços e o imenso – e crescente – mercado de consumidores no País. Mas ainda há um longo caminho a percorrer, para que seus preceitos sejam respeitados, e os direitos do cidadão que consome sejam considerados com a atenção que merecem.

A multidão de novos consumidores das classes C e D, que nos últimos anos ingressou no universo das compras, não conhece os direitos que possui quando adquire um produto ou contrata algum serviço. É o que detectou pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em seis Estados, entre os quais Pernambuco, e o Distrito Federal: 60% das pessoas com renda inferior a dois salários mínimos não sabem ao certo quais as funções dos órgãos de defesa do consumidor, os Procons.

Apesar disso, o Procon-PE já recebeu este ano mais de 23 mil reclamações, sobre os mais diversos segmentos. Em julho, as principais disseram respeito a serviços de energia, água, telefonia, e a lojas de produtos eletrônicos. O baixo nível de informação da população e a desconfiança sobre a burocracia fazem supor que o número de atendimentos poderia ser muito maior – o que por sua vez iria demandar uma capacidade de atendimento mais ágil, para dar conta da demanda.

Desde julho, os estabelecimentos são obrigados a manter às vistas dos clientes pelo menos um exemplar do Código, para consulta em caso de qualquer dúvida ou esclarecimento. A nova lei, sancionada pelo presidente da República após nove anos de tramitação no Congresso, configura um passo importante sob dois aspectos. Em primeiro lugar, porque mostra à população, especialmente àqueles de menor poder aquisitivo, que existe um documento legal para a proteção de quem efetua a compra. E depois, porque valoriza o próprio instrumento, contribuindo para que os próprios fornecedores estejam atentos ao seu conteúdo.

Outra medida que busca ampliar o alcance do Código foi tomada no mês passado pelo Ministério da Justiça. O crescimento do comércio eletrônico no País tem gerado diversas dúvidas, tanto de consumidores quanto dos provedores dos serviços. Agora, uma cartilha está à disposição dos interessados, no site do ministério, com regras que visam disciplinar todo o processo de relacionamento, além de enfatizar os deveres de quem vende e os direitos de quem compra através da internet, proporcionando segurança jurídica a ambas as partes.

Fora do ambiente virtual, a troca de mercadorias danificadas, o ressarcimento por um serviço prestado indevidamente, a possibilidade de arrependimento pela aquisição fora de um estabelecimento e mesmo a aplicação de multas ao fornecedor do bem ou serviço – de uma pequena loja até uma companhia aérea – estão previstas no Código de Defesa do Consumidor. O marco de 20 anos de existência deve ser celebrado como essencial para o aprimoramento democrático, uma vez que as democracias contemporâneas têm nas relações de mercado um de seus pilares de sustentação.

A cidadania e o consumo estão entrelaçados, não há mais como separar uma coisa da outra: o cidadão de hoje é um consumidor contumaz, e sem consumo regulado por normas e laços mútuos de confiança, dificilmente se pode nomear a cidadania. Como ressalta a historiadora Lizabeth Cohen, da Universidade de Harvard, que cunhou a expressão República dos Consumidores, a evolução dos direitos do cidadão que consome é menos uma trajetória do mercado, e mais o fortalecimento de movimentos cívicos. Ou seja, a cidadania do consumo expressa uma tendência de transformação democrática do próprio capitalismo.

A democracia brasileira é, portanto, a maior beneficiária da aplicação efetiva do Código de Defesa do Consumidor, bem como de seu aperfeiçoamento. Assim, temos chance de observar o desenvolvimento econômico acontecer ao lado do desenvolvimento de nossas instituições.

Ilustração: www.actibva.com
 

4.9.10

Habitação: metas descumpridas




Editorial do Jornal do Commercio

O programa de construção de moradias populares lançado pelo governo federal no ano passado – o Minha Casa, Minha Vida – teve, em Pernambuco, até agora, cumprimento pífio da promessa implícita em seu nome. Apenas 1,3% dos 220 mil candidatos inscritos no financiamento, menos de 3 mil pessoas, tiveram o sonho da casa própria realizado depois de um ano e quatro meses. Segundo o Ministério das Cidades, das 44 mil moradias previstas, apenas 30% foram aprovadas, embora muitas nem tenham saído do papel. Foi o que mostrou a série de reportagens assinada por Viviane Barros Lima e Luciana Ourique, publicada durante três dias pelo JC. No ranking de execução do programa, estamos entre os cinco piores Estados da Federação, na companhia do Amapá, de Tocantins, do Ceará e do Distrito Federal. O sonho da casa própria continua distante dos pernambucanos.

