11.9.06

O zunido da eternidade

Na aurora do mundo, a vida está à espreita – e na aurora da vida, a consciência se insinua. Pela retrospectiva lente da razão, os primórdios escondem indícios do futuro, e o futuro abriga, nas ruínas, as raízes do passado distante. Entre dois longínquos instantes, a sentinela do tempo é testemunha de uma história muito mais longa e abrangente que a história humana, cujo mistério insondável não pode o homem, sequer, imaginar desvelar.

O que não significa dizer que não possamos sublimar os limites e pôr a imaginação para brincar diante do mistério. Foi o que fizeram, primeiro, o escritor Arthur C. Clarke, e depois, o diretor Stanley Kubrick, com a obra-prima de ficção científica 2001: Uma Odisséia no Espaço.

Lançado em 1968, em plena corrida espacial que marcou a disputa pela hegemonia na Terra entre soviéticos e norte-americanos, o filme, apesar deste enquadramento, sobrevive à datação. Seu impacto sobre o imaginário do cinema atravessa gerações. Décadas mais tarde, adolescentes se mostraram – e se mostram – tão empolgados pela obra quanto seus pais.

Isto se deve, em parte, ao fato de Kubrick ter escolhido com maestria os símbolos e o acompanhamento estético das cenas adaptadas do livro de Clarke. É difícil acreditar, por exemplo, que as composições Assim falou Zaratustra e Danúbio Azul, não tenham sido feitas especialmente para o filme! O casamento perfeito entre imagem e trilha confere tal identidade e tal unidade que, ao ouvir essas músicas, pensamos logo no primata que descobre o raciocínio quebrando ossos; e na nave que vai em direção à estação circular trazendo dentro de si aquela canetinha a passear no vácuo. As cenas antológicas, e suas trilhas de luxo, são das mais belas expressões já concebidas para o balé da inteligência humana.

Por sua vez, o monólito negro carrega um zunido que é o próprio som da eternidade. No centro de macacos em alvoroço, o bloco geometricamente polido destoa do cenário de começo dos tempos e nos manda direto para o futuro, em que seria possível qualquer artefato de igual natureza.

No fundo de escavação na Lua, para o espanto de astronautas ciosos de sua capacidade de exploração do cosmo, o monólito nos joga de volta para “nossos antepassados esquecidos” – na expressão de Carl Sagan – e para uma época imemorial, fora do controle da espécie humana. Por isso o seu zunido é o zunido da eternidade.

Outro som característico deste clássico é a voz do computador HAL 9000, dona de “personalidade” que passa do servilismo à rebeldia, e se transforma na virtual encarnação, por assim dizer, das desconfianças e receios sociais em relação à tecnologia. E HAL encarna apropriadamente o mito tecnofóbico tão copiado pelo cinema, de que quanto maior o avanço, maiores a insegurança e o medo.

Porém o computador amotinado não destrói o ideal de racionalidade que põe 2001 na linha de frente de qualquer ilustração da odisséia do conhecimento. O ideal da técnica a serviço do homem, mesmo contraposto à vertigem do abismo negro e vasto fora das fronteiras terrestres, permanece no horizonte, quase 40 anos depois.

A odisséia no espaço de Kubrick e Arthur Clarke é uma viagem no tempo. E que junta, pelo caminho, as conquistas da ciência e as perguntas fundamentais da filosofia – que não se opõem em desalinho, mas se contrapõem em harmonia, como as notas musicais ou as cores e traços de autêntica obra de arte.


2001: Uma Odisséia no Espaço
Diretor: Stanley Kubrick (1968)
Roteiro: Arthur C. Clarke
Elenco: Keir Dullea, Gary Lockwood, William Sylvester, Daniel Richter, Leonard Rossiter, Margaret Tyzack.
Duração: 139 min (148 min na coleção Stanley Kubrick de DVD).

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