22.1.12

Metafísica das rochas



Monges budistas diante da pedra sagrada, em Mianmar.


A foto de Steve McCurry está numa exposição em São Paulo, e aparece em reportagem da revista Época desta semana. O corte superior não mostra a cúpula na parte de cima, cuja descoberta tira um pouco da beleza da cena, na minha opinião: a pedra deixa de parecer um capricho da natureza, ao ganhar um chapéu esquisito e inapropriado.

A Golden Rock é local de grande peregrinação de budistas e turistas. Segundo a lenda religiosa, é sustentada por um fio de cabelo de Buda. No site do fotógrafo, integra o álbum "Faith", que abre com a lógica indefectível de São Tomás de Aquino: "Para aquele que tem fé, nenhuma explicação é necessária. Para aquele sem fé, nenhuma explicação é possível".

O equilíbrio aparentemente instável da grande pedra dourada é um deleite para os olhos e a imaginação. À luz do pôr do sol, o brilho cintilante monta o cenário para os usos e abusos da fé (o mercado da peregrinação já toma conta do lugar, com hotéis e bares ao redor da visão inusitada).

A adoração de pedras não é incomum no Oriente. E era comum entre os povos antigos. A cultura indígena nas Américas também está repleta de pedras sacras, assim como as tribos africanas.

Na metafísica das rochas, a finitude humana encontra na matéria natural uma ponte para a eternidade. Ou a carga de culpa e sofrimento levada vida afora. Ou ainda, a inspiração para o foco necessário à meditação e à revelação. Pode ser também fonte de conduta ética, na imobilidade da crença, do valor e do costume que estão em seu lugar, e de lá não saem nem com a gota.

19.1.12

O repertório de cada voz


O canto vocaliza o que o corpo se acostuma a calar


Assim como de cada mão sai um traço, de cada olhar um chamado, de cada passo um caminho, em cada pessoa há um som. A vida dos personagens de histórias reais se comprime no tom que acumula os anos. Na expressão do rosto fatigado ou sereno que lembra muito mais do que a letra de uma canção.

Ele entoa segurança, ela, decepção. Outro não esconde a vergonha, aquela não disfarça a paixão empacada no passado. Orgulho estampado numa face, e o arrependimento, feito fino véu, recobrindo tantas. Momentos recuperados duelam com tempos perdidos.

A narrativa musicada parece ganhar peso, enquanto alivia a carga de quem canta na expiação sem pecado, na confissão repetida como um refrão. A culpa é tragada por um sorriso, na dor que se cumpre sempre que escuta a ilusão redimida.

A palavra cantada vocaliza o que o corpo se acostuma a calar, ou não exprime na forma que a música permite. Na dimensão que a música admite. Na afinação com o sentimento que a voz subitamente atinge.

Na respiração alterada em novo sentido a emoção encontra a memória que a explica. Da matemática nas notas da escala emerge a razão acolhida encolhida pelo silêncio do hábito.

Solta a garganta que chora antes da primeira lágrima cair. Solta o verso conhecido que em todas as vozes é verso diferente. Solta o instante que ressoa e abarca por inteiro o presente.

Canta do jeito que sabe, o fôlego da poesia, no repertório do sopro de cada voz.


As canções (Brasil, 2011)
Documentário de Eduardo Coutinho.



5.1.12

O fim de uma "guerra estúpida"


Soldados americanos no Iraque: a linha da insensatez


Levou mais tempo do que o candidato Barack Obama esperaria do presidente Obama: mais de oito anos depois de iniciada, e decorridos três quartos do primeiro mandato do democrata, a ocupação militar do Iraque pelos Estados Unidos chega ao final. Alvo de crítica ácida na campanha presidencial norte-americana de 2008, e de praticamente todas as nações do mundo desde o princípio, em 2003, sob o apoio do ex-presidente George Bush, filho, do primeiro-ministro britânico Tony Blair, e a desaprovação da maioria da plateia global, a presença de tropas estrangeiras em território iraquiano deixou um saldo de quase 120 mil mortos, dos quais apenas 4,5 mil americanos. Cerca de 1,5 milhão de refugiados foram criados. Sua maior serventia parece mesmo ter sido econômica: a de manter os contratos milionários da indústria bélica dos EUA, que totalizaram, na menor das estimativas, a bagatela de US$ 800 bilhões em gastos, ou próximo da média obscena de US$ 100 bi por ano. Há quem faça a conta de que a guerra não saiu por menos de US$ 1 trilhão.

