14.12.08

Um objeto que vê

O movimento atiça a visão. A lente natural aproveita os aparelhos simuladores do movimento lento, e a edição cria o ideal e ilógico movimento estático, do ato capturado em pleno esquecimento da ação.

É preciso ver mais de perto o que a velocidade torna invisível, pelo tempo escorrido à revelia do olhar atento ao menor deslocamento. Logo a atenção é angústia. Os objetos se deslocam à velocidade da luz. Então, ou se instala uma fadiga imensa, em decorrência da maratona ansiosa, e a desatenção volta a ser a regra, ou um desejo insolente aflora: o insolente desejo de que o tempo decorra mansamente, e abra com vagar as cortinas do encantamento, para que apareça o cenário deslumbrante submerso na pressa do olhar comum, desatento, feito beleza atropelada pela cegueira de dar de ombros ao tempo.

O modelo do belo é impassível, imune ao desgaste ordinário, embora a beleza mesma não passe de sonho momentâneo, como clarão que confunde num relance. Daí a vontade de eternizar seu momento, de “congelar” a fugitiva imagem entre as frestas do tempo. Para tanto, ao contrário do que se pensa geralmente, é posta para girar, como nunca, a engrenagem que conta cada milésimo de segundo, bem devagarinho, sim, bem devagar, para que se possa captar tudo, todos os detalhes imaginados, inventados quando as coisas passam correndo diante dos olhos.

Porque as coisas passam correndo, é preciso ver mais de perto, para fazer existir o inexistente, descobrir o que se esconde, não na penumbra, não na noite, mas no meio do dia, no meio da rua: o que se esconde sem cerimônia, escancaradamente, no acelerado desfile desenrolado à frente do nariz. Na passarela das coisas reais, um desfile de alucinações!

Por isso a questão não é parar o tempo, a questão é parar o mundo alucinadamente exposto ao observador que vive o mundo que vê. O tempo é uma janela que dá pro mundo. A impressão, muitas vezes, oposta – o mundo dando vista pro tempo – destrói a ventura da contemplação, corroendo o prazer contemplativo, instalando no lugar o quadro estranho, cujo desenho, à falta de melhor traço, assume a forma de tempo perdido.

O movimento atiça a visão por um bom motivo. O olhar não exprime uma pura e divina subjetividade. Cada olhar que pára o mundo também faz parte do real mal percebido. Cada olhar é um objeto à semelhança do que espia. O olho é um objeto que vê. E ao ser assim, irá negar ou permitir ser visto como enxerga os outros. Para proibir qualquer aproximação, ou ser abordado, se deixar conhecer pela luz alheia, com a lentidão do tempo conquistado no encontro de instantes correspondidos.


Cashback (Inglaterra, 2006)
Direção:
Sean Ellis
Com Emilia Fox e Sean Biggerstaff.


7.12.08

A liberdade limitada

Conhecer o mundo a fundo é suplantar o desejo de conhecimento. Jamais o todo será dado. Adivinhar o que vem pela frente é um esforço, e ainda assim, mais tarde, o que passou não se exibe em seus detalhes. As impressões deixadas para trás podem ser inferidas de outros ângulos, de outros tempos, formando um esboço mais fiel. Mas o esboço muda de instante a instante, e mesmo nos traços que permanecem, o mundo será diferente de outro ponto de vista.
Na posição ocupada em cada ponto, o pensamento se move – passeia, corre, salta, volta, voa. O pensamento percorre os túneis da mente, os mais recônditos túneis, sem descanso. Porque o pensamento está livre, o pensamento é livre... e na medida em que somos o que pensamos, sim, podemos ser livres. Até para conceber e temer condições absolutas, como a própria liberdade.
No reino do absoluto não existe concessão, nem meio-termo. É tudo ou nada: liberdade ou opressão, liberdade ou vazio, liberdade ou sofrimento. Mas de ser absolutamente livre, advém o peso de uma carga absoluta de liberdade, uma carga insuportável de possibilidades. Assim, no círculo absoluto, a liberdade é opressão, vazio, sofrimento.
A liberdade “para ser possuída, deve ser limitada”, ponderou Edmund Burke, político e pensador britânico do século 18. Naquela época, quando as paixões de uma duquesa – e os desejos e sonhos de qualquer um – se defrontavam com o status quo moral, os limites eram maiores do que hoje, ou apenas mais evidentes? A limitação garantia a posse do território marcado como livre? Ali ou em qualquer data, nos territórios demarcados, a liberdade vige?
Para o renascentista Montaigne, ser livre é “poder tudo sobre si”, ou seja, demarcar a própria liberdade. Será que “poder tudo” não é querer demais? “O que depende de nós (a vontade, o pensamento) depende de mil fatores que não dependem. Quem se escolhe?”, recorda um filósofo francês de nossos dias, André Comte-Sponville, seguidor do mestre Montaigne. O livre-arbítrio, para Comte-Sponville, é uma ficção: “Uma vontade indeterminada, que poderia querer qualquer coisa, não seria mais uma vontade, ou não quereria nada! No máximo, podemos nos libertar um pouco das determinações, ou de algumas delas, que pesam sobre nós... Trabalho infinito: seria preciso libertar-se de si, o que não é possível.”
Talvez seja – ao menos um pouco. O pensamento se estende à ação, e o ato consumado de alguma estranha forma liberta o pensamento. Poder sobre si: poder sobre o mundo que responde ao agir, ao pensamento libertado. Menos necessidade que contingência, menos causa que efeito.
Imagem ilusória ou impulso para a ação, o fato é que o homem parece submetido à liberdade assim como – usando fórmula kafkiana – o relógio parece submetido ao tempo. Se o tempo estivesse para o relógio como a liberdade para o ser humano, os ponteiros da liberdade não passariam de um artifício, feito ponteiros de um relógio, para calcular o incalculável, para pensar o impensável. Por um mecanismo de projeção, o relógio faz o tempo existir, e a liberdade, limitada, se faz real.


A Duquesa (The Duchess, Inglaterra/Itália/França, 2008)
Direção: Saul Dibb
Com Keira Knightley e Ralph Fiennes.