A realidade desanimadora do programa no Estado reflete, por sua vez, uma situação que se repete no País: a manutenção do gigantesco déficit de moradias, sobretudo para as famílias de baixa renda, de até três salários mínimos, que deveriam ser o alvo primordial do Minha Casa, Minha Vida. Segundo levantamento do jornal O Estado de São Paulo, a partir de dados da Caixa, das 183 mil unidades concluídas pelo programa, apenas 3,5 mil foram destinadas a essa faixa de renda, que concentra nada menos do que 90% do déficit de 6,2 milhões de habitações em todo o território nacional, de acordo com estimativa da Fundação João Pinheiro.

Em Pernambuco, das 2.886 unidades entregues, a irrisória quantidade de 13 – isso mesmo, treze – foi para famílias de baixa renda, em Vitória de Santo Antão, que tiveram os barracos destruídos pelas enxurradas no último mês de junho. Foram, paradoxalmente, sortudos ajudados pelo infortúnio, já que há mais de 3 mil cadastrados no município na lista de espera. A maior parte dos contratos no País foi assinada com clientes que ganham de três a dez salários mínimos, que é a faixa de preferência das construtoras e representa um universo de unidades disponíveis em maior número. Para o público de baixa renda, faltam terrenos com infraestrutura – como na Região Metropolitana do Recife – além de empresas especializadas e interessadas em atender a demanda. Se sem saneamento básico, não há projeto, como já enfatizamos neste espaço, o primeiro passo seria a implantação de um amplo programa de saneamento no País. Como falar de programa habitacional se somente um terço dos recifenses, 15% dos olindenses e 6% dos jaboatanenses possuem casas em áreas saneadas? Sem tirar o povo da lama, do esgoto a céu aberto como paisagem na porta de casebres, o Minha Casa, Minha Vida continuará servindo de mera retórica oficial.

As construtoras reclamam da demora da Caixa em analisar os projetos – que pode chegar a quatro meses, quando o ideal seria um mês. A burocracia para a aprovação dos projetos, a elevação dos preços dos terrenos bem localizados e a virtual inexistência de investimento por parte das prefeituras completam o mecanismo emperrado de uma proposta que tinha tudo para dar certo, caso tivesse sido tratada com mais seriedade e menos marketing. Muitos gestores públicos abraçaram a ideia com a prioridade alardeada pela propaganda, mas a boa vontade tem esbarrado em dificuldades práticas e nós que não se desfazem. É inadmissível, por exemplo, que a pavimentação de ruas onde serão construídos os empreendimentos seja um empecilho. De um problema crônico que aflige a população – a falta de lugar para morar com dignidade – saiu a bela ideia para um nome de programa governamental. Pelas metas descumpridas até agora, infelizmente, não é mais do que isto.

O caso do Minha Casa, Minha Vida é ilustrativo do descompromisso político com as metas lançadas em campanhas publicitárias, e divulgadas para a mídia como se já fossem favas contadas. Basta ver que, de 1 milhão de unidades que deveriam ter sido entregues em um ano, menos de 20% foi cumprido depois de quase um ano e meio. O que não pode ser considerado, sob qualquer ponto de vista, atraso pequeno.

 

2.9.10

Um difícil diálogo





Editorial do Jornal do Commercio

A expectativa do mundo se volta nesta quinta-feira para Washington, onde serão retomadas, após quase dois anos, as negociações entre israelenses e palestinos por um acordo de paz no Oriente Médio. O encontro entre o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e o presidente da Autoridade Palestina (AP), Mahmoud Abbas, terá a mediação do presidente norte-americano Barack Obama. A esperança de Netanyahu é de que um acordo histórico entre os dois povos venha a ser celebrado em breve, após a nova conversa direta entre os seus líderes. Ele não quer repetir o fiasco de 2007, quando Abbas e o então premiê israelense, Ehud Olmert, saíram de outra reunião nos EUA, naquela ocasião em Anápolis, com a disposição de acertar as bases do Estado Palestino – fato que não engrenou.

Antes mesmo do início das conversações, declarações do chefe do Hamas, Ismail Haniyeh, publicadas pelo jornal israelense Ha"aretz, deram o tom das dificuldades para o diálogo, que se arrastam desde 1948, com a criação do Estado de Israel. Para Haniyeh, a negociação na Casa Branca é apenas mais um lance da estratégia israelense, ao lado da ocupação do território, "dos ataques, das mortes, das torturas e do isolamento" impostos aos palestinos. O grupo islâmico radical Hamas governa a Faixa de Gaza, que sofreu violenta ofensiva militar israelense há um ano e meio. A Autoridade Palestina, que será representada em Washington, governa a Cisjordânia.

