4.10.09

A casa na cachoeira












Vida quieta no canto espreita intrusos, confere gavetas. Retoca gestos, reconstitui silêncios. Acostumada à banal reprise das horas – banalidade em cascata que se torna mais cara ao hábito que se cultiva.

O hábito tem o que proteger. O romantismo descoberto na infância é regado até a morte. A única exceção permitida ao rigor da vida quieta: fecha o círculo complementando a regra, sendo, na verdade, a sua melhor justificativa. A outra face da quietude, onde repousa o prazer da instabilidade por perto, raiz da alegria serena multiplicada por duas.

A costumeira presença é o álibi contra os desvios, a defesa diante de todos os males e a desculpa para a despensa de oportunidades que perturbariam a convivência, tirando as coisas do eixo. As oportunidades perdidas garantem a cumplicidade eterna, dando a impressão convicta de que a melhor oportunidade é a que resiste a todas as outras. Como um sonho pendurado na parede enquanto outro sonho se passa.

Mas a costumeira presença também bloqueia o amargor do tédio, ativando a sensação do sabor que vale a pena repetir. A silhueta no espelho não provoca cansaço algum. O mesmo reflexo conhecido, em uma infinidade de ângulos impensáveis. Assim a vontade aquietada faz-se refém satisfeita da surpresa constante, ali mesmo, dentro de casa, na companhia que não muda e não enjoa.

Até que a surpresa some. A eternidade afia os dentes, anunciando a tempestade. Um silêncio medonho desperta. A casa está solitária, a cachoeira de bons momentos, seca. Refletida univocamente, a imagem não traz a mesma graça. Bate e volta uma sombra depois do brilho ter ido embora.

Sem a dádiva junto, sobe a melancolia que nem se desconfiava, pois um manto seguro a escondia. A casa agora é previsível: tudo responde à lógica do indivíduo entregue aos seus atos e hiatos, miséria e desassossego. Para a destruição total, a demolição iminente não vem do lado de fora. Vem do lado de dentro. As fundações ruíam antes que se insinuasse a ameaça ao redor.

A casa na cachoeira é a fotomontagem de um paradoxo. Paz à beira do abismo, vertigem a um passo da poltrona da sala. A casa real tem que voar até a cachoeira imaginária. A casa ideal, fora do chão, sem a raiz que a suportava, pode enfim ser levada para o lugar onde mora o sonho, no despenhadeiro da memória.


Up – Altas aventuras (Up, EUA, 2009)
Direção: Pete Docter
Animação.

Nenhum comentário: