21.4.08

A respiração profunda

Técnica para enfrentar desafios, estratégia para recuperar o controle, sinal de transigência com o passado, de atenção ao presente, de confiança no futuro. A respiração modula o organismo e coordena o tráfego por onde flui ou estanca a vida, das vísceras ao raciocínio. Dizem que um segredo dos mestres é a virtude respiratória. Paciência de respirar uma respiração virtuosa.

Também revela o desgosto, manifesto instinto de desagrado ao que se acha sem reparo. A respiração do desapontamento, liberando o ar que não presta para o lado de fora, renovando o oxigênio puxado pelos pulmões. A respiração do desalento, da melancolia. Da impaciência comum. E do luto, em busca de novos ares.

Respirar fundo e mergulhar. A provisão de ar como prelúdio. Antes de um passo mais longo, do movimento progressivo, antes do inevitável – quando se pode prever o próprio espanto, mesmo se é difícil conceber o susto. O mergulho é um salto para o esperado tanto quanto para o desconhecido. O inesperado também demanda preparação, e a boa respiração favorece a sorte, assim como o descompasso no ar inalado produz paralisia.

A demora na libertação vem do ar viciado. O ambiente inspirado é uma das causas de aprisionamento. A imobilidade começa pelo peso da atmosfera. A pressão dificulta a respiração, e a respiração carregada faz o real ficar mais pesado, de volta. Respirar melhor alivia, conduzindo o pensamento e o corpo às condições propícias à libertação.

Mas que liberdade procura quem se aproveita do ar limpo como da verdade, apenas para encobrir a mentira? A verdade é a mentira, a mentira é a liberdade na respiração desencontrada.

A mentira dissimulada no vento posto em rotação pelos que mentem é dita, primeiro, ao entrar e sair pelo nariz com naturalidade – ou ser denunciada. A brincadeira, a mágica, a crendice, a crença, aproveitam o clima cúmplice suspenso para satisfazer o desejo de ilusão.

Numa dança de passos previsíveis, a sincronia aumenta na medida da imprevisibilidade. A sincronia é a redescoberta da respiração, não mais truque repetido, e sim, o próprio ar que se renova – como mergulho livre em um rio que passa.


Atos que desafiam a morte (Death defying acts, Inglaterra/Austrália, 2007)
Direção: Gillian Armstrong.
Com Guy Pearce, Catherine Zeta-Jones e Saoirse Ronan.


6.4.08

A fadiga das paixões

O prazer protege no deserto. Mas a proteção tem seu preço, como um êxtase silenciado, uma dor camuflada na vastidão embriagante, no frio noturno, no hábito do deserto.

Hábito de contrastes e choques, das profundezas de uma mente ofuscada à superfície estendida à vista. Desde o início da travessia a estranheza é patente, os choques chegam a cada passo. Nenhum é maior que aquele, compreendido aos poucos, de ter sido largado, ter nascido, existir em pleno deserto.

Eis que um brilho concentrado pede atenção, a luz inteira de cima e do chão num ponto especular distante. O espelho se aproxima, sussurra palavras indizíveis. Compartilhado o silêncio, o deserto é um palco de grandes paixões, em cuja amplidão se revezam o gozo e o conforto, o instante e a duração. Tem-se até a impressão notável de se ver ali o ensaio de espetáculo anunciado, como se antes dos atos propriamente ditos soprassem prenúncios do porvir.

A visão do ensaio quer se prolongar indefinidamente, feito areia se deslocando em mar seco. Então o prazer se prolonga – mas também o desespero. O silêncio dividido corre para trás, vira silêncio pulverizado, assobio cortante do areal sem identidade, assobio de vento que não estanca.

Então o deserto se dirige a todos os lados proveniente de uma direção só. Há uma fonte da qual brota o deserto. Na fonte o deserto é sereno, ínfimo grão de areia em invisível semente de turbulência. Fonte do prazer intuído, e da ausência da espera, do fim da expectativa... Fonte de um estado de essência des-esperada prometida por santos idolatrados ou descrita por alguma vã filosofia.

A solidão desdobrada em si é a fadiga projetada noutro deserto: a fadiga das paixões, delirantes no dia escaldante, trêmulas, tão logo o sol se põe.



O céu que nos protege (The sheltering sky, Inglaterra/Itália, 1990)
Direção: Bernardo Bertolucci.
Com Debra Winger e John Malkovich.


17.2.08

Despertencimento

Pertencer ao lado de fora não é escolha mercê de ponderação, ou estrito lance de azar. De todo jeito não é fácil. Pertencimento implica em doação, na melhor hipótese. Ou em um tipo de abandono a feras que não avançam: apenas julgam (pelo menos é o que parece ao que se acha julgado).

É possível a acolhida após o abandono, se já não tiver havido o aceite tácito, prévio, típico do ato de se doar. Claro, a aceitação está, antes, no pertencido – solitário agregado ao coletivo – do que no meio (hostil) em que se vê o abandonado.

A identificação é forma de superar a solidão vinculada ao abandono. Pressuposta a rejeição, porque a primeira aceitação – de doação – sequer foi suposta. O enjeitado não se enxerga pertencido, pois, de partida, não se pertenceu. E a rejeição que já se encontra na ida, repete-se na volta.

Mas não provindo de escolha ou azar, como se doar e lograr tal pertencimento? Talvez não haja resposta ao que não traz receita. O ambiente externo, sociável, é refratário ao esforço notório de integração. Um músculo em flagrante incômodo, uma idéia deslocada, uma locução sem destino, são captados instantaneamente pelo grupo – e pelo próprio sujeito que não se oculta em seu descolamento.

Ser do outro é fato sem esforço. Movimentos espontâneos de entrega e comunhão não acarretam incômodos, dores e abalos sísmicos. Um desejo simples não degenera em neurose, por logo realizar-se, e se realizar em moto contínuo. Ser do outro é como uma conversa entre iguais.

