4.12.07

Livros não viram cinzas

Letras enfileiradas em palavras. Palavras encadeadas em frases. Frases agrupadas nas estrofes e parágrafos, reunidos em páginas numeradas para encadernação. Os livros são objetos construídos. Com muito suor e, quem sabe, lágrimas, os livros depois de prontos respiram como crianças, e falam como anciãos. Pois um livro carrega o frescor da infância e a sabedoria dos mais velhos – concentrando a vida do autor, que não passa de “um lugar em que o tempo existe”, segundo José Saramago.

Queimar livros, portanto, é querer destruir a memória viva de uma época. Cada época com seu estilo, filosofia, anseios, heresias e visionários, possui nas obras dos antepassados a representação de trilhas tomadas ou ignoradas. Queimar livros é tentar atalhar o futuro ou impedi-lo, como se na disjunção das palavras esfumaçadas fosse desfeita a história que levou aos homens e mulheres que escreveram os livros.

A realidade, lembrando Borges, é um livro de areia com páginas infinitas, onde nenhuma página pode ser lida duas vezes. “Mas o nosso dever é edificar como se fora pedra a areia…”, sugeriu o argentino que, mesmo depois de cego, continuou preenchendo os cômodos de casa com livros. Para Borges, ateu, o livro era um objeto sagrado.

Para escapar da areia que não podemos apreender, lemos bíblias, enciclopédias, ensaios filosóficos, peças literárias. Jornais, revistas e blogs. Para ter o prazer ou a ilusão de carregar nas mãos um punhado dessa areia (in)formadora do real.

Na areia movediça da ignorância, em pleno deserto de intolerância, religiosos, nazistas, feministas – e até uma associação de pais ingleses preocupados com estórias infantis de final triste – tentaram rechaçar o perigo contido em letras embaralhadas com sentido pela razão literária.

Em vão. Livros não viram cinzas. Religiosos, nazistas, fascistas, pais zelosos, todos voltaremos a ser parte do livro de areia borgeano – queiramos ou não.

O que ficará de nós, enquanto o tempo existir em algum lugar, talvez se ache nas letras encadeadas... em frases agrupadas... nas páginas do universo que construirmos.


Fahrenheit 451 (Inglaterra, 1966)
Direção:
François Truffaut
Baseado no livro de Ray Bradbury.
Com Julie Christie e Oskar Werner.


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