Na pauta das discussões, desta vez com prazo de um ano para serem resolvidas, questões antigas, como o status de Jerusalém, o destino dos refugiados palestinos e os traçados de fronteira. Compreende-se a determinação de prazo. Ainda que o fracasso das negociações não seja novidade em se tratando daquela conturbada região do planeta, quanto maior a demora da solução, maiores ficam as tensões de parte a parte – com repercussões por todo o Oriente Médio, que se contamina de desconfiança e ressentimento. É lamentável que uma área histórica tão importante, berço de grandes religiões, tenha se tornado uma zona de convergência do ódio.

Para Saeb Erekat, negociador-chefe da AP, “se o diálogo vier abaixo, todos nós iremos juntos rumo ao caos, à anarquia e ao extremismo”. É claro que a declaração de Erekat também deve ser lida no contexto de um jogo de ameaças que busca pôr a opinião pública, principalmente europeia, para pressionar Israel. Mas enquanto a diplomacia israelense for traduzida por truculência, como no ataque a uma frota humanitária das Nações Unidas na Faixa de Gaza, em maio – que aumentou as arestas de Israel com a Turquia – os palestinos continuarão arregimentando apoio para a sua causa. O avanço da beligerância que conta com alta tecnologia e arsenal nuclear não pode continuar se nutrindo do discurso da prevenção contra um celeiro de terroristas e homens-bomba, simplesmente porque, assim, deixa a paz num beco sem saída.

O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu antecipou que a possibilidade de aceitação de um futuro Estado palestino passa pela condição de que seja um “Estado desmilitarizado”, para a segurança de Israel. A Liga Árabe, por sua vez, externou a preocupação de que o processo de paz retorne a um círculo vicioso. “Israel deve escolher entre o projeto colonizador e a paz, entre a continuação da ocupação e a continuação do conflito, porque não é possível combinar assentamentos e paz”, disse também Erekat.

O encontro em Washington precisa dar uma resposta concreta para palestinos e israelenses, e não apenas para a plateia mundial. Neste sentido, um novo fracasso pode representar o recrudescimento dos radicais que condenam a moderação da AP, que estaria, na visão deles, submissa aos interesses ocidentais. Um dos principais pontos da negociação é exatamente a suspensão definitiva da construção, pelos israelenses, de residências nos terrenos ocupados pelos palestinos. Somente na Cisjordânia, 42% do território apresenta assentamentos judaicos, de acordo com levantamento divulgado em julho. Sem que Israel ao menos sinalize nesta direção, é improvável que os dois lados em guerra resolvam trabalhar juntos pela harmonia.

Foto: ponteeuropa.blogspot.com
 

31.8.10

Venenos da terra à mesa




Editorial do Jornal do Commercio

Produtos químicos altamente danosos à saúde estão sendo aplicados em grandes quantidades até nas lavouras de agricultura familiar em Pernambuco. Sem saber, muitas pessoas consomem alimentos contaminados que podem causar problemas graves no sistema nervoso e na regulação hormonal, além de dores de cabeça, depressão, câncer e má-formação embrionária. Além disso, os solos encharcados de veneno logo estão imprestáveis para o cultivo.

Produtos como endosulfan, acefato e metamidofós, banidos em mais de trinta países, são livremente comercializados no Brasil. Cerca de dez produtos proscritos na União Europeia (UE), nos Estados Unidos, na China e até no Paraguai ganham saída em nossas lavouras. São gastos todo ano no País cerca de US$ 6 bilhões com agrotóxicos, o que nos faz o maior consumidor mundial de tais substâncias. Para se ter uma ideia da dimensão desse mercado, a mais nova fábrica de defensores agrícolas, que está sendo inaugurada em Uberaba (MG), irá produzir 100 milhões de litros de defensivos agrícolas anualmente. O tamanho do mercado nacional acarreta pressões políticas no Congresso, contra as proibições e pela liberação de produtos sem vez no mercado internacional. O lóbi dos ruralistas não para de atuar em defesa dos agrotóxicos, que seriam responsáveis pela força do agronegócio brasileiro.