Se for entre estranhos, o encaixe não se disfarça, não dura. O encaixe falseado vai se mostrar inadequado quando o esforço subir à superfície do encontro forçado. E como acontece! A “arte do encontro” prima pelo desencontro por causa dos nossos tantos despertencimentos. Seguimos nos conhecendo e nos estranhando, conhecendo e estranhando o despertencimento alheio.

Isso não tem a ver com se adaptar ou não, numa luta heróica ou comum, poética ou anônima pela diferença. Ser do outro é compensação, prêmio de consolação que dá um pouco de conforto ao corpo, de sentido ao pensamento, de finalidade ao discurso proferido. Ao menos por algum tempo.

O que pode ser um verdadeiro alento para a sensação compartilhada, em todos os grupos, de não pertencermos a nós mesmos.


Zelig (EUA, 1983)
Direção: Woody Allen
Com Woody Allen e Mia Farrow.

9.2.08

Dando voltas no tempo

O resgate dos dias que virão é complicado como o dos dias sepultados. Sem se importar com o óbvio paradoxo – futuro visto é futuro alterado – a mente recorda em bloco, como se quisesse funcionar para trás e para frente, por causa da estranheza diante da natureza do tempo.

O passado é estranho como o futuro. Na memória resta a prova da vivência direta ou de indiretos instintos e tendências filtrados pela genética. A memória relata o mundo ao sujeito – e relata ao mundo um sujeito. Você é o que você lembra do mundo. Você é o que você lembra de você.

A condição aberta do vindouro, enquanto isso, depende da memória para se valer. Toda promessa é promessa “para”, toda esperança é esperança “de”. A abertura do ser pertence às contingências da lente e do foco, e não haveria abertura sem a limitação que a explora. Seria abertura para o nada, abertura vazia. Ou sujeito sem mundo, ou mundo sem sujeito: idêntica queda no abismo.

Visitar o passado é estranho como se aventurar no futuro porque sair do instante presente é quase deixar a presença física, abandonar o corpo numa viagem sem destino.

Sendo o lugar onde a vida está, o presente é o tempo consumido da razão em que o tempo existe. O centro de um relógio, ponto imutável a servir de referência para pontos eqüidistantes na circunferência que liga o antes e o depois.

Além de mera suposição – como diz a filosofia sobre a “certeza” do sol nascente no dia seguinte – o futuro é uma suposição projetada. E as projeções vêm orientadas de algum canto. O futuro é o passado projetado. Um tempo esperado, um tempo que se esperou.

Mas o passado lançado à frente pode assumir feições insatisfatórias ao que se pretende “novo”. Então a memória se trai. A recordação do “futuro” se revela, no poder presciente, inevitável circularidade – como a luz da manhã e o silêncio da noite.

Prever e lembrar, no tempo circular, são o mesmo ato com efeitos avessos: prever é lembrar pelo avesso, antecipar a lembrança sem atravessar o presente.

E pôr na memória prova suficiente de bela ou trágica profecia.


O Vidente (Next, EUA, 2007)
Direção: Lee Tamahori.
Com Nicolas Cage, Julianne Moore e Jessica Biel.
Baseado no livro “The Golden Man”, de Phillip K. Dick.


4.2.08

Rima primitiva

Quando a sintonia é regida pelo silêncio que grita no espaço entre dois, o desatino que leva corpos atraídos ao descontrole não prejudica o entendimento rápido, livre das palavras tuteladas, acostumadas ao oposto do desatino, ao controle de um.

Palavras co-geradas emanam fora do alcance individual. Palavras quase audíveis no silêncio regente, no baile de pequenos gestos de repente alçados à linguagem mais relevante. Cada verso é costurado em pares, à maneira do DNA, numa dupla hélice espiral: como se fosse o mesmo verso, o mesmo corpo, um em busca do outro, dois paralelos mergulhados no ensejo de um.

Versos conhecidos repetem-se com solene prazer, na trajetória que oculta e descerra a distância impossível de se cumprir. Versos repetidos na ilusão de vencer a separação onde os apartados vibram, percorrer por inteiro e em todos os pontos, pelo chão, pelo ar, o caminho da atração.

Assim o poema é sempre um novo arranjo de poesia que não sacia, limiar de corpos que se invadem, reservando aos invasores o retorno ao ponto de partida. Para que a sedução recomece, e o silêncio conceda novamente a sua dança.

Pode ocorrer de se baixar o descontrole dos sentidos, e um filtro profundo apure o que aflora na superfície. Ou pode ser que o grito mudo apenas surja do espanto defronte de rima rara.

O caso que for, a existência entra em êxtase por se lançar além. Na direção de alvos projetados com avidez sobre uma flecha de luz, por sua vez também um alvo móvel que brilha, mira e seduz.

O corpo se entrega à necessidade do não dito, e se dedica ao que o libera do pensamento narrado, discursivo. O desatino corpóreo é pensamento primitivo, poético. Desatino de conscientes autômatos, atirados ao que mais se parece a uma experiência breve, fora do ser.


Sexo com amor? (Brasil, 2008)
Direção: Wolf Maya
Com Carolina Dieckmann, Reynaldo Gianecchini, José Wilker, Malu Mader e Eri Johnson.


31.1.08

Mundos de multidões

Cidades aglomeram gente. Multidões habitam cidades. Transitam para todo lado, entupindo veias urbanas – fazendo circular nelas o trabalho (energia) que sustenta, alimenta e amplia toda cidade. Sustenta, alimenta e cria mais gente.

As multidões já levaram, nas faces misturadas, nos ombros e braços multiplicados, alguma utopia. Esperança e poesia. Sob a visão de Baudelaire, por exemplo, as multidões revelavam a cumplicidade possível dos estranhos, que em seu passo difuso buscavam a felicidade ideal de um destino só.

