11.9.06

Explosão das diferenças

A submissão é mecânica: tornamo-nos robôs quando perdemos a humanidade para virar humanóides regulados, seres que funcionam a corda feito ponteiros de um relógio. Mecanicamente, a vontade coletiva é manipulada para sufocar a vontade individual, e os mesmos que reclamam da opressão a conclamam em uníssono, suscitando o sumiço da própria voz.

As primeiras cenas de Metrópolis, de Fritz Lang, produzido há quase 90 anos, exibem o tempo marcado no relógio, a fumaça de uma chaminé, pistons e engrenagens em movimentos circulares que parecem os mesmos de operários em fila, com a mesma roupa, a cabeça baixa, os ombros caídos e conformados, os passos mortos, sem conversa, sem outro movimento que não o da lentidão das pernas. Trabalhadores que não se falam nem se encaram, como robôs de carne e osso, mostrando que a imitação do círculo impõe repetição e respeito.

Prédios altos de variadas formadas se espremem no jardim de prazeres da elite da cidade, alheia aos dissabores dos trabalhadores que põem para funcionar as grandes máquinas que dão energia para a cidade. Aviões, carros e trens suspensos entre os prédios são tão lentos, na visão de Lang, como um sistema emperrado, um modelo em decadência, pronto para se esgarçar. As portas são imensas, como as máquinas e os prédios, reforçando a desproporção que se quer passar entre o tamanho real das coisas e o tamanho simbólico das pessoas.

Formigas treinadas, os trabalhadores ficam abaixo da superfície – abaixo até do nível das máquinas, que separam os dois mundos em duas castas, quase duas raças – operando as rodas e caldeiras em um vaivém de sincronia e enfado, cujo resultado é o desfrute dos que não trabalham, lá em cima, e a exaustão física e mental dos operários.

É claro, a temperatura não pode subir, senão explodem as máquinas, explodem os ânimos, explode Metrópolis. Será que não seria melhor deixar explodir, por acidente, a máquina que, literal, tritura gente? A fumaça está por toda parte, no caos da caldeira de operários zumbis, corpos sem vida carregando corpos mortos... E na miragem da sociedade perfeita, onde todos são irmãos, com mais semelhanças que diferenças, com mais união que desavenças.

De um olhar diferente surge a identidade – do olhar, talvez, de quem se julgava diferente. O filho do ditador do lugar toma consciência da separação radical entre os níveis da cidade, descobrindo a segregação social, quando se apaixona pela filha de um operário. Maria é o objeto da paixão de um e da esperança de muitos. Ela, que acende a rebeldia no filho do tirano, é a líder dos operários rebeldes que se reúnem nas antigas catacumbas de Metrópolis.


Maria e seu herói lutam contra a ordem – da autoridade e da mecani-cidade. A manipulação dos ponteiros de um relógio-engrenagem (pra variar, maior que um homem) representa a relação humana com, ou contra, a máquina: alguém tem que ficar na máquina, pensar por ela, comandá-la, e assim a máquina garante o mundo do homem.

Falta construir o homem-máquina. E este é o sonho do inventor da cidade, “uma máquina à imagem do homem, que nunca se cansa nem comete erros”, tornando os trabalhadores desnecessários, peças obsoletas da cidade-máquina. Os “trabalhadores do futuro” serão robôs talhados para operações perfeitas, aptos a receber instruções sem risco de insurreição. Na distopia de Fritz Lang, os robôs são cópias de gente – antecipações de Ets ou de clones no imaginário da ficção científica. É curioso notar como, no início do século passado, uma profusão de lâmpadas, raios elétricos, líquidos borbulhantes, válvulas e cabos compõem o cenário da tecnologia de ponta de Metrópolis.

Em toda luta pelas diferenças, explodem contradições. Se os trabalhadores destruírem as máquinas, será que o mundo justo se refaz? Será que inexistiam injustiças antes das máquinas? No filme, a luta de classes se confunde com a luta contra a máquina, como se a máquina não fosse fruto do próprio homem. Até que ponto a máquina é o tirano atrás dela? E em que medida os conflitos se resolvem, depois que a multidão represada sai do controle e se transforma em enchente de gente?

Metrópolis não traz respostas, expõe fronteiras. Se a sociedade mais técnica pode ser a mais desigual, a mera aniquilação das máquinas poderia ser também autodestruição – num erro do mesmo porte de quem imagina que a técnica, um dia, irá substituir o homem.


Metropolis
Alemanha, 1927, P&B (restaurado em formato digital em 2001)
Direção: Fritz Lang
Roteiro baseado no romance de Thea von Harbou

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