De fato, os defensivos agrícolas são como remédios usados para combater pragas e doenças nas plantações, conferindo segurança ao agronegócio e garantindo o abastecimento alimentar das cidades. Mas esses remédios precisam ter estrito controle do poder público, justamente porque são aplicados em larga escala, e seus efeitos colaterais podem atingir milhares de pessoas. Como demonstrou a reportagem do JC no último dia 22, a venda e o uso de agrotóxicos são práticas comuns no interior do Estado. Em Vitória de Santo Antão, pedaços de terra de até dois hectares, a poucos metros da BR-232, têm plantações de alface, coentro e cebolinha cheias de veneno. Os pequenos agricultores de Natuba têm noção do risco que correm, mas desconsideram o risco que passam para os outros. Embalagens com resíduos das substâncias são descartadas em locais próximos da lavagem de alfaces colhidas que são encaminhadas para a venda. O descumprimento das regras é a regra na agricultura de pequeno porte no Estado. A Agência Pernambucana de Vigilância Sanitária (Apevisa), encontrou, em 2009, a presença dos três agrotóxicos citados em diversos produtos, como pimentão, repolho, alface e tomate, oriundos de Vitória de Santo Antão, Gravatá, Agrestina, Sairé, São Joaquim do Monte, Petrolândia, Salgueiro, Iguaraci e Camocim de São Félix. Mas de um terço dos hortifrútis examinados pela Vigilância Sanitária estavam contaminados em concentrações de risco para a saúde dos consumidores.

O problema é sério e atinge outros Estados do Nordeste. No Ceará, como relatou edição recente da revista Carta Capital, o aquífero Jandaíra está ameaçado, e a água de poços artesianos e das torneiras apresenta índices de contaminação, de acordo com pesquisa feita pela Universidade Federal do Ceará na Chapada do Apodi. Segundo a médica e professora Raquel Rigotto, coordenadora do estudo, dos 7 milhões de casos de intoxicação e das 70 mil mortes que ocorrem no mundo todo ano em decorrência do uso de defensores agrícolas, a maior parte se dá nos países em desenvolvimento, onde a legislação e a fiscalização são mais frouxas.

A Agência de Defesa e Fiscalização Agropecuária (Adagro) garante que os produtos comercializados nos supermercados e nas feiras orgânicas são de procedência segura. A desinformação dos pequenos agricultores, aliada à deficiência de assistência técnica e à dificuldade de fiscalização, no entanto, compõem um quadro preocupante. Quadro que se torna mais sombrio diante do prazo estipulado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que decidiu tirar o endosulfan do mercado brasileiro – somente em julho de 2013. É de se questionar por que uma substância banida em 45 nações ainda tenha três anos de sobrevida entre nós.


30.8.10

Propaganda invasiva



Editorial do Jornal do Commercio

A poluição visual nas ruas alcançou um nível insuportável nestas eleições. A campanha que está nos principais corredores da cidade ocupa canteiros, calçadas, fachadas, com placas, cartazes, bandeiras e faixas formando uma selva de informações que satura o ambiente urbano e testa a paciência do cidadão. A decisão de proibir a veiculação de mensagens em outdoors, em 2006, terminou se mostrando inócua diante da avalanche de material que invadiu as nossas vias públicas. Se era para coibir o abuso do poder econômico, o desequilíbrio agora é evidente, pois pelo menos os outdoors possuíam alguma regulamentação, com divisão de quantidade e designação da localização para uso dos partidos e seus candidatos.

Na selva sem lei das placas em cavaletes, as faces benevolentes de políticos sempre sorridentes disputam cada centímetro da atenção fragmentada do eleitor que se desloca para o trabalho ou para casa, todos os dias – e até durante a noite, com a novidade de placas luminosas, descobertas para a propaganda noturna em virtude da precária iluminação do Recife.

De acordo com a legislação em vigor, é permitida a publicidade em bens particulares, por faixas, placas, cartazes e pinturas, até o tamanho de quatro metros quadrados. Falta fiscalizar o espaço entre as peças, que se enfileiram provocando a desagradável sensação de espelho sem fim. A Procuradoria Regional Eleitoral de Pernambuco (PRE-PE) diz que é vedada “a prática de alguns candidatos que justapõem várias mensagens publicitárias de tamanho permitido, mas que juntas em um mesmo espaço visual caracterizam propaganda ilegal por produzirem o mesmo impacto visual de outdoors”. Não é o que parece, pela sujeira publicitária que emporcalha a cidade. As plaquinhas em cavaletes descem às dezenas dos caminhões, e são dispostas quase grudadas umas às outras, com distâncias de menos de um metro de intervalo. O fato de serem removíveis não impede, muitas vezes, a aventura dos pedestres, que precisam andar em ziguezague para se livrar do assédio publicitário.

