12.9.10

Praça vazia





No início a aventura é solitária. A descoberta de si toma o roteiro da percepção: o cheiro do ar, o som das vozes, o tato, o paladar da nutrição. Tudo é assustadoramente simples. A vida parece simples a olhos recém-chegados.

Seguir o roteiro original é seguir só até o fim. A solidão por companhia é a única certeza em uma jornada imprevista. Sem outra rota: sem alternativa. O rumo mantido traz a ilusão de que se conhece o caminho. Assim é que cada um se integra à multidão, multidão que mal se nota por causa dessa integração, que reveste a solidão em várias faces.

Até que algo acontece no meio da rua. Algo que não existia, passa a existir. Como alguém que nascesse – fora de você.

No mar de gente à deriva em todo lugar, encontrar um náufrago não é difícil. O que não é fácil é sair da condição primeira que lhe põe a vagar sem destinação, acatar um destino vinculado à imprecisão de rota alheia, que não a sua.

Quando se diz que uma pessoa “saiu de si”, é porque está fora do prumo, descontrolada. Quando você se apaixona, é o que acontece. Você perde o controle, descarrilha. A paixão faz sair de si, provoca um descentramento. Viagem fora do corpo, atrás dos segredos de outra alma, por dentro e por fora de outro corpo.

Você sempre preferiu fugir. Você fugiu do lugar em que “as coisas são sempre as mesmas” – em casa, o lugar de origem, a vizinhança familiar – para criar o seu próprio lugar de imutabilidades. Enquanto permanece só, alimenta a ideia de que a rotina de família não o contém. Mas quando a solidão é quebrada, não tarda a ver a ameaça do lar arquetípico a rondá-lo, prestes a atirá-lo num poço de areia movediça.

Você não frequenta casamentos. As cerimônias, diz, deixam-no claustrofóbico. Qual a claustrofobia das cerimônias, senão aquela do que se impõe como escolha e, estranhamente, como destino do qual não há saída? O sufocamento e a sensação de estar numa prisão, que lhe afastam das cerimônias dos outros, servem de barreira para o caso improvável de sua sedução pelo infortúnio. Por isso você nunca irá se casar – para continuar livre. Não lhe ocorre que podem não ser, todos os elos, correntes.

Seu isolamento é visto como parte de sua força. Você habitaria o silêncio dos fortes, que não largam dúvidas pela estrada, rastros de sentimentos. Você se expressa pouco e mal. Aparenta não ter aprendido a sofrer, como se não tivesse sofrido. Acuado pela novidade, você chega a ser rude.

Você, que se enfurnava no quarto quando criança, preferiu morar longe de casa, perto da multidão – e agora faz parte dela, e isso lhe faz tão bem quanto antes, na infância, fechado em seu mundo, entocado no quarto. Hoje se entoca na rua, na boate, no shopping, no bar e no trabalho, intocado e intocável a qualquer hora.

Então você topa com alguém que olha diretamente pra você, no meio da turba, sem dar pinta de ligar para o disfarce ou o medo. Ela sorri de tudo e se mantém ao seu lado, mesmo quando está ausente. Ela toma seus braços enquanto caminham, finge não vê-lo tropeçando. Ela merece um jardim inteiro de cores floridas a cada sorriso que dá... e ela sorri tanto! E para seu espanto, ela não demonstra o menor esforço. Para ela, acompanhá-lo é natural feito respirar. A coragem que falta em você, nela sobra: a coragem de se entregar.

O problema é que ela não faz nenhum sentido. Ela é dádiva abandonada numa praça vazia – e a praça é você. Ao lado dela, você jamais sentiu-se tão bem. Por que a projeção desse estado antecipa uma duração de dor? Ela é incompreensível dentro do vazio que você montou pra você. A construção de uma vida inteira não ruiria facilmente. Nem com ela. Quando ela recosta em seus ombros, você pensa quase instantaneamente que está errado.

Ainda que tê-la presente fosse presenciar espetáculo incessante de poesia e beleza. Rapidamente ela passara a fazer parte de sua vida. A principal parte, mais importante e urgente do que tudo mais. Ela era o que você temia? Você não tem como saber. Antes de ir além, de prosseguir naquele êxtase inexplicado até o limite, antes mesmo de sequer tentar, você achou que não suportava.

Um pensamento claro lhe ilumina, “Não quero ser parte da vida de ninguém, nem que ninguém seja parte da minha”. O pensamento obscuro lhe cega. A razão supostamente de escudo, a paixão é convidada a ir embora. A razão é mera desculpa. No fundo, o que o guia no freio da desistência é um sentimento mais profundo de desamparo, que lhe atiça e lhe queima desde cedo.

Depois que ela se vai você se dá conta da merda que fez – ou que não fez. Servir-se do consolo da história que passa, reduzi-la a um episódio único, obviamente não lhe ajuda em nada.

Você aprende da pior maneira que encerrar-se em manias e rotinas, fazer-se refém de preconceitos, é perder tempo, desperdiçar chances para o inusitado, a virada, a mudança.

A aventura, pra você, é uma aventura empobrecida.



Issiz Adam (Turquia, 2008)
Direção: Çagan Irmak
Com Melis Birkan e Cemal Hunal.


 
 
 
 

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