O anonimato entre muitos teria uma aura de força originada no indivíduo que seria tão mais valioso quanto mais solitário... Desde que se deslocasse na horda, e se confundisse com a replicação de si mesmo e seus desejos, temores, capacidades e limites comuns.

Em suas “Cartas a Milena”, Kafka faz referência à contemplação de multidões que “gritam e se dispersam” na rua, sob a mira de baionetas. E lamenta, em mais um lance de autocomiseração, a sua condição, que é a de “imunda vergonha de viver constantemente protegido”. Vê-se claramente o desejo de participação, no solitário envergonhado (des)mascarado pela multidão.

Será que hoje resta alguma culpa na vontade de proteção? É de se perguntar até que ponto as multidões ainda representam a utopia. Pois habitam todas as ilhas. Falta espaço até na imaginação. Mundos imaginados? Mundos de multidões.

O cenário virtual de uma megalópole vazia passa a valer ambiguamente, pesadelo e sonho de indivíduos acossados, ameaçados por multidões.

Pesadelo, uma vez que a cidade estampa vestígios do ideal civilizatório que o ser urbano abraça como “natural”: a vida é melhor no meio de tanta gente porque com tanta gente em volta a vida parece melhor.

No entanto, eis o sonho, contra a maré, enaltecido de viés na obra de ficção para o consumo de... multidões. Eis o sonho, reinante nos lugares apinhados que se arejam, tornando-se mais “habitáveis” (note-se a contradição) nos feriados prolongados, como em dias de Carnaval.

A concentração de pessoas, de cura coletiva, passou a signo de doença. Entre as mais conhecidas, estão a Síndrome do Pânico, cujo gatilho pode disparar na multidão, ou na perspectiva dela (como numa fila de banco, como contou o escritor Mário Prata), e a Fobia Social, manifestada no cumprimento de atividades cotidianas acompanhadas pelo olhar do outro.

O outro é mais que invasor da privacidade, em uma época de olhos onipresentes. O Big Brother original, de Orwell, foi ultrapassado: o medo da vigilância estatal foi trocado pela exposição de todos a todos, no tropeço de olhares de uns nos demais. “Você não perde por espiar”, repete Pedro Bial. E por ser espiado ininterruptamente, quem ganha? O que se ganha? Além da promessa de fama, seja lá o que for essa fama para os espiados.

Também os mundos virtuais são repletos de multidões, no encalço do indivíduo que busca livrar-se delas no real. Agora são os indivíduos que “gritam e se dispersam” sob a mira das multidões.

Um senso perdido de proteção fica à mostra, como uma carência perturbada na presença maciça de estranhos que não são mais a melhor companhia. O grande problema é que somos a companhia indesejada de outro. Somos os estranhos de uma qualquer multidão. A separação se esgarça, contudo, tampouco a união resiste.

Se indivíduos precisam de indivíduos, mas a certa distância, que mundos formaremos, nós, as multidões?


Eu sou a lenda (I am legend, EUA, 2007)
Direção: Francis Lawrence
Com Will Smith e Alice Braga.

25.1.08

Desenlace

Linha de luz entre reflexos, ponte a ligar dois mundos, união do que não se toca – o entrelace de olhares pode ser firme e sereno feito mãos que se entregam à primeira vez.

Entrelaces não se dão à primeira vista. Percorrem labirintos antes. Espirais infinitas vão e vêm. Invisíveis lentes ampliam o que mal aparece, e um relógio de areia restitui o tempo sem cessar. Em cima da cena, o esboço indefinido ganha contorno, eco bem repetido reforçando a orientação do sonar.

O foco da intuição percorre os detalhes atrás de informação conhecida, mesmo que nunca se tenha detectado igual aparência. O relógio de areia não dá trégua, embora pareça que o tempo não faça questão de passar.

Afinidades tropeçam nas fundações. Instabilidades ocultam os detalhes descobertos cedo, encobertos pela visão desviada. Quando é simples o que acontece, e algo se estabelece à revelia de mil perguntas, sua importância se envolve em beleza leve. O suave escolta o simples de importância sem gravidade. Se as perguntas desorientam, apagam a linha surgida, são dissipadas num sopro, retornam ao silêncio.

Se a compreensão do entrelace tem chance, é pela graça, pela poesia emanada que é fonte da atração descomplicada. No entrelace, a linha de luz vence a sombra, o simples toma o lugar da dúvida e alicerça a permanência da quietude.

Mas a quietude, se quer? Quando o desejo não se aquieta, aquilo que não se completa está disposto ao risco de outros laços e labirintos. Quando o medo não se quieta, aquilo que se completa não chega a ser desfrutado – e um precoce arrependimento recorda o eco antigo da inquietação que ficou.


Poucas e boas (Sweet and lowdown, EUA, 1999)
Direção: Woody Allen
Com Sean Penn, Samantha Morton e Uma Thurman.


17.1.08

O mergulho do corpo e da mente

Dos pequenos gestos cotidianos às decisões de severos efeitos, a cada momento construímos a realidade de acordo com as contingências e as possibilidades da liberdade que temos. Embora seja possível especular sobre milhões de mundos em dimensões paralelas, e até sobre os bilhões de mundos individuais na Terra, a realidade que nos integra é uma realidade singular, indivisível e irreversível (apesar das “viagens” dos gurus da física quântica, esmerados na divulgação do que mal sabem explicar).

Ser alguém diferente, estar em outro lugar, acalentar o sonho de uma virada radical – são desejos comuns que muitos trazem do berço. Desejos do presente para o futuro. Inquietações de um estado que não satisfaz, reunidas em torno das disposições construtivas do novo – ou das indisposições que conservam, paradoxalmente, o que sabidamente não se quer.