Apesar de ser igualmente proibido colocar material em postes, placas, sinais de trânsito, viadutos, paradas de ônibus, em árvores e jardins públicos, basta um passeio rápido para identificar as contravenções – inclusive por parte de candidatos que estavam há pouco tempo no poder, ou pretendem renovar seus mandatos, e deveriam portanto ser os primeiros a dar bons exemplos. A ameaça de inelegibilidade não incomode os transgressores, tão pouco as multas de alguns milhares de reais, para quem pode gastar milhões para se eleger. Reportagem do JC publicada no domingo, 22, mostrou alguns flagrantes neste sentido. Em Ipojuca, o mercado público e o meio da rua eram usados como espaços de campanha. Enquanto isso, na capital, em uma única operação realizada na Avenida Recife, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) teve trabalho para recolher 186 peças depositadas irregularmente no canteiro central da via, atrapalhando os pedestres. A propósito, uma visita ao depósito do TRE deixa claro que os maiores contraventores são justamente aqueles com maior capacidade financeira – o que torna patente a possibilidade de abuso do poder econômico.

A impunidade, novamente, corrobora a prática lastimável conduzida por todos os partidos. A juíza da propaganda eleitoral, Ana Cláudia Brandão, reconhece a dificuldade que vem da legislação branda. O material apreendido fica retido por dez dias e, em caso de reincidência, pode ser apreendido em definitivo. O fato é que o poder econômico não dá a mínima para isso – é só produzir mais peças e continuar infestando as ruas. “O problema é esse: não tem penalidade, e as irregularidades se repetem”, lamentou a juíza.

O desanimador é que o volume de apreensões recorde esbarra na incapacidade do TRE em dar conta das denúncias, e providenciar a retirada de tudo que contraria a lei. Como estamos entrando no último mês de campanha, é improvável que os candidatos e suas equipes colaborem para deixar não apenas o Recife, mas toda a Região Metropolitana, menos suja e feia. Também para essa limpeza, vamos ter que esperar a hora do voto.

Foto: JC Imagem

24.8.10

Minha água, meu esgoto




Editorial do Jornal do Commercio

Está faltando terreno infraestruturado na Região Metropolitana do Recife, para fazer deslanchar no Estado o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida. A constatação de empresários das grandes construtoras pernambucanas e de diretores da Caixa Econômica, que financia o programa, reunidos no Sindicato da Indústria da Construção (Sinduscon), antecipou a exposição de uma realidade reforçada esta semana pela divulgação de pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): 56% das residências, ou 32 milhões de unidades habitacionais, não têm ligação de esgoto no País. A Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, com dados de 2008, aponta Pernambuco com média abaixo da nacional, possuindo cerca de 27% dos municípios com tratamento de esgoto, contra 28,5% do Brasil. No Ceará, exceção no Nordeste, o índice é melhor, e chega a quase 49%. O levantamento indica ainda a distribuição precária de água no Nordeste, onde 40% das cidades precisam recorrer ao racionamento, e a vexatória situação de metade dos municípios do País, que atiram seus resíduos sólidos em lixões a céu aberto.

A falta de infraestrutura explica, em parte, o frágil desempenho do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no setor de habitação. Levantamento do site Contas Abertas divulgado na última sexta-feira mostra que apenas 5% das obras previstas desde 2007 foram concluídas. Em Pernambuco, o desempenho é ainda pior – minguados 2% do cronograma previsto foram cumpridos. A exigência da Caixa para financiar os projetos habitacionais esbarra na deficiência estrutural que inviabiliza a equação econômica, adiando por tempo indeterminado o sonho das famílias aprovadas em programas como o Minha Casa, Minha Vida.

Os números provam que falta planejamento e bom senso na gestão habitacional brasileira. Pelo menos desde a época do Banco Nacional de Habitação (BNH), são lançados programas de forma incompleta, focados em áreas desprovidas de condições básicas de distribuição de água, energia, rede de esgoto, acessos viários e linhas de transporte coletivo. O resultado desses programas foi a favelização, seguida do abandono e até das ruínas dos conjuntos erguidos. Tais coisas – minimizadas pelo gestor público nos momentos festivos das metas programáticas – constituem a essência da vida urbana: o que vai fazer o cidadão numa casa sem água, sem esgoto e onde não passa nem um ônibus? A urbanização é um pressuposto da habitação, e não um complemento.

