18.9.06

A família e o indivíduo


Em cartaz - O indivíduo que sacrifica a convivência familiar para “vencer na vida”, e a estabilidade da família que depende do sacrifício de sonhos individuais, são os pólos de um conflito, em aparência, sem solução. Mas este é um conflito real? É impossível que ambos floresçam simultaneamente?

Taí uma equação difícil de resolver, se virar um cabo-de-guerra onde palavras como “renúncia” e “dedicação” soem como argumentos absolutos, fechados a outros pontos de vista. Por outro lado, se esquecermos a oposição alegada e buscarmos a verdadeira natureza da distância que pode ser formada, chegaremos talvez a algum lugar.

Aliás, no esquecimento voluntário está a chave de muitas angústias. Esquecer é necessário, e é por isso que “esquecemos” as nossas funções vitais, e o coração bombeia sangue para os pulmões sem que tenhamos que dar ordens constantes de batimento e circulação.

Nem sempre é possível: um esforço danado é requerido para não lembrar de sentimentos que nos embalam à noite (ou nos roubam o sono). Para alguns filósofos, o domínio das paixões devia passar pelo esquecimento de seu objeto, ao menos por um momento. Assim como a consciência se desliga do corpo para deixá-lo funcionar, o corpo tem que se desligar dos neurônios em caos – que se atiram para todos os lados, em apaixonadas sinapses – para manter o equilíbrio mínimo que lhe confere saúde. Ainda que o modelo da mente e do corpo sãos imunizados contra os picos da paixão não seja um modelo ideal para a vida real a milhas e milhas da filosofia...

De todo modo, o indivíduo assoberbado pelo trabalho que “se esquece” da mulher e dos filhos é um tema recorrente na cultura competitiva que ressalta o mérito pessoal. De poucas décadas para cá, a chamada liberação feminina equiparou a “demência” ditada pelo mercado profissional, e as mulheres têm sido acusadas do mesmo pecado por companheiros e filhos deixados em segundo plano. Foi-se a época em que as mulheres ficavam em casa, reclusas, feito prisioneiras sociais, enquanto os homens investiam impunemente em suas carreiras, para “o bem da família”.

Trata-se, em grande medida, além de um fenômeno perceptível de mudança social e moral – pois os indivíduos não possuem mais, em relação à família, as obrigações morais inescapáveis que forçavam a anulação da personalidade em detrimento da criação dos filhos e da manutenção do lar – também de um mito moderno que tem tudo para ser melhor compreendido no século 21.

Na vida cada vez mais repleta de escolhas pelo caminho, mesmo que nos viesse às mãos um controle remoto universal, que permitisse saltar intervalos desagradáveis e esperas intermináveis – como no filme Click – a liberdade de que dispomos não nos eximiria de qualquer responsabilidade.

Os dilemas envolvendo a separação virtual, radical, entre a vida pessoal e a vida profissional, são invocados, muitas vezes, como desculpas para ausências, frustrações e omissões de toda monta, que detêm quase nada do rescaldo de uma cultura dominante em gerações anteriores: o que os nossos pais e avós jogavam para baixo do tapete, temos a possibilidade de pôr em pratos bem limpos – e se não o fazemos, por que a culpa não seria nossa?

O esquecimento dos desejos, hoje, é tão absurdo quanto a lembrança artificial, onipresente, de forçosa obrigação relativa à satisfação plena de uns graças ao sacrifício mortal de outros.

Click (EUA, 2006)
Diretor: Frank Coraci
Com Adam Sandler, Kate Beckinsale e Christopher Walken

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