Mas não podemos ser diferentes do que somos, nem estar onde não estamos, por maiores que sejam os anseios que animam – ou desanimam – a alma. A singularidade que acompanha a consciência configura o real na mesma medida. Apesar de cada consciência parecer um mundo à parte, o que se tem a partir dela não é um mundo para cada consciência.

A interface entre o desejo e a condição dada, o exterior e o interior que se atira para o lado de fora, a realidade posta ao existir consciente, é o corpo. Palco dos pequenos gestos e dos severos efeitos, o corpo é a dimensão que possuímos da matéria visível no universo, e ainda nos intriga tanto quanto a misteriosa matéria escura que se esconde da vista, porque não recebe nem emite a luz.

Dentro do corpo mora a mente. Pelo corpo, a mente se lança ao mundo. O corpo encurta a mente, a mente expande o corpo: a limitação é objetiva, a expansão é virtual. A mente não é outra coisa senão corpo – ainda que seja o corpo virtual, no mundo virtualizado.

A virtualização do corpo e do mundo almeja romper a fronteira corpórea e alterar essencialmente a consciência da matéria viva. Por que a consciência depender da vida? Por que o cérebro é visceralmente importante? E o corpo, por que não ser maior, mais flexível à mente que cresce ao se deslocar no mundo?

Desde a invenção do fogo, a tecnologia se presta à fantasia. A chama do conhecimento é propícia à divagação. A fantasia, em retorno, turbina a tecnologia, com a crítica da construção de uma realidade imperfeita. A imperfeição aparece ao que mergulha na natureza.

O mergulho da mente é um mergulho para cima. O mergulho do corpo vai na descendente. A mente voa, o corpo cai. No mesmo espaço, no mesmo tempo – na única realidade, cuja face, revelada, nasce envelhecida.

O real é renovado mentalmente. O corpo, onde o real floresce, acredita no virtual poder do mergulho da mente, atrás de uma saída de emergência para o lugar que não existe.


Vanilla Sky (EUA, 2001)
Direção: Cameron Crowe
Com Tom Cruise, Penélope Cruz e Cameron Diaz.

13.1.08

Amor pensado

Favorecidos pelo acaso, costumamos chamá-lo pelo nome de sorte. A sorte é grande, continuamos, no encontro de alguém que considere a sorte recíproca. Mas às vezes a reciprocidade é tamanha que parece irreal... Neste caso, se o absurdo irrompe do acaso benevolente, aquilo que não tem sentido mais tarde será visto como inevitável. Somos assim. O que é ilógico torna-se dogma, o inconseqüente vira necessário.

Antes disso, na trajetória do caos à ordem – do impossível que acontece ao acontecido que não poderia deixar de ser – o indivíduo apaixonado que dá vez ao absurdo, e opta pelo “não” preventivo, abre uma porta à transmutação da surpresa em horror, da alegria em dor, da atração em temor.

A paixão é tempestuosa e absurda, de fato. Surge de qualquer canto, de qualquer jeito, a qualquer hora. Puro lance de sorte, propiciado pelas chances abertas na armação de condições dadas, ainda que sejam condições imponderáveis, fora de controle.

É aí que a paixão, de incontrolada, passa a condicionada por motivos além da sorte, no esforço de se remeter a culpa da paixão para o lado de fora. Encontros fortuitos lidos nas estrelas, histórias pontuadas de coincidências fabulosas, servem à tentativa de justificar a ausência de explicação convincente sobre o que se sente.

O sentimento então é aprisionado. Dogmatizado. A emoção é vítima do arbítrio, na pretensão de compreender e limitar o raio de ação emocional. A paixão fica refém do amor impossível.

E o amor impossível é refém da razão. Pois provavelmente o ceticismo, ali, não funciona. Se quem ama, não pensa, e quem pensa, não ama, a fórmula reducionista não leva em conta o efeito da sorte sobre a mente dos apaixonados.

É melhor pensar o amor e amar enquanto a paixão é livre, e libertá-la é sentir a sorte sem absurdos nem dogmas, para que o amor não seja mal pensado.

Além do mais, o pensamento que ama vai mais longe que o pensamento mal amado.



Nunca é tarde para amar (I could never be your woman, EUA, 2007)
Direção: Amy Heckerling
Com Michelle Pfeiffer e Paul Rudd.


9.1.08

Caça ao tesouro

Tesouro é o que se abriga dos olhos nas profundezas da imaginação, é celebrado sem ter sido visto, é cobiçado antes de conhecido. Um cristal ideal lapidado no tempo certo.

A informação sobre o tesouro, no entanto, é farta em minúcias. Durante a busca, o que não se sabe não importa: as lacunas que persistem são preenchidas pela expectativa, espaços propícios à fertilização curiosa.

O tesouro mantém-se alheio ao mundo, estranho ao toque, pérola distante à espera de descobrir-se... o porto perdido na ilha fora do mapa.

A lenda do tesouro se forma e se espalha na superfície, enquanto o tesouro descansa lá embaixo, à sombra silenciosa. A lenda desmente a fantasia e se desvencilha de um manto desnecessário: o tesouro é intocado e essa qualidade basta. O tesouro é selvagem, porque o tempo o torna puro, na virgindade impoluta do inédito contemplado.

A esperança da virtude acompanha a lenda. Se por um lado há pureza, de outro viceja a permanência que desafia o tempo. Pela demora pra aparecer, o tesouro também é precioso por ser tomado por algo que dura. Uma espécie de força imune ao desgaste, ou de beleza imutável.

A sua posse é improvável, pensar nela é sofrer em vão? Os aventureiros que se lançam apaixonados estão atrás da grande recompensa no final. Mas tudo que se persegue vai junto durante toda a jornada. Desde o primeiro passo, o primeiro sonho, a primeira dúvida.

