
É possível a acolhida após o abandono, se já não tiver havido o aceite tácito, prévio, típico do ato de se doar. Claro, a aceitação está, antes, no pertencido – solitário agregado ao coletivo – do que no meio (hostil) em que se vê o abandonado.
A identificação é forma de superar a solidão vinculada ao abandono. Pressuposta a rejeição, porque a primeira aceitação – de doação – sequer foi suposta. O enjeitado não se enxerga pertencido, pois, de partida, não se pertenceu. E a rejeição que já se encontra na ida, repete-se na volta.
Mas não provindo de escolha ou azar, como se doar e lograr tal pertencimento? Talvez não haja resposta ao que não traz receita. O ambiente externo, sociável, é refratário ao esforço notório de integração. Um músculo em flagrante incômodo, uma idéia deslocada, uma locução sem destino, são captados instantaneamente pelo grupo – e pelo próprio sujeito que não se oculta em seu descolamento.
Ser do outro é fato sem esforço. Movimentos espontâneos de entrega e comunhão não acarretam incômodos, dores e abalos sísmicos. Um desejo simples não degenera em neurose, por logo realizar-se, e se realizar em moto contínuo. Ser do outro é como uma conversa entre iguais.
Se for entre estranhos, o encaixe não se disfarça, não dura. O encaixe falseado vai se mostrar inadequado quando o esforço subir à superfície do encontro forçado. E como acontece! A “arte do encontro” prima pelo desencontro por causa dos nossos tantos despertencimentos. Seguimos nos conhecendo e nos estranhando, conhecendo e estranhando o despertencimento alheio.
Isso não tem a ver com se adaptar ou não, numa luta heróica ou comum, poética ou anônima pela diferença. Ser do outro é compensação, prêmio de consolação que dá um pouco de conforto ao corpo, de sentido ao pensamento, de finalidade ao discurso proferido. Ao menos por algum tempo.
O que pode ser um verdadeiro alento para a sensação compartilhada, em todos os grupos, de não pertencermos a nós mesmos.
Zelig (EUA, 1983)
Direção: Woody Allen
Com Woody Allen e Mia Farrow.