No caso da Região Metropolitana do Recife, a ausência de espaços apropriados para o investimento habitacional termina onerando a construção. As estações compactas de tratamento de esgoto e a movimentação de terra necessária em topografias acidentadas, por exemplo, são custos que não estão incluídos no programa. A nossa metrópole requer a urgente conformação de áreas planejadas para habitação popular – de preferência, nas proximidades do Complexo Industrial de Suape, da futura Cidade da Copa, e para as bandas de Paulista e Igarassu, possibilitando assim novas concentrações demográficas ao norte, a oeste e ao sul da Região Metropolitana.

A previsão sombria da Organização das Nações Unidas (ONU), feita no 5º Fórum Mundial da Água, em 2009, foi de que dois terços da população mundial não contarão com saneamento em 2030. Para forçar os governos a tratarem seriamente do problema, a ONU aprovou resolução, em assembléia realizada no mês passado, que considera o acesso à água e ao esgotamento sanitário como um direito humano essencial. O governo brasileiro deveria aproveitar a deixa e lançar outro programa, de prioridade mais alta e como pré-requisito para destravar o Minha Casa, Minha Vida – seria o Minha água, Meu esgoto, com vistas à democratização de um bem cada vez mais escasso no planeta. Sem a conscientização política do papel da infraestrutura básica para a diminuição do déficit habitacional, zonas urbanas saturadas como a Região Metropolitana do Recife continuarão a ser problemas sem solução para a expansão da moradia – uma questão crucial para a qualidade do desenvolvimento que desejamos para Pernambuco.

Foto: capibaribe.info

31.7.10

Ressuscitaram o Enterro




O quadro roubado do MAC, em Olinda, foi recuperado.
Tava no Rio, à espera de um comprador. Dizem que vale mais de R$ 1 milhão.
É representante da "fase azul" de Candido Portinari (notem o caixão, pintado da cor do céu...).
Pra quem nem sabia que a obra tava largada no MAC, vem a expectativa de vê-la, numa espécie de ressurreição da pequena tela, agora de renovada fama.

27.6.10

Viajo porque preciso voltar




Entre rochosos acúmulos e jardins perdidos, o viajante encontra o sentido da jornada na volta.

A pedra e a flor são metáforas do ser abandonado a si próprio – feito a pedra que rebenta à superfície, ou a flor por um segundo solidificada.

A lentidão geológica do desabrochar da pedra não é captada pelo olho humano. Contentamo-nos com vestígios morfológicos de milenares mudanças. A sedimentação em camadas guarda o que resta de um longo processo, imperceptível de tão longo. A duração, porém, é o que transforma e liberta a pedra.

Em contraste, a fugaz beleza das flores faz com que elas pareçam eternas de tão belas. A flor é perenizada quando se abre. Como se nenhuma outra imagem valesse o que vale a flor em plena forma. A flor pronta. Apesar do conhecimento de que até a flor passa, foge, de que aquele estado de perfeição não dura, a flor ideal permanece, quase mítica, enquanto outra flor não vem, renovar a mesma eternidade.

Entre rochosos acúmulos e jardins perdidos, o road movie estanca o movimento. Acelera a espera do devir. E avisa que é preciso voltar para completar a viagem. Qualquer viagem. A eternidade na estrada não passa enquanto a vida vai e não volta.

O movimento contínuo, inercial, suscita a vontade de esquecer o que não pede pra se lembrar. A canseira da paisagem mutante à beira da estrada, à beira da janela, entorpece o olhar que não sai do lugar.

A viagem não possui uma perna só. Nem responde ao sonho da aventura sem destino. Toda viagem tem ida e volta – aquela que somente vai é partida.

Seja para os que vão para escapar, seja para os que vão para buscar – como distinguiu Érico Veríssimo – há um retorno, ainda que impreciso, a algum lugar bem conhecido, na conclusão do viajar.

Como se o fim, antes do começo, despertasse o viajante, provocasse o primeiro passo.



Viajo porque preciso, volto porque te amo (Brasil, 2009)
Direção: Marcelo Gomes e Karim Aïnouz
Com Irandhir Santos.

Saramago: entre ter sido e continuar a ser



"Será preciso descobrir um qualquer ponto de equilíbrio
que exista entre ter sido e continuar a ser,
sem dúvida é reconfortante que a nossa consciência
nos diga, Sei quem és,
mas ela própria poderá começar a duvidar de nós
e do que diz se perceber, ao redor,
que as pessoas andam a passar umas às outras
a incômoda pergunta, E este, quem é."