21.11.08

O ego da paixão

Na busca de uma causa para grandes efeitos, achamos que vem do lado de fora o que se pronuncia em nós, agudamente, por dentro. Os olhos explodem, fixados, enquanto o pensamento se remexe no esqueleto, inquieto. A nova disposição pede reações físicas, concretas, que exprimam a forte sensação de mudança. O indivíduo se percebe num mundo dinâmico e deseja participar dele – aliás, deseja mais: quer tirar do mundo o velho molde, e fazer com as próprias mãos uma realidade menos estranha à imagem que enxerga em seu espelho.

A contínua vertigem apaixonada é o segredo dos grandes artistas, para Unamuno. Talvez seja. Mas a vertigem cobra o seu quinhão. A paixão é um estado alterado, cujas perturbações se manifestam à flor da pele em simultâneo a tempestades íntimas. O preço cobrado varia do breve deslocamento de rota a um longo período à deriva. Sim, o apaixonado é capaz de impressionantes feitos. A paixão do gênio não deve ser confundida, contudo, com o gênio da paixão. Nem todo fruto de almas agitadas é reconhecido depois como fruto genial.

Já no palco do romantismo amoroso, a intensidade do encontro desvela a carne da paixão vestida nos trapos da ilusão – de pares que se fundem ou se opõem, em harmonia ou brutalidade. A paixão extrema tende ao fim no limite do mesmo horizonte que a deixa viva. Nesta situação, o crime passional realiza a metáfora do amor perfeito na potência máxima do ego em descontrole – onde o pensamento “morro por ti” não hesita em virar “morres por mim”.

Na Folha de São Paulo, Contardo Calligaris, ao comentar o filme, diz que a paixão é tentadora porque representa a idealização da vida plena, da vida intensa. De fato. E essa idealização também é a da experiência culminante do ego na escalada de si mesmo. Os superlativos não escondem: são aventuras de egos as paixões. Se o Dr. Contardo avisa que não basta esbarrar nela, “é preciso encará-la quando ela se apresenta”, entre outros motivos, é porque encarar a paixão significa mergulhar no self, no desejo, na possibilidade de ser outro, com a esperança de transformação radical.

Nas paixões, o indivíduo vê a chance de trair-se, de abandonar-se, como se um aguardado caminho de fuga se abrisse... Em pura contradição, é claro, com a paixão convicta de que jamais se foi tão sinceramente verdadeiro. Essa esquizofrenia da paixão, quando não levada demasiadamente a sério, permite que se brinque com ela, como escreve Calligaris, “sem perder a ilusão da liberdade” de que necessitamos.

Pois em cada paixão se traduz um indivíduo – somatório único de medos, sonhos, certezas e delírios. Para cada ego, um coração, de onde partem sentimentos e atos, ou se desdobram palavras e obras no deslumbre que provoca o surgimento de si.


Vicky Cristina Barcelona (Espanha/EUA, 2008)
Direção:
Woody Allen.
Com Scarlett Johansson, Rebecca Hall, Penelope Cruz e Javier Bardem.


22.10.08

Destinos cruzados

A pergunta – E se eu não for o melhor para esta pessoa, e tudo o que conseguir dar se revelar menos do que ela mereceria ter? – é presunçosa na melhor hipótese, covarde na intermediária, e pura inversão narcísica na pior delas.

A presunção é leve diante das outras porque advém de uma preocupação sincera, ainda que desmedida. O presunçoso ou a presunçosa “estão se achando”, mas no fundo sabem que a resposta esperada não guarda relação concreta com a pergunta formulada. É a proximidade que se deseja, e nenhum espírito superior justificaria um afastamento em nome desse receio.

A covardia está no meio do caminho entre a idiotice insegura e a adoração de si mesmo. Os covardes amam sofrer antes de sofrer por amar, e isso diz muito do romantismo choroso dos poetas lamurientos, tanto quanto da síndrome shakesperiana dos amantes solitários. Lamúria e solidão que não se observam no caso da poesia que canta a paixão sorvida até a última gota, ou da separação que sucede os encontros bem aproveitados.

O narcisista incurável, por sua vez, acredita na pergunta que se faz, só que a compreende pelo avesso: ninguém será capaz de lhe dar o que exige o seu ego hipertrofiado. Diante do espelho, a perspectiva de trocas recíprocas, perdas e renúncias não se apresenta como algo aceitável. Além de egoísta, Narciso é presunçoso e covarde, e por isso esta é a pior hipótese para a raiz da questão formulada.

Também se pode alegar a intrincada teia das circunstâncias, como sempre, para pular fora ou não assumir o risco de uma relação. A desculpa das circunstâncias serve a todos, como se não fosse exatamente devido às circunstâncias que o pensamento precisasse organizar-se para agir. Atenuantes não alteram as conseqüências, assim como o julgamento póstumo não muda qualquer decisão.

A rede circunstancial que envolve a dúvida sobre “o melhor” para a outra pessoa ainda se vale do argumento do tempo, ou mais precisamente, do timing, utilizado como túnel de fuga. A força do timing é avassaladora, pois, como certas teorias, inexiste o contraponto, e o que é dito se basta. Mas se você não constitui o melhor para o outro agora, poderia ser outra hora? Poderia ter sido antes? Ou vir a ser em um mês, ou em dez anos? O argumento do tempo é circular e não conduz a razão alguma.

A sorte é que esse tipo de pergunta é inócuo quando o monólogo à frente do espelho é deixado para trás graças à presença salvadora de quem importa – aquela outra pessoa que decifra em nós a cretinice de querer dirigir o destino alheio a partir do centro confuso do nosso incerto destino.


Amigos, amigos, mulheres à parte (My best friend’s girl, EUA, 2008)
Direção: Howard Deutch
Com Kate Hudson, Jason Biggs e Dane Cook.


31.8.08

A longa espera do medo

No confronto entre sair ou ficar, fugir ou se manter preso, crescer ou estagnar, envelhecer ou não vivenciar, partir ou não voltar, viver intensamente ou apenas não morrer nunca – a demora indecisa desperta os piores temores e as melhores fantasias infantis.