Tesouro é o que se dá aos olhos após consumir a imaginação, na dádiva que surpreende. É a compreensão que renova a vontade de saber mais.

Um cristal real, exposto à experiência do mundo.



Criaturas das profundezas (Aliens of the deep, EUA, 2005)
Direção: James Cameron e Steven Quale.
Documentário no fundo do oceano com cientistas da Nasa.


30.12.07

Promessa do amor

A promessa do amor distante reduz a chance de erro enquanto protege o sonho contra a realidade. Uma chama elevada consome a paixão afastada até restarem pequenas brasas entre as cinzas da união abstrata.

Se o amor não está do lado, não está em lugar nenhum. Ou segue no mesmo barco, ou não espera na outra margem, de braços prontos pra quando o amor aportar. Então, não ir, desistir da luz que desponta longe? Nunca. Mas ir atrás de uma imagem, de um ideal, é bem diferente de encontrá-los no fim do caminho.

Embora a aventura amorosa sirva-se com fartura das trilhas da imaginação, e o coração romântico se fortaleça na plenitude de sua fraqueza – antecipando a falta que lhe traz companhia – a aventura é maior e verdadeira na troca do idealismo pelo real.

Quais as vantagens dessa troca? Para começar, o desejo deixa de ser ânsia do impossível, para se tornar o aguardado prazer que se repete. O sofrimento de existir dá vez à alegria de viver. A embriaguez do espírito é substituída pela lucidez do corpo: agora o corpo manda e o espírito obedece (quando o espírito manda, o corpo adoece).

A idolatria de um ser distante – ausente – é destroçada pelo aprendizado da companhia de um ser presente. Admirar o outro é possível, mas não mais condição de permanência ideal. A admiração não é causa, e sim, conseqüência. A presença de quem sem ama é uma dádiva que se aproveita, não uma graça alcançada.

O amor como promessa não se dilui com a proximidade, nem se faz tão concreto que perca a aura sobrenatural. Mas é fora do plano etéreo e da pureza romântica que vigoram as melhores paixões – na fruição do amor, e não, de sua impossibilidade.


Noivas (Brides, Grécia, 2004)
Direção: Pantelis Voulgaris
Com Damian Lewis e Victoria Haralabidou.


23.12.07

Simbiose

No resguardo do ser animado e posto em moto próprio resiste o tecido mágico, isolante e interativo, anteparo e continuidade do mundo. Tecido formado por células que trabalham, poros que filtram, genes perpetuados. De magia nem sempre discernível no lusco-fusco de coisas fechadas para as quais parece não surgir nada.

O estranhamento do corpo libera pensamentos metafísicos que podem ir do pânico ao nirvana. Tomado por embalagem da alma, o corpo aprisiona um ente convulsivo que não se culpa ao pretender, nos piores e melhores momentos, “sair de si”.

Diante de outras embalagens – de idêntico conteúdo? – prisioneiros e iluminados têm que “sair”. É um movimento complexo, duro de entender. Movimento involuntário, quase sempre, deixando o espírito (conteúdo) embatucado.

Porque os corpos animados em torno do nosso constituem alvo de fascínio ainda maior, extensão daquele provado pela mente ao se descobrir habitante de matéria igual: montada com os mesmos átomos, na arrumação fundadora de realidade única, no tempo comum.

A saída supõe a chegada. Encontros viram desencontros. Azar e sorte se alternam na perspectiva de indivíduos que se esbarram enquanto seus corpos existem. Neuroses e paranóias aproveitam para se instalar no intervalo, nas frestas do desencaixe, nas cicatrizes mal fechadas.

O indivíduo livre devido à solidão radical do corpo deseja o fim da solidão e a abdicação da liberdade. O indivíduo anseia por utópica simbiose. Quer dividir a matéria animada – o corpo em que vive – como divide o mundo forjado e ocupado pelo pensamento.

Mas a relação simbiótica não voga para os da mesma espécie. A necessidade do outro é indireta, complementar, apenas simbolicamente vital – ou seja, em termos humanos, necessidade concreta e indispensável. De sobrevivência? Talvez não. De comunhão das impressões que atravessam as embalagens corpóreas, certamente.



Invasores (The invasion, EUA, 2007)
Direção: Oliver Hirschbiegel
Com Nicole Kidman e Daniel Craig.

14.12.07

Aproximação

Era um drama chegar perto. Um problema sem solução, a timidez bloqueia todos os músculos, exceto o coração. Um delírio à luz do dia impede raciocinar sobre qualquer outro assunto, deixando a lucidez delirante emaranhada nos fios que podem levar o pensamento fixo ao encontro do esperado destino.

Chegar perto era um dilema. O que se deseja tanto provoca tremores de causa desconhecida. Tremores de origem incerta, deixando o corpo febril e a mente inquieta em torno de uma pergunta: a própria causa é capaz de aplacar a febre?

Era uma questão de honra, chegar perto. Nada no mundo equivale ao que emana da mais íntima intuição, que se mostra no mais perfeito reflexo do lado de fora. Como o íntimo que emana do mundo, na forma intrigantemente familiar de quem nunca se viu na vida – ou a quem o costume habitou o olhar e incentivou o olho a não querer largar. Aí não se quer permitir a aparição regredir, desaparecer, se ir – pois seria como regredir, desaparecer e se ir junto.

Era difícil chegar perto. Ainda é. O porto seguro jamais se alcança, jamais é perto o bastante. Após a primeira aproximação se percebe a necessidade de outras... Porém a distância mantida não é igual, nem é igual o gosto doce de apaixonante incerteza diante do inefável prestes a se materializar.

A doçura das distâncias quebradas reserva um sabor para cada aproximação. Cada aproximação é um drama, um dilema, e uma necessidade.

