25.10.09

Relógio romântico




A viagem no tempo é atraente porque esconde uma fantasia nem sempre confessável: a de estar em dois lugares simultaneamente. De preferência, pontos opostos, cuja existência paralela implique na possibilidade de fuga, abrindo um túnel no universo linear marcado pelo relógio humano e permitindo a escolha ambígua, imprecisa, provisória, uma vez que a qualquer momento o momento pode ser outro, não sendo o presente garantia de nada.

Nessa perspectiva, surge a mesma imagem em espelhos justapostos, criando reflexos ligeiramente fora de sintonia. Você pode se encontrar com a paixão de sua vida ainda criança, e preparar o terreno para a confirmação do destino. Pode estar diante de si com uma diferença de décadas de idade, e dar conselhos valiosos para si mesmo. Pode ver o futuro e o passado enquanto perde o compasso da hora – e como é uma espécie de lei das viagens no tempo que aquilo que está escrito necessariamente se cumpre, você não pode mudar nada enquanto viaja, não há o que fazer, a não ser conformar-se com o irreversível, o inexorável.

No fim das contas, o viajante do tempo parece condenado a um ir e vir sem sentido. A fuga é um poder que não compensa. A alegria de subverter a cronometria logo sucumbe ao sofrimento de impotência na presença de fatos determinados. Uma presença duvidosa, realista e ilusória, a encher de culpa o fugitivo amedrontado. O poder sonhado se transforma em tal transtorno que pode ser retratado como doença psíquica, ou anomalia genética. Como se sair da linha do tempo fosse uma doença rara, sem cura.

Estar simplesmente presente, aqui, como escreveu Rainer Maria Rilke, é demais: sempre alguma coisa nos requisita, e de uma estranha maneira o mundo continua a nos chamar, disse o poeta, citado pela escritora Audrey Niffenegger. Esse constante chamado do mundo é uma pressão sobre os atos que ainda nem pensamos, sobre as idéias que nem descobrimos, sobre as palavras que nem ensaiamos.

E sobre o amor que mal acordamos... O tempo mais que tudo aflige os enamorados, como o demonstra o próprio Rilke neste poema:

O mundo estava no rosto da amada -
e logo converteu-se em nada, em
mundo fora do alcance, mundo-além.


Por que não o bebi quando o encontrei
no rosto amado, um mundo à mão, ali,
aroma em minha boca, eu só seu rei?


Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi.
Mas eu também estava pleno de
mundo e, bebendo, eu mesmo transbordei.


(Tradução: Augusto de Campos)

O martírio do mundo-além pode suscitar o confortável delírio determinista, que ameniza a visão apaixonada com a certeza de que o impossível, uma vez tocado, será colhido, adiante, como o natural desfecho da semente brotada. Permanece, contudo, o desconforto. A sensação de plenitude contradiz o insuperável vazio, o fim da solidão é também a chegada da solidão sem fim.

Por isso estar e não estar aqui, agora, habitar e desabitar o real são faces de um conflito posto em marcha, notadamente, quando o tempo se altera, diminui, para e acelera, movido pelo mecanismo descontínuo dos relógios românticos.

Te amarei para sempre (The time traveler’s wife, EUA, 2009)
Direção: Robert Schwentke
Com Rachel McAdams e Eric Bana.
Baseado no livro de Audrey Niffenegger.

Um comentário:

RENATO SILVEIRA disse...

Belíssima reflexão, Fábio!

[]s.