Muito longe de atingir os objetivos de pacificação e estabilização prometidos por Bush, a retirada das tropas é quase a capitulação melancólica de uma potência bélica que, de outro modo, poderia se considerar desocupada. O ataque verbal ao uso da força como estratégia de política diversionista foi veemente em 2008 pelo então candidato à presidência Obama, que chegou a chamar a situação no Iraque de “guerra estúpida”. Infelizmente, uma vez no poder, Obama não teve força política para impedir que a estupidez continuasse ao longo dos últimos três anos, ceifando vidas e semeando o ódio de maneira insana e desnecessária.

Bush aproveitou-se do clima tenso causado pela derrubada das Torres Gêmeas do World Trade Center, em 2001, para invadir o Iraque sob o pretexto de que Saddam Hussein abrigava a Al Qaeda e escondia armas químicas de destruição em massa. Nenhuma arma desse tipo foi encontrada. A deposição de Saddam não levou calmaria ao país. Pelo contrário, incitou a desavença entre grupos que se sentiram mais próximos do controle, devido à ausência do ditador. A partir daí, o discurso oficial ianque abraçou o mantra da pacificação interna, que até hoje não foi alcançada. Em 2007, no auge desse discurso, um ano antes da campanha presidencial que elegeria um Obama opositor da ocupação, os EUA tinham 170 mil soldados espalhados em mais de cinquenta bases no Iraque. O cheiro de sangue foi intenso, mas a ordem propalada perdeu para o caos que os invasores ajudaram a instalar.

Como chefe de Estado, Obama divulgou mensagem em agradecimento ao sacrifício de milhões de homens e mulheres durante tanto tempo. Pela contundência do ex-senador na época em que a Casa Branca ainda era um sonho, é plausível imaginar a decepção do presidente americano com a demora em conseguir cumprir a própria promessa. Quando assumiu, havia 150 mil soldados no Iraque, e o número veio decaindo até a última leva, de 40 mil. A retirada teria que se feita em termos responsáveis, justificou Obama. Que seja uma vitória definitiva do bom senso sobre a estupidez.

Editorial do Jornal do Commercio, 5/1/2012.

Foto: Anja Niedringhaus/AP

4.1.12

A pauta dos vereadores


O direito à informação pelos cidadãos é tão constitucional
quanto o aumento de salário dos parlamentares


Era tão certa a polêmica, que a direção da Câmara escolheu votar e aprovar o aumento salarial de 62% para os parlamentares da próxima legislatura, a partir de 2013, nos estertores de dezembro, a um passo do recesso, na esperança de ficar a muitos passos da reprovação pública. Mas em tempos de redes sociais, o tiro de esperteza pode ter saído pela culatra. Ainda que o cálculo do desgaste tenha levado em conta o calendário de festas e de férias para minimizar a chiadeira, a reação nos meios de comunicação – incluindo a internet – elevou o tom da indignação acumulada, apenas alguns dias depois do escandaloso auxílio-moradia retroativo dos deputados estaduais vir à tona.

Nos dois casos, sobressai o distanciamento da transparência e da firmeza na defesa de posições, quando se trata de interesses particulares embutidos no interesse de grupo. Os poucos que se manifestam apelam para a legalidade do recebimento dos recursos, parecendo fazer-se de surdos perante o grito dos que reclamam. A controvérsia do legal acima do moral é antiga, e não conduz a lugar algum, além do beco sem saída da decepção e do desencanto que joga os políticos num mesmo saco de baixa valia. Nesta perspectiva, o espírito corporativo na política é tão daninho quanto em outras atividades, com o agravante de bater de frente com o interesse coletivo, o qual suas excelências são pagas para servir em primeiro lugar.

Se o aumento de salário de cerca de R$ 9 mil para R$ 15 mil é legítima e democrática, como qualificou o vereador e ex-presidente da Câmara, Múcio Magalhães, por que proceder à sombra, sem trazer os números e a justificativa de maneira franca e honesta para o conhecimento e manifestação da população? Democracia à sombra lembra autoritarismo, configura prática obscurantista que em nada honra a tradição da política pernambucana.

Enquanto a Lei Orgânica do Município assegura aos vereadores o direito de fazer jus à remuneração de até 75% do que ganham os deputados estaduais, o cidadão comum tem o direito de opinar sobre a questão, inclusive opondo argumentos ao reajuste salarial máximo, no limite do teto. Aliás, o direito à informação é tão constitucional quanto o aumento máximo de salário possível dos parlamentares, e um não deveria prevalecer ao outro. É por isso que a indignação crescente tem gerado ampla repercussão, até com abaixo-assinado virtual em favor da anulação da medida. Em dois dias de circulação nas redes sociais, o documento ultrapassou a marca de cinco mil nomes, e deve ser encaminhado nos próximos dias para o Ministério Público.

Apesar da repercussão negativa e do equívoco indefensável da manobra dos vereadores, é preciso separar a função do Parlamento de eventuais descaminhos trilhados por seus momentâneos integrantes, como ressalvou o cientista político Michel Zaidan, na última quarta-feira, em entrevista a Aldo Vilela na rádio CBN. Quem sabe, no retorno ao trabalho, a pauta da cidade volte à pauta da Câmara, para que o salário de detentores do voto não abra o ano eleitoral como motivo de generalizada descrença.

Editorial do Jornal do Commercio, 04/01/2012.

Foto: Roberto Pereira/D.A Press

1.1.12

Entre dois tempos


Fim da contagem regressiva em Londres


No último dia do ano, a celebração reúne o passado e o futuro. O possível se torna visível, o horizonte se torna maior em sua aproximação máxima, delineando os contornos do desejo sem traços de dúvida. Caminhos cruzados e eventuais percalços vão para a sombra da memória, enquanto a imaginação providencia a queima de fogos para iluminar os próximos passos, de percurso nítido e evidente.

No primeiro dia do ano, a ressaca separa o futuro e o passado. Toda possibilidade volta à invisibilidade, retomando a condição de potência não realizada. O horizonte se afasta outra vez, levando o que parecia definido, devolvendo a suspeita sobre o que se esconde invariavelmente a seguir.

A sensação do futuro trespassado – consumado ou esfumaçado pelo presente – é contraditória: ao invés da novidade, o que se foi é o que se apresenta, reativado pela travessia da fronteira entre dois tempos.

Antes da contagem regressiva, olhares brilham a espreita de qualquer surpresa. É quando o sonho encontra os olhos abertos e aproveita. Com a primazia da visão na fronteira temporal, a vitória, a beleza ou a redenção sonhadas aparecem com avidez. A certeza de que tudo está para mudar embala a espera, em ritmo de vigília por um nascimento.

Depois dos abraços e das lágrimas, dos gritos e das explosões que iluminam a meia-noite, a surpresa se dissipa como a pólvora ao vento. A certeza de que tudo estava para mudar, de repente silencia. E as ilusões desenhadas no entre-tempo do Ano Novo regressam ao ventre do céu noturno. O futuro foi lançado mais a frente, está mais distante, agora que um ano ficou para trás.


Foto: Reuters.