A jornada tem início com o passo rumo ao desconhecido. O desconhecido, esse monstrengo moldado pelo medo, essa sombra esquisita e irreal. Curiosamente a armadilha do monstro não afasta, chama. O monstruoso também atrai. Impensáveis fantasmas ganham vida, como num sonho aberto aos olhos. O sonho não é pesadelo porque não é puro susto: contornos bizarros, aos poucos, viram contornos comuns, coerentes com o território a ser desbravado – se antes inconcebível, logo antecipado pela nova respiração.

Na terra da fantasia, o chamado à sobrevivência é igualmente potente. A intuição criativa da imaginação navega nas águas do instinto. E se depara com a inevitabilidade da luta. Luta, aqui, não tão violenta quanto lúdica. Na suspensão espacial do sonho, o risco é um salto seguro, mesmo de altitude insabida. Para o virtual corpo onírico, a luta inevitável se adéqua ao desejo profundo de seguir lutando.

O confronto de todos os medos impõe ao desejo profundo, em seguida, um outro desejo: o de ir além, superar caminhos trilhados, transpor barreiras carcomidas e alterar o horizonte interno com uma nova visão defronte. Como o desejo, mais ou menos amedrontado, dos momentos de passagem – dos movimentos de mudança.

O ideário da mudança é a mesma biblioteca simbólica do movimento, cheia de túneis e pontes, paralisia e velocidade. Para sair da longa espera do medo, a fantasia dá vez ao mundo simples que se pôs de cabeça para baixo. Depois que tudo se explica em exagero sob a vigência do medo, o percurso da espera é desfeito. Afinal, simplificar é a função do susto.

Toda criança madura sabe disso – mas nem toda criança medrosa amadurece.


A viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi, Japão, 2001)
Animação
Roteiro e Direção: Hayao Miyazaki.


26.8.08

O olhar íntimo está lá fora

Impossível é o que não acontece. Previsível é tudo que se espera. O que não acontece também se prevê, e talvez exista uma hora ou data marcada, uma espécie de tela de aviso de não-chegadas.

O amor como se canta o amor não é possível até que seja imprevisível. Até que não seja visto com antecedência, a quilômetros de distância, como uma sombra, uma ausência intuída na soma geral dos átomos no universo. Quando algo está faltando claramente, o amor aparece. E surge como aquilo que falta, presumivelmente impossível.

Não fosse a poesia recorrente, a insistente chama, a compreensão tardia, o amor teria como definição perfeita ser uma patogenia: algo de mórbida fonte. Mas colocamos a sua raiz no objeto, na luz de um olhar que não se esquece, no calor de um corpo intocado. O amor, pensamos, nasce no outro, e nos atinge por natureza, por destino, por inevitável sorte.

Uma conjunção de fatores complexos é necessária para a realização amorosa. Um alinhamento raríssimo de corpos celestes espelha o alinhamento raríssimo de corpos terrenos. É preciso que estejamos aqui, no mesmo lugar, na mesma hora, no mesmo humor, com os mesmos dilemas e vontades. O amor tinha que ser uma exclusividade literária. Só a literatura o torna inteligível. E ainda assim as palavras não se cansam de se provar batidas, pequenas e dispensáveis, pois na essência romântica pulsa o orgulho do que jamais é concretizado – ainda que venha a ser toscamente dito.

Mas uma conjunção de fatores complexos não significa obrigatoriamente sorte. A sorte muito maior é descobrir a paixão por outra fonte, porque no amor a sorte é a origem mais mórbida. Existem outras? Para o romantismo enfeitiçado e para a cultura romântica, não. Nem a amizade que evolui, nem aquela que degenera. Somente um raio de inexplicável poder que se abate sobre corações vazios, preenchendo-os subitamente com a imagem imutável e insuperável do outro.

Ela pode ser quem não esquecerei, a face eterna do arrependimento, a conquista mais cara, o preço mais alto que pagarei. Ela pode ser a melodia do tempo que sei de cor, mas não cantei. Ela pode ser o anjo dos meus sonhos, sorrindo ao meu reflexo, mesmo quando o espelho não for o que esperei. Ela pode ser para sempre uma alegria na multidão, o olhar íntimo do meu olhar. Ela pode ser o amor que não foi feito pra durar, um amor do passado até o fim. Ela pode ser o motivo que me faz viver, imaginando que estou onde ela está, e o sentido de seja lá o que for que mora em mim.


Um lugar chamado Notting Hill (Notting Hill, EUA/Inglaterra, 1999)
Direção: Roger Michell
Com Hugh Grant e Julia Roberts.


27.7.08

Verdade virtual

A violência verte – à força de imposição que faz a simulação mais concreta do que o mundo simulado. Mundo inventado pela força ou pela apatia, pela verdade ou pela mentira? A sensação imitada atinge e inunda os sentidos. O apático se sente forte, não se distingue o irreal.

No limbo da indistinção, enquanto o virtual é luminoso, limpo e respira estilo, o real é obscuro, sujo e feio. A virtualidade se move como um raio, explode quando o real dorme, imóvel. E o que se move não existe.

Na pancada do ciberpunk, a virtualidade é planejada como um sonho, e o onírico é alçado ao status de coisa real. O real de fato, improvisado como pesadelo, esconde-se num porão. Na mesma batida, o “despertar para a iluminação” prega a mentira objetiva do que há, o falso que estaria impregnado em tudo descrito como material. Pois a alma não é virtual? A salvação também tem que sê-lo.

A salvação futurista quer redimir o pecado pré-histórico... No entanto, se o futuro mente, a verdade ficou para trás, como profecia irrealizada.

No mundo da causalidade projetada, a escolha é uma ilusão definida – V ou F, violência ou escravidão, fraqueza ou liberdade, alienação ou força. Como se fôssemos o objeto de uma decisão, sujeitos de nenhuma. Você é escolhido, mas não escolhe, a não ser que decida virtualmente. As escolhas são portas, uma atrás da outra, que não podemos saber aonde vão nos levar.

