Uma das faces do pragmatismo, o fisiologismo abusa da repartição
de cargos e verbas por critérios políticos, e rende, como frutos, apoio no
Congresso e ampliação de alianças eleitorais. Governos montados sob bases
fisiológicas, mais atentos a demandas privadas do que às necessidades da
população, tendem a exibir altos graus de ineficiência e de corrupção. Seria um
mal da democracia? Em entrevista à rádio JC/CBN no sábado, 11, o cientista
político e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Marco Aurélio
Nogueira, disse que, “antes de ser o preço de um governo de coalizão, é o preço
de um governo democrático. O que se espera da democracia é justamente esse tipo
de negociação”, disse Nogueira.
O professor comentou na ocasião a derrota do governo no
Senado, que reprovou a indicação da presidente Dilma Rousseff para o comando da
Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Dias depois, Romero Jucá,
virtual mentor da rebelião, perdeu o posto de líder no governo no Senado. Jucá
foi líder dos governos de Fernando Henrique, de Lula e de Dilma. Deve ser um
especialista na arte da coalizão e nos insondáveis caminhos da governabilidade,
assim como o seu partido, que conta com o vice-presidente da República. Quando
candidato, Michel Temer declarou que a vice e a participação no programa de
governo eram os únicos compromissos do partido para a formação de chapa. “Não há nada disso de partilha de cargos. O que o PMDB vai fazer é
colaborar com o governo. O PMDB repudia essa coisa do fisiologismo”, afirmou em
um debate, em 2010.
A derrubada da indicação oficial para a ANTT revelou a crise
na base aliada, e levou à troca dos líderes no Parlamento. Além de Jucá,
Cândido Vaccarezza, do PT, foi destituído de suas funções na Câmara, num lance
duplo transmitido como gesto de autoridade de Dilma. Debelada a crise, se assim
o for, retorna o jogo do fisiologismo. “Temos um sistema que facilita a
negociação em torno de vantagens e de poder, e parlamentares e partidos aceitam
fazer parte desse jogo”, afirmou à JC/CBN Marco Aurélio Nogueira.
O PMDB, que sempre reclama, mesmo quando “repudia”, já havia
se queixado da “gula” do PT por cargos, que estaria ameaçando a fidelidade da
base aliada. Como se o PMDB não estivesse sempre lá, desde Sarney, abocanhando
fatias generosas do orçamento e dando a sua contribuição inestimável para os
maus serviços da máquina federal. Em artigo publicado no jornal O Estado de São
Paulo, o historiador Marco Antonio Villa chamou atenção para o fato de que a
disputa fisiológica escancarada, do primeiro escalão até as empresas estatais,
é cada vez mais considerada natural. Mas a banalização pode cair diante dos
problemas na economia, que “não está mais sustentando o presidencialismo de
transação”.
Ao se admitir com tanta naturalidade o fisiologismo como
elemento democrático, permite-se o alargamento ético que descamba na degeneração
da própria democracia. E se embarca no relativismo que não vê com estranheza os
movimentos torpes de uma democracia fisiológica.
(Editorial do Jornal do Commercio/PE, 17/03/2012)
Foto: Roberto Stuckert Filho/PR