A cena é tá chocante que a sua concepção não se sustenta por
mais do que alguns segundos. A imaginação não demora a afastar a visualição
mental, e é difícil aceitar a notícia como realidade. Que dirá pela segunda
vez. Na Índia, pouco depois da vida perdida da estudante de Nova Déli, em
decorrência de estupro por seis homens dentro de um ônibus, novo caso
semelhante voltou a questionar o país acerca de seus valores. Pelo menos não
houve vítima fatal (como se ouvissem a frase infeliz de Paulo Maluf, que
declarou, anos atrás, em São Paulo, em tom de aconselhamento: “Estupra, mas não
mata”).
Aliás, a infelicidade verbal também assola a Índia. O guru
Asaram Bapu disse que “a tragédia não teria acontecido se ela tivesse evocado o
nome de Deus e caído aos pés de seus agressores, chamando-os de irmãos e
implorando para que parassem”. É ainda mais difícil acreditar nos estupradores
recuando, tementes, depois que a menina de 23 anos de idade se prostrasse a
seus pés – pedindo perdão, quem sabe, por ter-lhes despertado o desejo?! E
ainda emendou, não satisfeito, Bapu: “Um erro nunca é cometido apenas de um
lado”.
Além de expor à luz da mídia a ignorância que se disfarça no
dogma, o guru trouxe à tona a raiz do ato violento: a tradição milenar de
desprezo e discriminação das mulheres. O estupro não pode ser crime quando a
mulher é, por princípio, a criminosa: pecadora, bruxa, tentação, demônio a ser
dominado e incessantemente punido. Para muitas pessoas, e não somente na Ásia, um
estupro pode ter como causa simplesmente o fato de a mulher usar saia,
trabalhar com homens ou se portar de maneira ocidentalizada, seja o que isso
signifique. Em locais próximos à capital indiana, o telefone celular – sim, o
celular – e a calça jeans são proibidos para o gênero feminino.
Embora em nossos dias horrorize a audiência, a barbárie contra
a mulher é o crime mais comum da história da humanidade. O processo de
libertação, deste prisma, é recente, lento e com longo percurso pela frente. No
final do século 19, o então jovem, mas já famoso escritor russo Anton Tchekhov fez
uma viagem que surpreendeu seus contemporâneos. Num trajeto de meses de desconforto
e sofrimento, foi até a ilha de Sacalina, e na volta publicou um livro de
relato sobre o que viu. Nesse relato, descreveu o encontro com o povo nativo,
os guiliaks, que se alimentavam de carne crua e encaravam a agricultura como
pecado, exibindo costumes de pelo menos centenas de anos. Para eles, segundo
Tchekhov, as mulheres eram “como se fossem objetos ou animais domésticos” e
podiam ser “expulsas, vendidas e chutadas como cachorros”. A referência ao romancista
e dramaturgo russo é emprestada de Haruki Murakami, no best-seller “1Q84”, em
que, por sua vez, a cultura machista japonesa é o pano de fundo para um dos
eixos da trama.
A notícia que chocou a Índia mostra o quanto as mulheres de
Sacalina ainda vivem – na terra do “líder espiritual” Bapu, no Japão das
gueixas, na China de Xinran – jornalista que reuniu no livro “As boas mulheres
da China” episódios de abusos e privação de direitos fundamentais em seu país. No
Brasil também resiste o comportamento dos ilhéus de Sacalina. Nada menos que
40% das brasileiras foram vítimas de algum tipo de violência doméstica, segundo
dados de 2011. Com a Lei Maria da Penha, em 2006, as denúncias têm aumentado,
mas o medo ainda faz reinar o silêncio. Como no mundo inteiro, um véu de
vergonha encobre a brutalidade e a estupidez que marcam o desrespeito à mulher.
Ilustração: expressaomulher.blogspot.com.br