Disposição de proximidade, partilha, prazer e paz
No resto do ano as faces encobertas pelos panos das
convenções, do atropelo de afazeres e pelos mantos transparentes das inibições,
disfarçam a expressão solta agora, sem vergonha nem economia. O Carnaval expõe
sorrisos nus.
O menino no colo do pai está desconfiado, só ensaia careta
sem graça, franze a testa, vestido de super-herói. A irmã, de fita nos cabelos,
faz pose com uma alegria serena. Os pais, de óculos escuros para encarar o sol
de Olinda, não escondem o orgulho e escancaram a felicidade na foto de álbum de
família.
Vestida de coelhinha, a menina ergue os ombros e sorri numa
esquina do Recife Antigo. A mãe que não desgruda aparece no Marco Zero, de
boina e um sorriso nas cores da bandeira de Pernambuco. Outra mãe que não se
aguenta de emoção segura o estandarte e o filho. A garotinha de rabo de cavalo,
óculos quadrados e o cruzeiro do sul salpicado na bochecha também brinca no Eu
Acho é Pouquinho, flagrada pelas lentes de Juliana Lombardi. Uma geração
inteira de índios bebês aparece, no Galo, na Rua do Bonfim, na Bom Jesus.
Em casa, antes dos cortejos, um casal de irmãos se prepara
para sair de cangaceiros. Marido e mulher vão de marinheiros num grupo que tem
malandro, bruxa, melindrosa e pirata. Outra índia de colo aguarda ansiosamente
a primeira vez em que será ninada ao som do frevo.
Num camarote, a moça exibe-se contente ao lado do pai, os
dois de camisetas verdes, como todos no espaço vip. Lá embaixo, entre o sol e a
chuva, amigas nem ligam pro humor de São Pedro, e se abraçam com empolgação.
Uma de máscara azul brilhante sobre os olhos, a outra de peruca rosa.
Vielas da região portuária e ladeiras de casarios antigos
guardam a história de olhares trocados. Um grupo de enfermeiras topa com três
vampiros, dois dráculas perseguem uma nega maluca. A bailarina rodopia,
rodopia, se diverte sem parar. Uma fila de anjos quebra o colorido reinante,
com asas e saias brancas, e se amostram para a TV.
Quem está trabalhando não demonstra insatisfação. Nos
camarotes, nas ruas, nos bares e restaurantes, também vale a empolgação. Na
cobertura da felicidade desmascarada, jornalistas, produtores, fotógrafos e
câmeras vestem a camisa do ofício, sem lamento.
Casais incontáveis aproveitam para celebrar o amor de outros
carnavais. Esse faz dos chapéus coloridos o mote da graça. Aquele, de verde e
prateado, capricha na pose: disputam prêmio de melhor fantasia. Na Terra do
Nunca, escoltada por Peter Pan, Sininho faz de conta que não vê o cordão de gente
misteriosamente formado ao seu redor.
Personagens desgarrados não têm nada de solitários no seio
da multidão. A tiara de flores emoldura a cigana pronta pra festa. Uma bruxinha
de vermelho e preto descansa, de copo na mão. Sentado ao meio-fio, um pequeno
bobo-da-corte se restabelece. Capitão Gancho toma um gole enquanto analisa o
panorama. A menina assanhada pinta o rosto inteiro, em forma de labareda: é a
chama que não passa. E até debaixo do boneco gigante, a disposição gigantesca
segura a responsabilidade com leveza, interrompendo a performance pra foto de
Hans von Manteuffel como se tudo fosse motivo de brincadeira. Por falar neles,
a fila dos bonecões em Olinda é puxada por um Gonzagão à vontade, dentes à
mostra, como se cantasse.
Expressão dos músculos faciais, o sorriso torna visível uma
disposição de alma: disposição de proximidade, encanto, partilha, prazer e paz.
A mais evidente e festejada nudez do Carnaval.
Foto: www.portalvital.com
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