Sem acidente, sem acaso, o saber é um jogo de poder violento e falacioso. No mito platônico, por exemplo, as aparências das sombras no fundo da caverna mundana só não enganam àqueles que vencem a mentira através de uma longa jornada de descobertas e autoconhecimento. Mesmo assim, Platão ainda é o melhor precursor do universo virtual, com seu plano de “formas” essenciais, inatingível para a percepção humana.

Daí a pergunta no devir matricial: a profecia é uma questão de tempo? Ou de esperança? Se a consciência fosse a ilusão da consciência, engano de si mesma, como iludir-se, em primeira instância? Os antigos e os novos pregadores de uma realidade ausente, como bons ilusionistas, não desmentem – a verdade virtual não se manifesta, prefere ficar em aberto.

A resposta, claro, está dada, na mentira que se disfarça ao se atirar para longe.


The Matrix Reloaded (EUA, 2003)
Direção: Andy e Larry Wachowski.
Com Keanu Reeves, Carrie-Anne Moss e Laurence Fishburne.


29.6.08

Notícia do eterno

Lembra do tempo em que não havia o que lembrar e a imaginação tinha que se virar para construir um mundo para os olhos que inventavam o mundo?

Saudade quando é aguda, quando é pesada, culpa. O desejo intenso de voltar atrás e refazer o caminho, consertar o que não se remenda, encontrar de novo as experiências marcantes como se fossem novidades. A lembrança é essa falsa notícia do eterno a bifurcar-se em duas direções – no labirinto do passado, beco sem saída, ou na clareira do consumado que apresenta o futuro.

Esquecer, por sua vez, é fazer de conta que o presente, ou a notícia presenciada, não existe. Ou pior: esquecer é desconhecer. Entre tantos lapsos, desconhecer a diferença entre o eterno falseado e o instante feito real. Quem não se lembra não discerne onde nem o que. Habita a eternidade da dúvida sem provar a eficácia do espanto. Para espantar-se é preciso lembrança, e como raramente vem o conhecimento sem o susto, há de ser esquecido aquele que não sabe, sequer, o que é.

Aliás, para Dante, o inferno é doloroso pela lembrança da boa hora que acomete o desgraçado na hora ruim. Como se a memória do contraste, ao invés de atenuar o sofrimento, alargasse a ferida, na tortura do condenado que não se desengana ao regressar aonde não tem como ir.

Está claro que esquecer é vital, e o que não for naturalmente (automaticamente) esquecido, lembremo-nos de esquecer. Mas lembrar o que for para lembrar. Para saber mais, uma vez que lembrar é saber. O conhecimento é o resgate do conhecido, depois do sonho da descoberta.

Para amar? Pode ser, já que esquecer é deixar de amar, no mesmo dicionário romântico que define o amor como a recordação que não passa. A incursão psicanalítica diz que não pensar é uma maneira de reprimir o sentimento que a lembrança permite.

Além de conferir ao mundo coerências particulares e alucinações procedentes, essa falsa notícia do eterno permite a cada um personalizar verdades, conceber mentiras e assumir ilusões antigas.

O labirinto sem saída é um lugar para se visitar, não para viver lá.


Allegro (Dinamarca, 2005)
Direção: Christoffer Boe
Com Ulrich Thomsen e Helena Christensen.


18.6.08

Do amor que se deseja

Se pudéssemos matar em nós a morte que nos mata – viveríamos mais?

Ele nem pensava nisso. Antes de matar a morte que lhe mata tentaria afastá-la da dela, na esperança de que ao menos enquanto estivesse por perto ela estaria segura.

E se para preservá-la tivesse que fazer mais, aumentando a força que os atrai até o limite da resistência? Não hesitaria. Crer na atração é descrer que haja limite. Preservá-la seria saber que resistia, e sabê-lo seria preservar-se, resistir junto.

Mas a permanência cobra tarifa. A do sonho romântico é o realce da impossibilidade... Um sonhador francês já descreveu o arco patético do ciúme em face do alcance mínimo dos corpos como algo fadado ao desespero. Só que eles não leram, ou não se importaram com as minúcias românticas de Proust. De corpos intactos e intácteis, incapazes de se tocar, reescreveram a história dos que desfrutam e padecem de amor perfeito, em que a paixão não recua nem o desejo se sacia.

O tom de paradoxo não descolore o estranho apelo neoromântico. Em seu amor transparente, a impossibilidade recua diante da ternura, a infelicidade típica dá vez a uma alegria convicta: a alegria dos que têm ciência de que não podem ser mais próximos do que são. Nessa distância que não se quebra – nem é expandida – a utopia particular dos amantes impossíveis se forma.

Era como se o poder da vida e da morte selasse uma antiga promessa que se cumpria enquanto não se consumasse. A ressurreição dela não implicava senão a relativa renúncia de ambos ao amor que não se sepultava, diante da recuperação de uma beleza conjugada que julgavam para sempre perdida.

Se podemos viver em nós a vida que vem de fora – sim, vivemos mais.


Pushing Daisies (1ª temporada, EUA, 2007)
Criado por Bryan Fuller
Com Anna Friel e Lee Pace.


27.5.08

Ponteiros

Visões extremas se reconhecem do outro lado da linha.

O que acontece quando a vida em seu apogeu se depara com a decadente espera do fim? Quando a exuberância da flor abre-se à luz do dia e se espanta com o brilho esmaecido dos olhos da noite?

A poesia e o desespero coexistem, formando o desespero poético e a poesia sem esperança. Coexistem, sem anular-se, partícula e antipartícula da eternidade em forma de carne. Coexistindo, atraem-se.

A atração abranda o choque. Atração pela queda misteriosa, de um lado, e pelo viço perdido com a ferrugem, de outro. Os limites da atração são nítidos, invioláveis as fronteiras – entre o auge da juventude e o último degrau do discernimento. Ainda assim, há encruzilhada.

Encruzilhada em que o paradoxo não descamba no confronto comum em que se metem visões extremas. A força não expulsa a fraqueza, o movimento não desdenha a paralisia, a liberdade não condena a prisão.