Apesar da vertigem e das dores, da embriaguez alienante, da febre e da razão que se esvai, é preciso chegar mais perto. Conviver para compreender as vertigens, as dores, a embriaguez e a febre do outro. E assim compartilhar lágrimas e sorrisos, perdas e afetos como só se consegue ao rés da intimidade do mesmo mundo.



O despertar de uma paixão (The painted veil, China/EUA, 2006)
Direção: John Curran
Com Naomi Watts e Edward Norton.
Baseado no livro de W. Somerset Maugham.


10.12.07

Fuga do presente

O esquecimento faz infinito o tempo que a lembrança vê escasso. Para esquecer não há fórmula, talvez sorte. Para lembrar, basta qualquer condição que mine a chance de se distrair da contagem regressiva.

Esquecimento não é dúvida. Duvidar da finitude de tudo é tática existencial que permite a coragem insana da guerra. Mas se a tática não funciona, a iminência do fim recorda a voracidade do tempo, a coragem é diluída na vergonha – numa bravura maior.

Bravo daquele a crer no verdadeiro presente, sem engano, sem disfarce. O presente insustentável como o ser de Milan Kundera, inadiável como a busca detalhista de Marcel Proust. O presente pede a bravura, pois nem se sustenta, nem se adia.

Como explicar a verdade de um instante que muda antes de vir e prossegue mutante até sair? Do instante que somente se cristaliza depois? Ou a urgência de um segundo que por tantos ângulos em nada difere do precedente, ou daquele que poderá ser visto em seguida?

O presente não se explica. A vida é o presente que se desenrola, breve – “infinito enquanto dure”, proclamou Vinicius de Moraes. E cada um de nós tem a sua brevidade infinita. Mesmo quando a humanidade é uma mancha visível, no horror frívolo das guerras, pertence ao indivíduo o presente dolorosamente sentido como tempo desperdiçado.

No naufrágio da loucura a salvação é o esquecimento. Na tortura de uma consciente demência, na terra arrasada de combatentes iguais, de egos quase anulados, dirigir o pensamento para longe pode significar a sobrevivência. Para longe de onde? De si, do presente.

Para os dias banais de uma vida perdida cujo retorno é celebrado em sonho. Para os braços e os olhos do amor longínquo considerado o último e maior dos prêmios. Para o aconchego mental de um deus criado à imagem e semelhança dos tementes ao tempo.


Além da linha vermelha (The thin red line, Canadá/EUA, 1998)
Direção: Terrence Malick
Com Sean Penn, Adrien Brody, John Cusack e Ben Chaplin.


4.12.07

Livros não viram cinzas

Letras enfileiradas em palavras. Palavras encadeadas em frases. Frases agrupadas nas estrofes e parágrafos, reunidos em páginas numeradas para encadernação. Os livros são objetos construídos. Com muito suor e, quem sabe, lágrimas, os livros depois de prontos respiram como crianças, e falam como anciãos. Pois um livro carrega o frescor da infância e a sabedoria dos mais velhos – concentrando a vida do autor, que não passa de “um lugar em que o tempo existe”, segundo José Saramago.

Queimar livros, portanto, é querer destruir a memória viva de uma época. Cada época com seu estilo, filosofia, anseios, heresias e visionários, possui nas obras dos antepassados a representação de trilhas tomadas ou ignoradas. Queimar livros é tentar atalhar o futuro ou impedi-lo, como se na disjunção das palavras esfumaçadas fosse desfeita a história que levou aos homens e mulheres que escreveram os livros.

A realidade, lembrando Borges, é um livro de areia com páginas infinitas, onde nenhuma página pode ser lida duas vezes. “Mas o nosso dever é edificar como se fora pedra a areia…”, sugeriu o argentino que, mesmo depois de cego, continuou preenchendo os cômodos de casa com livros. Para Borges, ateu, o livro era um objeto sagrado.

Para escapar da areia que não podemos apreender, lemos bíblias, enciclopédias, ensaios filosóficos, peças literárias. Jornais, revistas e blogs. Para ter o prazer ou a ilusão de carregar nas mãos um punhado dessa areia (in)formadora do real.

Na areia movediça da ignorância, em pleno deserto de intolerância, religiosos, nazistas, feministas – e até uma associação de pais ingleses preocupados com estórias infantis de final triste – tentaram rechaçar o perigo contido em letras embaralhadas com sentido pela razão literária.

Em vão. Livros não viram cinzas. Religiosos, nazistas, fascistas, pais zelosos, todos voltaremos a ser parte do livro de areia borgeano – queiramos ou não.

O que ficará de nós, enquanto o tempo existir em algum lugar, talvez se ache nas letras encadeadas... em frases agrupadas... nas páginas do universo que construirmos.


Fahrenheit 451 (Inglaterra, 1966)
Direção:
François Truffaut
Baseado no livro de Ray Bradbury.
Com Julie Christie e Oskar Werner.


24.11.07

Andar junto

O horizonte guarda todos os caminhos na distância e expõe cada um deles à imaginação, para que, antes, o passo se firme em terreno menos árido, menos duro, menos simples que o chão. O passo, antes, pode ser alvo de partidas sem volta, dos desvios mais improváveis, de altíssimos muros que se erguem a perder de vista.

Até que se nota uma trilha tomada, e quão pouco o pensamento contribuiu para que assim fosse. As trilhas não vêm do nada – mas dificilmente recordam a conseqüência exata de planos cumpridos, ou desenham a imagem concretizada de sonhos ou pesadelos antigos.

Os caminhos se formam no tempo, mas não é apenas no tempo que se identifica um caminho. Como escreve o ditado, sabemos que estamos numa estrada se na mesma estrada andam outros. “Dize-me com quem andas” – e logo verás onde estás.

