31.1.08

Mundos de multidões

Cidades aglomeram gente. Multidões habitam cidades. Transitam para todo lado, entupindo veias urbanas – fazendo circular nelas o trabalho (energia) que sustenta, alimenta e amplia toda cidade. Sustenta, alimenta e cria mais gente.

As multidões já levaram, nas faces misturadas, nos ombros e braços multiplicados, alguma utopia. Esperança e poesia. Sob a visão de Baudelaire, por exemplo, as multidões revelavam a cumplicidade possível dos estranhos, que em seu passo difuso buscavam a felicidade ideal de um destino só.

O anonimato entre muitos teria uma aura de força originada no indivíduo que seria tão mais valioso quanto mais solitário... Desde que se deslocasse na horda, e se confundisse com a replicação de si mesmo e seus desejos, temores, capacidades e limites comuns.

Em suas “Cartas a Milena”, Kafka faz referência à contemplação de multidões que “gritam e se dispersam” na rua, sob a mira de baionetas. E lamenta, em mais um lance de autocomiseração, a sua condição, que é a de “imunda vergonha de viver constantemente protegido”. Vê-se claramente o desejo de participação, no solitário envergonhado (des)mascarado pela multidão.

Será que hoje resta alguma culpa na vontade de proteção? É de se perguntar até que ponto as multidões ainda representam a utopia. Pois habitam todas as ilhas. Falta espaço até na imaginação. Mundos imaginados? Mundos de multidões.

O cenário virtual de uma megalópole vazia passa a valer ambiguamente, pesadelo e sonho de indivíduos acossados, ameaçados por multidões.

Pesadelo, uma vez que a cidade estampa vestígios do ideal civilizatório que o ser urbano abraça como “natural”: a vida é melhor no meio de tanta gente porque com tanta gente em volta a vida parece melhor.

No entanto, eis o sonho, contra a maré, enaltecido de viés na obra de ficção para o consumo de... multidões. Eis o sonho, reinante nos lugares apinhados que se arejam, tornando-se mais “habitáveis” (note-se a contradição) nos feriados prolongados, como em dias de Carnaval.

A concentração de pessoas, de cura coletiva, passou a signo de doença. Entre as mais conhecidas, estão a Síndrome do Pânico, cujo gatilho pode disparar na multidão, ou na perspectiva dela (como numa fila de banco, como contou o escritor Mário Prata), e a Fobia Social, manifestada no cumprimento de atividades cotidianas acompanhadas pelo olhar do outro.

O outro é mais que invasor da privacidade, em uma época de olhos onipresentes. O Big Brother original, de Orwell, foi ultrapassado: o medo da vigilância estatal foi trocado pela exposição de todos a todos, no tropeço de olhares de uns nos demais. “Você não perde por espiar”, repete Pedro Bial. E por ser espiado ininterruptamente, quem ganha? O que se ganha? Além da promessa de fama, seja lá o que for essa fama para os espiados.

Também os mundos virtuais são repletos de multidões, no encalço do indivíduo que busca livrar-se delas no real. Agora são os indivíduos que “gritam e se dispersam” sob a mira das multidões.

Um senso perdido de proteção fica à mostra, como uma carência perturbada na presença maciça de estranhos que não são mais a melhor companhia. O grande problema é que somos a companhia indesejada de outro. Somos os estranhos de uma qualquer multidão. A separação se esgarça, contudo, tampouco a união resiste.

Se indivíduos precisam de indivíduos, mas a certa distância, que mundos formaremos, nós, as multidões?


Eu sou a lenda (I am legend, EUA, 2007)
Direção: Francis Lawrence
Com Will Smith e Alice Braga.

Um comentário:

Magnólia disse...

Multidão!

um titulo que Antonio Negri aborda em seu livro de mesmo nome...

interesente o texto!

Boa "alienação" de carnaval!

Ps¹: to sem net...
Ps²: O blog ta add!

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