O cuidado recíproco, todavia, é distante. A matéria pensante esconde o que a mente rotula de afinidade, afastando-o como se repara de longe o costume exótico, o pitoresco que nunca está próximo o bastante para deixar de ser aparência ou engano.

Mas a ligação impossível e inevitável acontece: ligação de avessos, de complementos não opostos, de ponteiros paralelos no segundo que não se repete.

De pedaços polares da mesma linha querendo saber o que os torna tão diferentes, se o trajeto que separa os pólos não é dado, se a flor da juventude está no velho, se o outono da idade está no jovem.


Vênus (Venus, Inglaterra, 2006)
Direção: Roger Michell
Com Peter O’Toole, Vanessa Redgrave e Jodie Whittaker.


21.4.08

A respiração profunda

Técnica para enfrentar desafios, estratégia para recuperar o controle, sinal de transigência com o passado, de atenção ao presente, de confiança no futuro. A respiração modula o organismo e coordena o tráfego por onde flui ou estanca a vida, das vísceras ao raciocínio. Dizem que um segredo dos mestres é a virtude respiratória. Paciência de respirar uma respiração virtuosa.

Também revela o desgosto, manifesto instinto de desagrado ao que se acha sem reparo. A respiração do desapontamento, liberando o ar que não presta para o lado de fora, renovando o oxigênio puxado pelos pulmões. A respiração do desalento, da melancolia. Da impaciência comum. E do luto, em busca de novos ares.

Respirar fundo e mergulhar. A provisão de ar como prelúdio. Antes de um passo mais longo, do movimento progressivo, antes do inevitável – quando se pode prever o próprio espanto, mesmo se é difícil conceber o susto. O mergulho é um salto para o esperado tanto quanto para o desconhecido. O inesperado também demanda preparação, e a boa respiração favorece a sorte, assim como o descompasso no ar inalado produz paralisia.

A demora na libertação vem do ar viciado. O ambiente inspirado é uma das causas de aprisionamento. A imobilidade começa pelo peso da atmosfera. A pressão dificulta a respiração, e a respiração carregada faz o real ficar mais pesado, de volta. Respirar melhor alivia, conduzindo o pensamento e o corpo às condições propícias à libertação.

Mas que liberdade procura quem se aproveita do ar limpo como da verdade, apenas para encobrir a mentira? A verdade é a mentira, a mentira é a liberdade na respiração desencontrada.

A mentira dissimulada no vento posto em rotação pelos que mentem é dita, primeiro, ao entrar e sair pelo nariz com naturalidade – ou ser denunciada. A brincadeira, a mágica, a crendice, a crença, aproveitam o clima cúmplice suspenso para satisfazer o desejo de ilusão.

Numa dança de passos previsíveis, a sincronia aumenta na medida da imprevisibilidade. A sincronia é a redescoberta da respiração, não mais truque repetido, e sim, o próprio ar que se renova – como mergulho livre em um rio que passa.


Atos que desafiam a morte (Death defying acts, Inglaterra/Austrália, 2007)
Direção: Gillian Armstrong.
Com Guy Pearce, Catherine Zeta-Jones e Saoirse Ronan.


6.4.08

A fadiga das paixões

O prazer protege no deserto. Mas a proteção tem seu preço, como um êxtase silenciado, uma dor camuflada na vastidão embriagante, no frio noturno, no hábito do deserto.

Hábito de contrastes e choques, das profundezas de uma mente ofuscada à superfície estendida à vista. Desde o início da travessia a estranheza é patente, os choques chegam a cada passo. Nenhum é maior que aquele, compreendido aos poucos, de ter sido largado, ter nascido, existir em pleno deserto.

Eis que um brilho concentrado pede atenção, a luz inteira de cima e do chão num ponto especular distante. O espelho se aproxima, sussurra palavras indizíveis. Compartilhado o silêncio, o deserto é um palco de grandes paixões, em cuja amplidão se revezam o gozo e o conforto, o instante e a duração. Tem-se até a impressão notável de se ver ali o ensaio de espetáculo anunciado, como se antes dos atos propriamente ditos soprassem prenúncios do porvir.

A visão do ensaio quer se prolongar indefinidamente, feito areia se deslocando em mar seco. Então o prazer se prolonga – mas também o desespero. O silêncio dividido corre para trás, vira silêncio pulverizado, assobio cortante do areal sem identidade, assobio de vento que não estanca.

Então o deserto se dirige a todos os lados proveniente de uma direção só. Há uma fonte da qual brota o deserto. Na fonte o deserto é sereno, ínfimo grão de areia em invisível semente de turbulência. Fonte do prazer intuído, e da ausência da espera, do fim da expectativa... Fonte de um estado de essência des-esperada prometida por santos idolatrados ou descrita por alguma vã filosofia.

A solidão desdobrada em si é a fadiga projetada noutro deserto: a fadiga das paixões, delirantes no dia escaldante, trêmulas, tão logo o sol se põe.



O céu que nos protege (The sheltering sky, Inglaterra/Itália, 1990)
Direção: Bernardo Bertolucci.
Com Debra Winger e John Malkovich.


17.2.08

Despertencimento

Pertencer ao lado de fora não é escolha mercê de ponderação, ou estrito lance de azar. De todo jeito não é fácil. Pertencimento implica em doação, na melhor hipótese. Ou em um tipo de abandono a feras que não avançam: apenas julgam (pelo menos é o que parece ao que se acha julgado).

É possível a acolhida após o abandono, se já não tiver havido o aceite tácito, prévio, típico do ato de se doar. Claro, a aceitação está, antes, no pertencido – solitário agregado ao coletivo – do que no meio (hostil) em que se vê o abandonado.

A identificação é forma de superar a solidão vinculada ao abandono. Pressuposta a rejeição, porque a primeira aceitação – de doação – sequer foi suposta. O enjeitado não se enxerga pertencido, pois, de partida, não se pertenceu. E a rejeição que já se encontra na ida, repete-se na volta.

