17.2.08

Despertencimento

Pertencer ao lado de fora não é escolha mercê de ponderação, ou estrito lance de azar. De todo jeito não é fácil. Pertencimento implica em doação, na melhor hipótese. Ou em um tipo de abandono a feras que não avançam: apenas julgam (pelo menos é o que parece ao que se acha julgado).

É possível a acolhida após o abandono, se já não tiver havido o aceite tácito, prévio, típico do ato de se doar. Claro, a aceitação está, antes, no pertencido – solitário agregado ao coletivo – do que no meio (hostil) em que se vê o abandonado.

A identificação é forma de superar a solidão vinculada ao abandono. Pressuposta a rejeição, porque a primeira aceitação – de doação – sequer foi suposta. O enjeitado não se enxerga pertencido, pois, de partida, não se pertenceu. E a rejeição que já se encontra na ida, repete-se na volta.

Mas não provindo de escolha ou azar, como se doar e lograr tal pertencimento? Talvez não haja resposta ao que não traz receita. O ambiente externo, sociável, é refratário ao esforço notório de integração. Um músculo em flagrante incômodo, uma idéia deslocada, uma locução sem destino, são captados instantaneamente pelo grupo – e pelo próprio sujeito que não se oculta em seu descolamento.

Ser do outro é fato sem esforço. Movimentos espontâneos de entrega e comunhão não acarretam incômodos, dores e abalos sísmicos. Um desejo simples não degenera em neurose, por logo realizar-se, e se realizar em moto contínuo. Ser do outro é como uma conversa entre iguais.

Se for entre estranhos, o encaixe não se disfarça, não dura. O encaixe falseado vai se mostrar inadequado quando o esforço subir à superfície do encontro forçado. E como acontece! A “arte do encontro” prima pelo desencontro por causa dos nossos tantos despertencimentos. Seguimos nos conhecendo e nos estranhando, conhecendo e estranhando o despertencimento alheio.

Isso não tem a ver com se adaptar ou não, numa luta heróica ou comum, poética ou anônima pela diferença. Ser do outro é compensação, prêmio de consolação que dá um pouco de conforto ao corpo, de sentido ao pensamento, de finalidade ao discurso proferido. Ao menos por algum tempo.

O que pode ser um verdadeiro alento para a sensação compartilhada, em todos os grupos, de não pertencermos a nós mesmos.


Zelig (EUA, 1983)
Direção: Woody Allen
Com Woody Allen e Mia Farrow.

9.2.08

Dando voltas no tempo

O resgate dos dias que virão é complicado como o dos dias sepultados. Sem se importar com o óbvio paradoxo – futuro visto é futuro alterado – a mente recorda em bloco, como se quisesse funcionar para trás e para frente, por causa da estranheza diante da natureza do tempo.

O passado é estranho como o futuro. Na memória resta a prova da vivência direta ou de indiretos instintos e tendências filtrados pela genética. A memória relata o mundo ao sujeito – e relata ao mundo um sujeito. Você é o que você lembra do mundo. Você é o que você lembra de você.

A condição aberta do vindouro, enquanto isso, depende da memória para se valer. Toda promessa é promessa “para”, toda esperança é esperança “de”. A abertura do ser pertence às contingências da lente e do foco, e não haveria abertura sem a limitação que a explora. Seria abertura para o nada, abertura vazia. Ou sujeito sem mundo, ou mundo sem sujeito: idêntica queda no abismo.

Visitar o passado é estranho como se aventurar no futuro porque sair do instante presente é quase deixar a presença física, abandonar o corpo numa viagem sem destino.

Sendo o lugar onde a vida está, o presente é o tempo consumido da razão em que o tempo existe. O centro de um relógio, ponto imutável a servir de referência para pontos eqüidistantes na circunferência que liga o antes e o depois.

Além de mera suposição – como diz a filosofia sobre a “certeza” do sol nascente no dia seguinte – o futuro é uma suposição projetada. E as projeções vêm orientadas de algum canto. O futuro é o passado projetado. Um tempo esperado, um tempo que se esperou.

Mas o passado lançado à frente pode assumir feições insatisfatórias ao que se pretende “novo”. Então a memória se trai. A recordação do “futuro” se revela, no poder presciente, inevitável circularidade – como a luz da manhã e o silêncio da noite.

Prever e lembrar, no tempo circular, são o mesmo ato com efeitos avessos: prever é lembrar pelo avesso, antecipar a lembrança sem atravessar o presente.

E pôr na memória prova suficiente de bela ou trágica profecia.


O Vidente (Next, EUA, 2007)
Direção: Lee Tamahori.
Com Nicolas Cage, Julianne Moore e Jessica Biel.
Baseado no livro “The Golden Man”, de Phillip K. Dick.


4.2.08

Rima primitiva

Quando a sintonia é regida pelo silêncio que grita no espaço entre dois, o desatino que leva corpos atraídos ao descontrole não prejudica o entendimento rápido, livre das palavras tuteladas, acostumadas ao oposto do desatino, ao controle de um.

Palavras co-geradas emanam fora do alcance individual. Palavras quase audíveis no silêncio regente, no baile de pequenos gestos de repente alçados à linguagem mais relevante. Cada verso é costurado em pares, à maneira do DNA, numa dupla hélice espiral: como se fosse o mesmo verso, o mesmo corpo, um em busca do outro, dois paralelos mergulhados no ensejo de um.

Versos conhecidos repetem-se com solene prazer, na trajetória que oculta e descerra a distância impossível de se cumprir. Versos repetidos na ilusão de vencer a separação onde os apartados vibram, percorrer por inteiro e em todos os pontos, pelo chão, pelo ar, o caminho da atração.

Assim o poema é sempre um novo arranjo de poesia que não sacia, limiar de corpos que se invadem, reservando aos invasores o retorno ao ponto de partida. Para que a sedução recomece, e o silêncio conceda novamente a sua dança.

Pode ocorrer de se baixar o descontrole dos sentidos, e um filtro profundo apure o que aflora na superfície. Ou pode ser que o grito mudo apenas surja do espanto defronte de rima rara.

O caso que for, a existência entra em êxtase por se lançar além. Na direção de alvos projetados com avidez sobre uma flecha de luz, por sua vez também um alvo móvel que brilha, mira e seduz.

O corpo se entrega à necessidade do não dito, e se dedica ao que o libera do pensamento narrado, discursivo. O desatino corpóreo é pensamento primitivo, poético. Desatino de conscientes autômatos, atirados ao que mais se parece a uma experiência breve, fora do ser.


Sexo com amor? (Brasil, 2008)
Direção: Wolf Maya
Com Carolina Dieckmann, Reynaldo Gianecchini, José Wilker, Malu Mader e Eri Johnson.