O melhor é que a sorte pura como água não explica o destino compartilhado que traz fôlego e repouso, une trajetórias, e faz surgir no tempo laços que parecem fora dele.

Para que possa ser contada, a vida é repartida com gratas testemunhas de nossas fraquezas e de nossos bons momentos. É à luz de testemunhos duradouros que um caminho se ilumina.

A sabedoria do eremita é triste porque não é sábia a falta de alegrias divididas. Por isso há um sentido que escapa quando personagens do nosso caminho estão ausentes. Mesmo se as companhias cruciais mudam ao longo do caminho – e com freqüência esta é a regra – é através delas que enxergamos alguma lógica na maluquice da existência.


Johnny & June (Walk the line, EUA, 2005)
Direção: James Mangold
Com Joaquin Phoenix e Reese Witherspoon.


9.11.07

O banquete

“De onde vem – essa busca? A necessidade de solucionar os mistérios da vida, quando as questões mais simples sequer são respondidas? Por que estamos aqui? Que é a alma? Por que sonhamos? Talvez fosse melhor não procurar resposta alguma, não ir atrás desse desejo de saber. Mas não é assim a natureza humana. O coração humano não é assim. Não é para isso que estamos aqui. Lutamos para fazer diferença. Mudar o mundo. Sonhar com esperança. Sem saber quem encontraremos pelo caminho. Quem, entre os estranhos no mundo, vai nos dar as mãos, tocar o nosso coração, e dividir conosco a dor de tentar.”

A gente acredita no que sente. E o sentimento realimenta a crença. O amor é uma sinapse forte. Uma sinapse que se repete. Por isso a gente ama o que conhece – a sinapse forte, repetida, dá sentido ao mundo percebido, formado por milhões de sinapses por segundo.

O mundo é montado em sinapses. As sinapses encaixam as peças do mundo. A gente crê nas sinapses, que nos delineiam a realidade e fazem do mundo, pra nós, um lugar real.

Para que a realidade cresça e floresça, precisamos de sentimentos fortes – de sinapses conhecidas. O mundo pode ser feio ou bonito: depende do sentimento forjado pelas sinapses.

As ligações nas extremidades neuronais, dentro do ponto criador de universos que é o cérebro humano, não explicam, contudo, a intensa busca processada por trás dos sentidos. O desejo de saber que nos compõe é tão radical que chega a negar-se, como se não restasse outra coisa para os habitantes de uma ilha do imenso negrume povoado de incontáveis outros planetas, estrelas e astros quase invisíveis, por inalcançáveis (como a fronteira do infinito para a vida protozoária, na escala do que vemos lá fora, talvez não muito diferente da nossa).

Negar a pergunta é comum quando a resposta demora ou escapa. O mais difícil é refazer a questão de modo a torná-la nova.

Apesar de sua raiz aparente – no extracorpóreo medido pelos sentidos – tomamos o sentimento por algo profundo. O que acolhemos à flor da pele remetemos ao nosso corpo íntimo. Remetemos à essência do que chamamos humanidade.

Uma essência que ansiamos transcendente, chave possível para os enigmas que percebemos e sentimos. Para os enigmas que somos.

Em um mergulho no conhecimento do corpo íntimo, a alma – essência transcendental em nós – de repente se revela nos porões da matéria viva que, temporariamente, ocupamos. E nos assalta a convicção – ou nos revigora a fé – de que sobram respostas nesta arca: pois deve existir muito mais em nossos genes do que supõe a nossa infante biologia.

No arco mágico a unir a natureza humana à natureza sem humanos, determinismo genético à explosão cósmica, bioengenharia à física das cordas e neurociência à física quântica, a consciência do que há em volta e dentro de si encontra um vasto campo intocado à frente, com o horizonte livre em quase todas as direções.

O banquete das velhas perguntas está só começando.

Heroes – 1ª temporada (Heroes – Vol. 1, 2006)
Criação: Tim Kring
Com Hayden Panettiere, Jack Coleman, Masi Oka, Sendhil Ramamurthy.

3.11.07

Cultivo à distância

O olhar aceita um sorriso e um abismo se desfaz. A parede de vidro some quando nos damos as mãos. O círculo indevassável de cada um abre passagem ao impossível na tangência do outro, que resume o espaço, suspende o tempo e distrai o abismo que nos aparta dos mundos fora de nós.

Absurdo é ganhar o privilégio do contato e perdê-lo inexoravelmente, no emaranhado de relações fluidas da “vida líquida” de que fala o sociólogo Zygmunt Bauman: “Não há como saber, pelo menos com antecedência, se viver juntos acabará se revelando uma via de tráfego intenso ou um beco sem saída”, escreve ele.

E o que há como saber com antecedência em nossa vida líquida que a cada dia parece escorrer mais rápido à revelia das dúvidas que imploram por menos pressa em direção à última gota?

O tempo de nossas relações líquidas é entrópico: desorganiza encontros, desarmoniza até os laços natos. Em uma hora dada de sua vida, pode estar mais perto quem está mais longe, e a ausência dos presentes pode ser bem clara. O pior tipo de romantismo agradece, o pior tipo de amor, ainda que seja o melhor consolo.

O tempo, no entanto, é também antrópico – depende o seu movimento dos passos que a gente dá. “Amar se aprende amando”: o tempo passado não destrói, apenas, relações enfraquecidas com os anos. A construção é feita igualmente no tempo. Poucas são as ligações fortes, em geral nutridas desde o berço, ou mantidas intactas no percurso.

Numa época de escassez e velocidade, a água, que já foi símbolo de placidez, é metáfora da turbulência. Sensações e sentimentos fluidos são turbulentos. Precisamos redescobrir a água. Ao invés de nos atirar à correnteza, mergulhar lentamente, reencontrar a lentidão.