Mas não provindo de escolha ou azar, como se doar e lograr tal pertencimento? Talvez não haja resposta ao que não traz receita. O ambiente externo, sociável, é refratário ao esforço notório de integração. Um músculo em flagrante incômodo, uma idéia deslocada, uma locução sem destino, são captados instantaneamente pelo grupo – e pelo próprio sujeito que não se oculta em seu descolamento.

Ser do outro é fato sem esforço. Movimentos espontâneos de entrega e comunhão não acarretam incômodos, dores e abalos sísmicos. Um desejo simples não degenera em neurose, por logo realizar-se, e se realizar em moto contínuo. Ser do outro é como uma conversa entre iguais.

Se for entre estranhos, o encaixe não se disfarça, não dura. O encaixe falseado vai se mostrar inadequado quando o esforço subir à superfície do encontro forçado. E como acontece! A “arte do encontro” prima pelo desencontro por causa dos nossos tantos despertencimentos. Seguimos nos conhecendo e nos estranhando, conhecendo e estranhando o despertencimento alheio.

Isso não tem a ver com se adaptar ou não, numa luta heróica ou comum, poética ou anônima pela diferença. Ser do outro é compensação, prêmio de consolação que dá um pouco de conforto ao corpo, de sentido ao pensamento, de finalidade ao discurso proferido. Ao menos por algum tempo.

O que pode ser um verdadeiro alento para a sensação compartilhada, em todos os grupos, de não pertencermos a nós mesmos.


Zelig (EUA, 1983)
Direção: Woody Allen
Com Woody Allen e Mia Farrow.

9.2.08

Dando voltas no tempo

O resgate dos dias que virão é complicado como o dos dias sepultados. Sem se importar com o óbvio paradoxo – futuro visto é futuro alterado – a mente recorda em bloco, como se quisesse funcionar para trás e para frente, por causa da estranheza diante da natureza do tempo.

O passado é estranho como o futuro. Na memória resta a prova da vivência direta ou de indiretos instintos e tendências filtrados pela genética. A memória relata o mundo ao sujeito – e relata ao mundo um sujeito. Você é o que você lembra do mundo. Você é o que você lembra de você.

A condição aberta do vindouro, enquanto isso, depende da memória para se valer. Toda promessa é promessa “para”, toda esperança é esperança “de”. A abertura do ser pertence às contingências da lente e do foco, e não haveria abertura sem a limitação que a explora. Seria abertura para o nada, abertura vazia. Ou sujeito sem mundo, ou mundo sem sujeito: idêntica queda no abismo.

Visitar o passado é estranho como se aventurar no futuro porque sair do instante presente é quase deixar a presença física, abandonar o corpo numa viagem sem destino.

Sendo o lugar onde a vida está, o presente é o tempo consumido da razão em que o tempo existe. O centro de um relógio, ponto imutável a servir de referência para pontos eqüidistantes na circunferência que liga o antes e o depois.

Além de mera suposição – como diz a filosofia sobre a “certeza” do sol nascente no dia seguinte – o futuro é uma suposição projetada. E as projeções vêm orientadas de algum canto. O futuro é o passado projetado. Um tempo esperado, um tempo que se esperou.

Mas o passado lançado à frente pode assumir feições insatisfatórias ao que se pretende “novo”. Então a memória se trai. A recordação do “futuro” se revela, no poder presciente, inevitável circularidade – como a luz da manhã e o silêncio da noite.

Prever e lembrar, no tempo circular, são o mesmo ato com efeitos avessos: prever é lembrar pelo avesso, antecipar a lembrança sem atravessar o presente.

E pôr na memória prova suficiente de bela ou trágica profecia.


O Vidente (Next, EUA, 2007)
Direção: Lee Tamahori.
Com Nicolas Cage, Julianne Moore e Jessica Biel.
Baseado no livro “The Golden Man”, de Phillip K. Dick.


4.2.08

Rima primitiva

Quando a sintonia é regida pelo silêncio que grita no espaço entre dois, o desatino que leva corpos atraídos ao descontrole não prejudica o entendimento rápido, livre das palavras tuteladas, acostumadas ao oposto do desatino, ao controle de um.

Palavras co-geradas emanam fora do alcance individual. Palavras quase audíveis no silêncio regente, no baile de pequenos gestos de repente alçados à linguagem mais relevante. Cada verso é costurado em pares, à maneira do DNA, numa dupla hélice espiral: como se fosse o mesmo verso, o mesmo corpo, um em busca do outro, dois paralelos mergulhados no ensejo de um.

Versos conhecidos repetem-se com solene prazer, na trajetória que oculta e descerra a distância impossível de se cumprir. Versos repetidos na ilusão de vencer a separação onde os apartados vibram, percorrer por inteiro e em todos os pontos, pelo chão, pelo ar, o caminho da atração.

Assim o poema é sempre um novo arranjo de poesia que não sacia, limiar de corpos que se invadem, reservando aos invasores o retorno ao ponto de partida. Para que a sedução recomece, e o silêncio conceda novamente a sua dança.

Pode ocorrer de se baixar o descontrole dos sentidos, e um filtro profundo apure o que aflora na superfície. Ou pode ser que o grito mudo apenas surja do espanto defronte de rima rara.

O caso que for, a existência entra em êxtase por se lançar além. Na direção de alvos projetados com avidez sobre uma flecha de luz, por sua vez também um alvo móvel que brilha, mira e seduz.

O corpo se entrega à necessidade do não dito, e se dedica ao que o libera do pensamento narrado, discursivo. O desatino corpóreo é pensamento primitivo, poético. Desatino de conscientes autômatos, atirados ao que mais se parece a uma experiência breve, fora do ser.


Sexo com amor? (Brasil, 2008)
Direção: Wolf Maya
Com Carolina Dieckmann, Reynaldo Gianecchini, José Wilker, Malu Mader e Eri Johnson.


31.1.08

Mundos de multidões

Cidades aglomeram gente. Multidões habitam cidades. Transitam para todo lado, entupindo veias urbanas – fazendo circular nelas o trabalho (energia) que sustenta, alimenta e amplia toda cidade. Sustenta, alimenta e cria mais gente.