José Saramago, O homem duplicado


24.5.10

Mary, Max e a rede dos possíveis




Depois de assistir a Mary e Max, filme de animação que passou no Cinema da Fundação, é quase inevitável pensar sobre o papel da comunicação no cotidiano do habitante do século 21. O filme retrata uma amizade por correspondência – por carta mesmo, os chamados “pen pals”, precursores dos amigos e namoros virtuais – que tem início na década de 1970 entre Mary, uma menina australiana de 9 anos e Max, um eremita urbano de 44, que mora em Nova Iorque.

Para a geração do Google e do MSN, pode parecer que o desenho conta uma lenda. Em pleno raiar das redes sociais e da conexão em tempo real, o isolamento é cada vez menos uma escolha – e cada vez mais é pintado como sintoma, patologia, ou no mínimo, desvio de comportamento. A alienação, tenha a causa que tiver, não é a tarefa relativamente fácil que costumava ser, na trajetória da humanidade antes da era da comunicação global.

O estranho é que a vontade de se isolar não sumiu, e talvez tenha permanecido como uma espécie de reação a tantos fios que nos prendem hoje a tantos lugares, objetos, propósitos, deveres, compromissos, eventos, circunstâncias, necessidades e desejos. Lembrando Matrix: um cabo-mãe nos conectando à realidade, inventando o que inexiste sem a ligação, a realidade ilusória alimentada por conexões falsas.

As novas conexões não são falsas. O que acontece é que nos entupimos delas, e não paramos de construir mais. Quanto maior a quantidade de tentáculos comunicacionais grudados em nós, maior a sensação de pertencimento ao real atual – atualizado pelas conexões. Se você não estiver on line, é como se não estivesse vivo: o apelo da vida virtualizada é a própria virtualização da vida, mesmo que o canto de sereia da internet ofereça a interação da conexão à distância como uma interação concreta. Distância é proximidade, diria George Orwell.

A união dos contrários, tornados indissociáveis, é típica de ambientes totalitários. Apesar disso, não conseguimos enxergar o maravilhoso mundo das redes senão como democrático. Qual totalitarismo repousa por baixo da liberdade virtual? Como a comunicação difusa, espalhada pelo planeta, que nos apresenta e nos faz próximos, e nos dá mesmo uma sensação inebriante de poder, seria totalitária?

Talvez neste único aspecto: o caráter excludente que descarta o “perfil” desplugado. Para os amantes da rede, quem está fora do ar está fora de órbita. Quem não vive a vida virtual está virtualmente morto. Saiu do Orkut? Cometeu “orkutcídio”. Que tal um protesto em massa contra a frouxa privacidade do facebook? Logo o protesto ganha o rótulo de “suicídio coletivo”. (A propósito: a privacidade, neste contexto, tem dois sentidos complementares. O primeiro é “sair do ar”, ou seja, ficar fora da rede. O segundo, o direito de compartilhar imagens e dados apenas com uma restrita fatia da rede, selecionada por você, e não com a rede inteira.) Você deixou de “postar” no blog? Deve ter adoecido, ou morrido, temem os amigos acostumados à conversa frequente na praça virtual. O ego foi duplicado, ou clonado, pelo avatar de cada indivíduo em sua versão conectada. Há quem goste de exibir múltiplas personalidades, como se já não desse trabalho cuidar de um ego só. É também uma forma de se acoplar sem receio ao carrossel conectivo, fugir do olhar coletivo que exige a presença de todos, todo o tempo.

Mas na balança dos vícios e virtudes da imensa teia convergente – onde a conexão não será mais algo “em que se entra”, senão algo “em que se está” – melhor crer no peso dos benefícios. O universo virtual aumenta o espectro das potências, que Aristóteles definiu como aquilo que se opõe ao ser em ato, de existência consumada. Se uma folha de papel manuscrita ou datilografada tinha que percorrer milhares de quilômetros, dentro do período extenso definido pela capacidade dos serviços postais, em épocas passadas, a nossa época conta com a incrível alternativa de uma rede de possibilidades instantâneas, ao alcance dos dedos e dos olhos, da voz e dos ouvidos, do pensamento e da ação.

 
Mary e Max (Austrália, 2009)

Animação
Direção: Adam Elliot
Com as vozes de Philip Seymour Hoffman, Bethany Whitmore e Toni Collette.

Links:
Site do filme
Trailer legendado
Crítica no Globo

6.5.10

Nathalia Dill de costas para o espelho




"Os paparazzi me incomodam. Não acho que uma atriz na praia ou tomando um café em uma padaria seja interessante".