Para reencontrar os mundos possíveis dentro e fora do nosso. Cada encontro não tem que ser um esbarrão. Lembranças podem ser doces e longas, e não um fragmento de memória quase cego de tão veloz.

Temos medo das invasões. De entrar sem convite, receber sem vontade. Ainda assim nos estranhamos – e talvez o temor seja o próprio estranhamento. Não há jeito. Familiares se estranham, grandes amigos se estranham, pessoas íntimas se estranham. O que nos leva a buscar em desconhecidos, e no convívio breve, momentos interessantes.

Aproximar-se é invadir, afastar-se é abandonar, no leito de água corrente. No leito de água corrente, qual a melhor distância para dois? Qual a melhor para todos?

Aproximar-se sem invadir, afastar-se sem abandonar, mergulhados num mundo alheio que nos reconhece em progressão – eis o cultivo do outro que nos arranca de vez em quando da abissal condição humana.

Cultivo capaz de transformar habitantes paranóicos em um mundo sedutor.


Invasão de domicílio (Breaking and entering, Inglaterra/EUA, 2006)
Direção: Anthony Minghella
Com Juliette Binoche, Jude Law e Robin Wright Penn.

28.10.07

Poética do corpo

A dança desenha sentidos simples para quem olha e sente o que vê.

O avesso da dança é o silêncio vestido com frases que se calaram e deixaram ausente o movimento.

Almas em cárceres tão amplos que vão além do horizonte podem se dar ao luxo de negar a dança e sua potência. A cor do mundo, com freqüência, desbota diante da única forma que cambia impressões sobre as demais. Mas a escuridão reinante desfia junto se o que anima a busca some da vista. Há múmias mais vivas do que isto.

O que nos anima? Quase nada. Quase sempre um tênue reflexo. Um olhar desata o gesto invisível perdido e reposto em cada passo ou no menor esboço de mudança no rosto, de si, de alguém. Olhares se cruzam pelo caminho. O caminho das cruzes do olhar.

São as paixões dispersas no palco que contam melhor o instante, do mistério transmitido de dentro para fora, que se transcende na contramão. O instante é a eternidade, de repente real.

A poesia não precisa ser dita? Tem que ser ouvida a poesia! Ainda que vague por nanodutos frágeis para todos os lados, sem direção, em um “caniço” arrogante e inerte.

A poesia no abismo de luz ao fim do percurso é o moto perpétuo jamais pensado, indispensável, chave de um segredo encoberto pelo próprio pensamento.

No animal consciente, o exposto não se impõe fácil.

O explícito pede espelhos. Imagens imploram por palavras. E o que é dito requer o esconderijo das últimas aparições.

Matemático e belo balé que se repete.

Para a contemplação muda.

Para a narração contemplativa.

Para o amor em plena forma de poesia.


Fale com ela (Hable com ella, Espanha, 2002)
Direção: Pedro Almodóvar
Com Leonor Watling, Javier Câmara e Dario Grandinetti.

15.10.07

Estrela cadente

Um amor ideal não se realiza, assim como não se projeta um verdadeiro amor. É contraditório o espírito romântico, e o tempo só faz piorar a situação, na esperança que desespera, no silêncio do que termina.

A esperança – na linda e singela definição contida no romance A mulher de costas, de Márcia Tiburi – é um medo verde, brotado no peito dos que têm paixão. Medo que finde o nem começado, medo colado ao desejo de completude a luzir nos olhos de quem ama.

Aliás, Márcia escreve como quem filosofa, e filosofa como quem conta estórias. Durante o programa Saia Justa, do canal GNT, exibido na semana passada, ela resumiu numa sentença a mudança nas relações amorosas – transição pós-moralista, quiçá pós-romântica – que nos afeta.

Uma mulher que mora sozinha perguntou que espaço deveria reservar para o namorado em sua casa, sem perder a privacidade e o prazer da relação. Tiburi foi clara e distinta: “O seu corpo, apenas, e nada mais”.

A resposta foi ilustrativa do novo mundo amoroso que germina, a partir de um novo e bem-vindo protagonismo das mulheres. Na tradição romântica, o corpo do outro é exatamente aquilo impossível de ocupar.

Para fugir do impossível, o romântico tradicional pensava noutra coisa, e arrumava impossibilidades maiores. Marcel Proust, ao tratar da insuperável ansiedade dos apaixonados, chega a dizer que a sua busca são todos os pontos do espaço e do tempo já ocupados e ocupáveis pelo corpo da figura amada.

Daí o ciúme como extrato obrigatório da cultura do amor romântico. O ciúme é o que aparece junto com a prisão da utopia (e a utopia da prisão).

Na época pós-moralista – longe da superação do moralismo, que resiste e se reinventa, como observa Gilles Lipovetsky – o corpo é tanto a conquista quanto o limite da nova ética amorosa.

Para o sofredor romântico, o corpo do outro é menos objeto e mais imagem, menos real do que fruto de uma idealização – já que o que sobra é a fantasia, ante a ausência da concretização. Inclusive a fantasia dos ciumentos, diante do desejo impossível de talhe proustiano.

O corpo do outro, no romantismo clássico, é feito estrela cadente riscando mais a imaginação que o céu. É romantismo da alma: da essência intocada e intocável, que faz do outro um deus, e o aprisiona, em reverência e vigilância.

No romantismo que desponta, o romantismo do corpo, o amor é compartilhado por dois sujeitos autônomos, que repartem o mesmo “objeto” da paixão. A noite estrelada deixa de ser o mote para um pedido exasperado, e se torna o espelho de laços oscilantes numa miríade de possibilidades.


Stardust (Inglaterra/EUA, 2007)
Direção: Matthew Vaughn.
Com Claire Danes, Michelle Pfeifer, Robert De Niro e Charlie Cox.