As multidões já levaram, nas faces misturadas, nos ombros e braços multiplicados, alguma utopia. Esperança e poesia. Sob a visão de Baudelaire, por exemplo, as multidões revelavam a cumplicidade possível dos estranhos, que em seu passo difuso buscavam a felicidade ideal de um destino só.

O anonimato entre muitos teria uma aura de força originada no indivíduo que seria tão mais valioso quanto mais solitário... Desde que se deslocasse na horda, e se confundisse com a replicação de si mesmo e seus desejos, temores, capacidades e limites comuns.

Em suas “Cartas a Milena”, Kafka faz referência à contemplação de multidões que “gritam e se dispersam” na rua, sob a mira de baionetas. E lamenta, em mais um lance de autocomiseração, a sua condição, que é a de “imunda vergonha de viver constantemente protegido”. Vê-se claramente o desejo de participação, no solitário envergonhado (des)mascarado pela multidão.

Será que hoje resta alguma culpa na vontade de proteção? É de se perguntar até que ponto as multidões ainda representam a utopia. Pois habitam todas as ilhas. Falta espaço até na imaginação. Mundos imaginados? Mundos de multidões.

O cenário virtual de uma megalópole vazia passa a valer ambiguamente, pesadelo e sonho de indivíduos acossados, ameaçados por multidões.

Pesadelo, uma vez que a cidade estampa vestígios do ideal civilizatório que o ser urbano abraça como “natural”: a vida é melhor no meio de tanta gente porque com tanta gente em volta a vida parece melhor.

No entanto, eis o sonho, contra a maré, enaltecido de viés na obra de ficção para o consumo de... multidões. Eis o sonho, reinante nos lugares apinhados que se arejam, tornando-se mais “habitáveis” (note-se a contradição) nos feriados prolongados, como em dias de Carnaval.

A concentração de pessoas, de cura coletiva, passou a signo de doença. Entre as mais conhecidas, estão a Síndrome do Pânico, cujo gatilho pode disparar na multidão, ou na perspectiva dela (como numa fila de banco, como contou o escritor Mário Prata), e a Fobia Social, manifestada no cumprimento de atividades cotidianas acompanhadas pelo olhar do outro.

O outro é mais que invasor da privacidade, em uma época de olhos onipresentes. O Big Brother original, de Orwell, foi ultrapassado: o medo da vigilância estatal foi trocado pela exposição de todos a todos, no tropeço de olhares de uns nos demais. “Você não perde por espiar”, repete Pedro Bial. E por ser espiado ininterruptamente, quem ganha? O que se ganha? Além da promessa de fama, seja lá o que for essa fama para os espiados.

Também os mundos virtuais são repletos de multidões, no encalço do indivíduo que busca livrar-se delas no real. Agora são os indivíduos que “gritam e se dispersam” sob a mira das multidões.

Um senso perdido de proteção fica à mostra, como uma carência perturbada na presença maciça de estranhos que não são mais a melhor companhia. O grande problema é que somos a companhia indesejada de outro. Somos os estranhos de uma qualquer multidão. A separação se esgarça, contudo, tampouco a união resiste.

Se indivíduos precisam de indivíduos, mas a certa distância, que mundos formaremos, nós, as multidões?


Eu sou a lenda (I am legend, EUA, 2007)
Direção: Francis Lawrence
Com Will Smith e Alice Braga.

25.1.08

Desenlace

Linha de luz entre reflexos, ponte a ligar dois mundos, união do que não se toca – o entrelace de olhares pode ser firme e sereno feito mãos que se entregam à primeira vez.

Entrelaces não se dão à primeira vista. Percorrem labirintos antes. Espirais infinitas vão e vêm. Invisíveis lentes ampliam o que mal aparece, e um relógio de areia restitui o tempo sem cessar. Em cima da cena, o esboço indefinido ganha contorno, eco bem repetido reforçando a orientação do sonar.

O foco da intuição percorre os detalhes atrás de informação conhecida, mesmo que nunca se tenha detectado igual aparência. O relógio de areia não dá trégua, embora pareça que o tempo não faça questão de passar.

Afinidades tropeçam nas fundações. Instabilidades ocultam os detalhes descobertos cedo, encobertos pela visão desviada. Quando é simples o que acontece, e algo se estabelece à revelia de mil perguntas, sua importância se envolve em beleza leve. O suave escolta o simples de importância sem gravidade. Se as perguntas desorientam, apagam a linha surgida, são dissipadas num sopro, retornam ao silêncio.

Se a compreensão do entrelace tem chance, é pela graça, pela poesia emanada que é fonte da atração descomplicada. No entrelace, a linha de luz vence a sombra, o simples toma o lugar da dúvida e alicerça a permanência da quietude.

Mas a quietude, se quer? Quando o desejo não se aquieta, aquilo que não se completa está disposto ao risco de outros laços e labirintos. Quando o medo não se quieta, aquilo que se completa não chega a ser desfrutado – e um precoce arrependimento recorda o eco antigo da inquietação que ficou.


Poucas e boas (Sweet and lowdown, EUA, 1999)
Direção: Woody Allen
Com Sean Penn, Samantha Morton e Uma Thurman.


17.1.08

O mergulho do corpo e da mente

Dos pequenos gestos cotidianos às decisões de severos efeitos, a cada momento construímos a realidade de acordo com as contingências e as possibilidades da liberdade que temos. Embora seja possível especular sobre milhões de mundos em dimensões paralelas, e até sobre os bilhões de mundos individuais na Terra, a realidade que nos integra é uma realidade singular, indivisível e irreversível (apesar das “viagens” dos gurus da física quântica, esmerados na divulgação do que mal sabem explicar).

Ser alguém diferente, estar em outro lugar, acalentar o sonho de uma virada radical – são desejos comuns que muitos trazem do berço. Desejos do presente para o futuro. Inquietações de um estado que não satisfaz, reunidas em torno das disposições construtivas do novo – ou das indisposições que conservam, paradoxalmente, o que sabidamente não se quer.