27.12.11

Auxílio escandaloso




Monumento na Praça dos Três Poderes, em Brasília


O ano político pernambucano terminou com uma bomba de origem retroativa e potencial efeito sobre as eleições municipais. Parece uma aberração, tamanha a dimensão do absurdo: deputados e ex-deputados estaduais estão recebendo parcelas de dinheiro referentes a um “auxílio-moradia” a que supostamente fariam jus, no mandato compreendido entre os anos de 1995 e 1998, mesmo morando na capital. A lista de beneficiados é extensa e conta com expoentes dos principais partidos, inclusive dois pré-candidatos bem colocados nas pesquisas de intenção de voto para a disputa majoritária no ano que vem, como divulgou o blog Acerto de Contas, primeiro a levantar o tapete da triste história.
A vantagem financeira extra já vem sendo paga há três meses, o que significa que nenhum deles pode alegar que não sabia do que se tratava. Se alguém alegar, vai soar no mínimo estranho. Serão 36 parcelas que podem somar R$ 354 mil para cada um, ou até mais. A naturalidade esboçada em algumas reações é sintomática de pelo menos duas graves distorções, que afastam o senso comum do exercício do poder e atiram no lixo o conceito dos políticos.
A primeira seria o descaso com a opinião pública, como se não fizesse qualquer diferença mais uma notícia “caluniosa” nos jornais. A segunda seria o indício do mau hábito nacional, de lidar com o dinheiro do contribuinte ao bel prazer, desprezando as imensas necessidades coletivas que se acumulam em detrimento da cobiça pessoal ou em favor de projetos partidários. “É uma esculhambação. Um deboche que depõe contra a imagem do Legislativo”, definiu em entrevista ao JC o deputado Paulo Rubem, que não aceitou o acréscimo.
A Assembleia Legislativa divulgou nota oficial para justificar a distribuição de benesses respaldada na lei de isonomia salarial entre os Poderes. No entanto, o véu da legalidade não esconde o abuso e a indignidade de um fato merecedor da repulsa da sociedade. Da parte da instituição parlamentar estadual, é lamentável que a Casa de notável tradição e tantos serviços prestados a Pernambuco considere o repasse de recursos desta natureza com isenção de questionamento.
Depois do famigerado “auxílio-paletó” e das suspeitas subvenções a entidades filantrópicas de fachada, a Assembleia deveria ter entendido que a população não tolera a falta de transparência e o abuso na gestão dos recursos. Por outro lado, da parte dos nomes envolvidos, além de lamentável, o recebimento do dinheiro extra a título de auxílio-moradia configura uma atitude imoral – e para o cidadão comum, decepcionante. A OAB encaminhou à Assembleia pedido de informação sobre o caso, e promete acompanhar de perto seus desdobramentos.
Como ressaltou a colunista do JC, Sheila Borges, “o que se espera de homens públicos são bons exemplos”. O auxílio-moradia retroativo, na linguagem popular mais uma “mamata”, dificilmente é inspirador de boas práticas. Trata-se de uma chacota com a honestidade que teima em vigorar no País, onde a ética do dinheiro fácil vai se tornando a cada dia menos surpreendente. O estarrecedor se dilui no que há de deprimente no episódio, atirando às costas dos eleitores a responsabilidade pelo futuro.
O pior é que o auxílio escandaloso nivela por baixo a elite detentora de altos cargos no serviço público nacional. Nos últimos anos, integrantes dos três poderes têm se esforçado para se superar nos privilégios que se concedem, em mútua anuência, aprofundando, sem qualquer desfaçatez, o poço da desigualdade que cerca a sexta economia do mundo.


Foto: Oliver Ross/www.chocolate-fish.net


23.11.11

Natalie e a imagem da beleza




Toda beleza é momentânea, desafia o instante,
insinuando a duração utópica que desponta no belo



Dias atrás, a notícia de reabertura das investigações sobre sua morte ganhou destaque na internet, na TV e nos jornais do mundo inteiro. Assim, trinta anos depois de deixar-nos, sua lembrança meiga mais uma vez nos arrebatou. O retorno à mídia provocou uma avalanche de acessos e exibições de poses regatadas. O brilho de Natalie Wood estava de volta. Uma multidão de olhares foi atraída pela imagem desaparecida há tanto tempo, como se algo de eterno pudesse, através dela, ser vislumbrado.