"Às vezes, as pessoas criam um endeusamento que eu não gosto. Acho que isso só enfraquece".
 

As declarações da atriz Nathalia Dill ao UOL, publicadas hoje, são típicas de estrelas em ascensão que percebem o tamanho da encrenca em que se meteram ao escolher uma carreira que progride servindo-se de alimento para o olhar alheio.
 
Nathalia tem todo o direito de reclamar dos insistentes fotógrafos de celebridades que não se cansam de caçar personalidades da TV. Mas o fato é que uma atriz na praia ou na padaria interessa, sim, ao público - se não interessasse, o paparazzi não vendia a foto.
 
A cena flagrada da vida privada de uma figura pública provoca nas pessoas a ilusão de intimidade que as aproxima da figura retratada. Mas o culto às celebridades é instantâneo, na maioria dos casos não resiste ao tempo. O endeusamento é temporário, portanto - e mesmo que Nathalia não goste, a admiração do público é cativada pela exposição pública de personagens vislumbrados como são, no espelho da "vida real".
 
(Mas que é deusa, é.)

16.2.10

Holmes é Bond, House é Holmes



O artigo de Marcos Nobre na Folha de S. Paulo de hoje faz uma comparação interessante entre o novo filme de Sherlock Holmes - que está mesmo mais para o 007, James Bond - e o "detetive do diagnóstico", personagem da TV atual, Dr. House.

Talvez quem esteja mais acostumado ao Sherlock mais "cerebral" do que "ativo" estranhe a escolha do diretor, mas é questionável se o componente dinâmico dos filmes de ação - e do destaque para o uso do corpo tanto quanto da mente do famoso detetive - de fato prejudique o resultado, arranhando a imagem que temos de Holmes.

Acho que não. A abordagem é diferente, e acrescenta mais do que subtrai à figura tradicional - e caricatural - do grande detetive da ficção.

Abaixo, a íntegra do artigo de Marcos Nobre:

Holmes e House


QUEM NÃO ESTÁ ligando para o Carnaval talvez tenha ido ver o filme "Sherlock Holmes". Se foi em busca de um detetive genial, a decepção foi grande.


É um filme de ação. O diretor Guy Ritchie usou esse formato para combater manias mágicas e panteístas que vieram com "Avatar" e com séries como "Harry Potter" e "Crepúsculo". Quer mostrar que por trás da mística suave e sedutora se oculta dominação bruta. Tirou de Holmes a aura intelectual e lhe deu músculos e força. A lição é que magia não se combate com delicadeza.


O problema é que Ritchie acabou substituindo o misticismo por um endeusamento da ciência e da tecnologia, sem nenhuma crítica aos efeitos mistificadores que também a ciência pode ter. E submeteu o gênio à lógica da pancadaria.


O tema fundamental do Holmes da literatura é o de entender o que é e como funciona o gênio. Como o gênio é anticonvencional, acompanhar seus raciocínios acaba tendo o efeito de desnaturalizar ações cotidianas que fazemos maquinalmente. Ao perseguir junto com Holmes as pistas dos crimes, tornam-se conscientes convenções sociais que seguimos sem pensar.


No contexto repressivo da Inglaterra da rainha Vitória, naquele final do século 19 em que Conan Doyle inventou o personagem detetive, não foi pouca coisa.


Para quem procura esse Sherlock Holmes, o melhor é assistir a um seriado de TV. "House" é um médico que investiga casos considerados perdidos ou indecifráveis. Para descobrir o assassino invisível de seus pacientes, House engana, manipula, fere, destrói. Parte do princípio de que todo mundo mente, pacientes em especial. Ignora e desrespeita o quanto pode as leis e o código de ética médica. Sua única e profunda satisfação é provar que está certo.


House acredita que só se conhece verdadeiramente uma pessoa em situações extremas. Como as dos seus pacientes ou as dos médicos que submete a seus jogos de poder. Desse lugar privilegiado de observação, aprende como uma criança como supostamente funciona o estranho mundo que se diz adulto. Além de todas essas semelhanças, House também é viciado em um opiáceo sintético. Holmes era usuário regular de morfina e de cocaína.


Claro, não se trata de crimes, mas de doenças. House é um Sherlock Holmes em ambiente de laboratório, devidamente medicalizado. Ao contrário do Holmes de Ritchie, House manca, usa bengala.


Mas a verdade é que faz bem pouco sentido procurar qual seria o Sherlock Holmes "autêntico". Mais interessante é saber figurar de maneira inteligente a lógica implícita das convenções sociais.


nobre.a2@uol.com.br