Mas não podemos ser diferentes do que somos, nem estar onde não estamos, por maiores que sejam os anseios que animam – ou desanimam – a alma. A singularidade que acompanha a consciência configura o real na mesma medida. Apesar de cada consciência parecer um mundo à parte, o que se tem a partir dela não é um mundo para cada consciência.

A interface entre o desejo e a condição dada, o exterior e o interior que se atira para o lado de fora, a realidade posta ao existir consciente, é o corpo. Palco dos pequenos gestos e dos severos efeitos, o corpo é a dimensão que possuímos da matéria visível no universo, e ainda nos intriga tanto quanto a misteriosa matéria escura que se esconde da vista, porque não recebe nem emite a luz.

Dentro do corpo mora a mente. Pelo corpo, a mente se lança ao mundo. O corpo encurta a mente, a mente expande o corpo: a limitação é objetiva, a expansão é virtual. A mente não é outra coisa senão corpo – ainda que seja o corpo virtual, no mundo virtualizado.

A virtualização do corpo e do mundo almeja romper a fronteira corpórea e alterar essencialmente a consciência da matéria viva. Por que a consciência depender da vida? Por que o cérebro é visceralmente importante? E o corpo, por que não ser maior, mais flexível à mente que cresce ao se deslocar no mundo?

Desde a invenção do fogo, a tecnologia se presta à fantasia. A chama do conhecimento é propícia à divagação. A fantasia, em retorno, turbina a tecnologia, com a crítica da construção de uma realidade imperfeita. A imperfeição aparece ao que mergulha na natureza.

O mergulho da mente é um mergulho para cima. O mergulho do corpo vai na descendente. A mente voa, o corpo cai. No mesmo espaço, no mesmo tempo – na única realidade, cuja face, revelada, nasce envelhecida.

O real é renovado mentalmente. O corpo, onde o real floresce, acredita no virtual poder do mergulho da mente, atrás de uma saída de emergência para o lugar que não existe.


Vanilla Sky (EUA, 2001)
Direção: Cameron Crowe
Com Tom Cruise, Penélope Cruz e Cameron Diaz.

13.1.08

Amor pensado

Favorecidos pelo acaso, costumamos chamá-lo pelo nome de sorte. A sorte é grande, continuamos, no encontro de alguém que considere a sorte recíproca. Mas às vezes a reciprocidade é tamanha que parece irreal... Neste caso, se o absurdo irrompe do acaso benevolente, aquilo que não tem sentido mais tarde será visto como inevitável. Somos assim. O que é ilógico torna-se dogma, o inconseqüente vira necessário.

Antes disso, na trajetória do caos à ordem – do impossível que acontece ao acontecido que não poderia deixar de ser – o indivíduo apaixonado que dá vez ao absurdo, e opta pelo “não” preventivo, abre uma porta à transmutação da surpresa em horror, da alegria em dor, da atração em temor.

A paixão é tempestuosa e absurda, de fato. Surge de qualquer canto, de qualquer jeito, a qualquer hora. Puro lance de sorte, propiciado pelas chances abertas na armação de condições dadas, ainda que sejam condições imponderáveis, fora de controle.

É aí que a paixão, de incontrolada, passa a condicionada por motivos além da sorte, no esforço de se remeter a culpa da paixão para o lado de fora. Encontros fortuitos lidos nas estrelas, histórias pontuadas de coincidências fabulosas, servem à tentativa de justificar a ausência de explicação convincente sobre o que se sente.

O sentimento então é aprisionado. Dogmatizado. A emoção é vítima do arbítrio, na pretensão de compreender e limitar o raio de ação emocional. A paixão fica refém do amor impossível.

E o amor impossível é refém da razão. Pois provavelmente o ceticismo, ali, não funciona. Se quem ama, não pensa, e quem pensa, não ama, a fórmula reducionista não leva em conta o efeito da sorte sobre a mente dos apaixonados.

É melhor pensar o amor e amar enquanto a paixão é livre, e libertá-la é sentir a sorte sem absurdos nem dogmas, para que o amor não seja mal pensado.

Além do mais, o pensamento que ama vai mais longe que o pensamento mal amado.



Nunca é tarde para amar (I could never be your woman, EUA, 2007)
Direção: Amy Heckerling
Com Michelle Pfeiffer e Paul Rudd.


9.1.08

Caça ao tesouro

Tesouro é o que se abriga dos olhos nas profundezas da imaginação, é celebrado sem ter sido visto, é cobiçado antes de conhecido. Um cristal ideal lapidado no tempo certo.

A informação sobre o tesouro, no entanto, é farta em minúcias. Durante a busca, o que não se sabe não importa: as lacunas que persistem são preenchidas pela expectativa, espaços propícios à fertilização curiosa.

O tesouro mantém-se alheio ao mundo, estranho ao toque, pérola distante à espera de descobrir-se... o porto perdido na ilha fora do mapa.

A lenda do tesouro se forma e se espalha na superfície, enquanto o tesouro descansa lá embaixo, à sombra silenciosa. A lenda desmente a fantasia e se desvencilha de um manto desnecessário: o tesouro é intocado e essa qualidade basta. O tesouro é selvagem, porque o tempo o torna puro, na virgindade impoluta do inédito contemplado.

A esperança da virtude acompanha a lenda. Se por um lado há pureza, de outro viceja a permanência que desafia o tempo. Pela demora pra aparecer, o tesouro também é precioso por ser tomado por algo que dura. Uma espécie de força imune ao desgaste, ou de beleza imutável.

A sua posse é improvável, pensar nela é sofrer em vão? Os aventureiros que se lançam apaixonados estão atrás da grande recompensa no final. Mas tudo que se persegue vai junto durante toda a jornada. Desde o primeiro passo, o primeiro sonho, a primeira dúvida.

Tesouro é o que se dá aos olhos após consumir a imaginação, na dádiva que surpreende. É a compreensão que renova a vontade de saber mais.

Um cristal real, exposto à experiência do mundo.



Criaturas das profundezas (Aliens of the deep, EUA, 2005)
Direção: James Cameron e Steven Quale.
Documentário no fundo do oceano com cientistas da Nasa.