4.1.09

Castelos de areia

Nesse estado alterado de consciência a realidade é o que menos importa. O mundo reduz-se a uma única visão, que consegue dar forma e cor inéditas ao mundo. A novidade desaparece com a desilusão, e com o retorno do velho cenário em preto e branco capturado pelo olhar a maior parte do tempo.

De um ponto de vista externo, o apaixonado está quase sempre enganado. Aquilo que lhe aparece não é bem o que parece, aquilo que sente não é tudo, e aquilo que diz não é só o que devia dizer. Há muito mais para notar e explorar do que supomos quando somos monotemáticos.

A restrição do significado – o universo cabe na luz de seu rosto, no som de sua voz, na presença de seu corpo – é o maior engano. O chão que some sob os nossos pés ou se apresenta como nunca antes, com tal solidez, tem o piso falso. E sabemos disso. Eis o pior. Tudo faz tanto sentido de uma hora pra outra que não pode estar certo, seria fácil demais. Seria bom demais: sem coisas incompreensíveis, sem perigos ameaçadores, sem qualquer sombra por perto.

O que não limita à mentira o objeto valorizado pela febre amorosa. O engano das paixões não as torna erros puros – assim estaríamos cometendo, aliás, o mesmo erro duas vezes (e de fato, cometemos, várias vezes). Mas se há mais do que o equívoco, é talvez porque seja algo essencial, exposto à falsificação. Algo cuja descoberta muda o mundo aceito e replicado no modo monótono da existência. Que ironia – a paixão monotemática retira a razão da monotonia...!

De onde vem, como surge e como some a essência das paixões é um mistério cujo deciframento pode não nos interessar. Basta-nos saber que a essência oculta dá-nos a graça de ser ativada e esmorecida em pontos diversos da vida.

A pressa dos apaixonados, descabida para os que espiam de longe e juram conhecer de cor o enredo farsesco, é pressa justificável. Pois é preciso se atirar à experiência da paixão, antes que a febre recue, o delírio passe, a maré avance e derrube a construção delicada, perfeita, de beleza esculpida sob medida na areia do acaso.


Amor sob medida (The best man, Inglaterra/EUA, 2005)
Direção: Stephan Schwartz
Com Seth Green, Stuart Townsend e Amy Smart.


2 comentários:

Unknown disse...

Como tudo de bom que você faz.

Salve.

Alice Sant'Anna disse...

obrigada pelo comentário, fábio!

não, não sou parente dele...