7.8.09

Teatro do absurdo

Com o sonho de virar protagonistas da história nacional, jovens chineses levam o entusiasmo de um grupo de teatro universitário para o movimento de resistência contra a ocupação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. A glória quente do aplauso é descartada em favor da expectativa pelo julgamento frio, a glória póstuma, porém duradoura, da História com “h” maiúsculo.

O fingimento artisticamente praticado desce o tablado para ganhar o lado de fora. A arte do ator deixa de ser um episódio cercado de rituais, transformando-se em instrumento de um ideal, a serviço da lógica da força máxima contra o inimigo. Assim, a causa do aniquilamento do outro, do assassinato brutal em nome do bem comum, é o desfecho esperado, ainda que adiado, em cada encenação.

A espiã disfarçada que se aproxima do alvo para atacá-lo, apaixonando-se e se deixando apaixonar por quem odeia, não faz uso da artimanha impunemente. O conflito a persegue. O sentimento simulado perde terreno. Uma nova gama de emoções aflora, advinda de reações imprevistas aos atos pré-programados.

Ao empurrar a verdade para a fogueira, a mentira também se queima. Se a aparência maquinada precisa ser perfeita para que a armadilha funcione, sob as cinzas do fingir constante, toda aparência é mentirosa. E a própria habilidade de ver, submetida à vontade de mentir, mal distingue um palmo adiante do nariz.

Tal ruptura entre a arte e a vida, aberta com violência de modo a permitir a infusão de uma na outra, feito matérias distintas, pode deixar em estilhaços a imagem que o sujeito tem do mundo e de si. Quanto mais fundo o mergulho na aparência criada, maior fica a distância entre a identidade e a falsificação dela.

Basta desconfiar de um fingimento e a realidade se desfoca: cada ponto refletido pelo avesso revela superfície opaca, de luz ausente. Na novela Um, nenhum, cem mil, Luigi Pirandello escreveu:

“Quando me punha diante de um espelho, acontecia uma espécie de sequestro em mim, toda espontaneidade acabava, cada gesto meu me parecia fictício ou postiço. Eu não podia me ver vivendo.”

Esse auto-sequestro decorreria da visão inesperada do hábito invisível que nos ata. Imagine o exercício fatigante de agir como se estivesse sobre um palco, sem palco; defronte ao espelho, sem espelho. Não apenas cada gesto seria acompanhado como se fosse ficção, mas o próprio pensamento, a fim de se passar por verdade, assumiria a condição de pensamento postiço de um personagem em ação.

Desejo e perigo (Lust, caution, China/EUA, 2007)
Direção: Ang Lee.
Com Tang Wei e Tony Leung.





Um comentário:

RENATO SILVEIRA disse...

Não só um belo texto, mas um belo blog. Curti muito teu estilo de escrita, Fábio. Voltarei!

[]s.