Pena que a imagem recuperada não recupera a beleza perdida, assim como a atriz que salta do baú midiático não pode ser devolvida ao convívio de fãs, dos amigos e da família. Reforçando a afirmação proustiana de que a beleza das criaturas humanas é diferente da beleza das coisas, o retorno de Natalie Wood às telas e às manchetes também serviu para ressaltar que a imagem da beleza é a beleza imaginada. Foi por via da imaginação ideal da forma feminina, ainda encontrada nela, que bastou se atiçar a memória do público – e a curiosidade dos que não a tinham visto antes – para que emergisse facilmente a admiração recordada de sua graça. Um encanto antigo, reaceso, um deslumbramento coletivo, mediado e multiplicado, repartido feito pão aos famintos do belo.

Decerto o motivo do reencontro desperta a nostalgia em torno da estrela de Holywood. E quem sabe a nostalgia de uma época mais simples, em que a aparência ideal não sumisse num emaranhado de máscaras – e faces tão preparadas que parecem mascaradas, ansiosas, à espreita de luz e atenção. Mesmo que ambas, quando cheguem, raramente primem pela permanência.

Apesar da ilusão, o fato é que nem as deusas do cinema recebem o dom da beleza eterna. Toda beleza é momentânea, desafia o instante, insinuando a duração utópica que desponta no belo. Tentar reprisá-la é tentar reeditar o instante que ficou para trás. Por sua vez, a mimetização imagética recorre à união da memória com a imaginação, à melhor maneira platônica. Novamente Marcel Proust: a beleza não é senão uma série de hipóteses.

Acreditamos hoje que Natalie Wood era linda, e dificilmente pensaremos o contrário ao mirar suas fotos e seus filmes. Mas a beleza da imagem está menos no que revela, e mais no que sugere. A beleza que está além da imagem – e se inscreve no campo de visão de uma verdade que se oferece – compartilha o alcance dos olhos com o desfrute do tempo vivido. O que é algo, por enquanto, impossível de reproduzir.

10.11.11

O pulso e o olhar




Toda contagem do tempo é contagem regressiva






É como algo “desperdiçado, dissipado suavemente”, que ela goza do muito tempo que tem. O desperdício suave que se dissipa – imagem de Hermann Hesse em “O lobo da estepe” – revela a culpa de quem gasta o que não se acha no direito de possuir. Para expiar o pecado sem perdão, deixa o tempo exagerado em sua carne escorrer sem pena entre as mãos. E mesmo assim não se desata da impressão de que o futuro é um local distante, para onde, por mais que corra, irá demorar a chegar.

Olha para o pulso – do tempo contado, acumulado e perdido... toda contagem do tempo é contagem regressiva – e imagina o próximo perigo: a duração prolonga a ansiedade e o tédio, e os renova sempre que ela fita os números girando no braço, na corrente eterna sob a pele. A liberdade, se existe, é fora do tempo, pensa, enquanto antevê o minuto seguinte, a semana que vem, o ano adiante.

Todo indivíduo é um relógio diferente... então como o tempo poderia nos fazer iguais? Ela queria viver num mundo em que se partilhasse o tempo comum, e fosse dispensado o conceito utópico da eternidade. O que é eterno, além da prisão do tempo? Sair dessa prisão seria sair da ideia, subitamente inútil, do infinito temporal. Sem a medida, que restaria do que se mede?

Ela aposta que o que sobra é a poesia sem escala, inconsumida, como o vazio incompreendido entre as estrelas, o vácuo entre astros que se atraem. Quanto tempo dura um olhar? Como se conta o instante relembrado inúmeras vezes, retocado pela memória e incorporado à imaginação – que não se rende à contagem comum, ao cerceamento ilusório do grilhão inexistente?

É preciso vencer a ilusão. Ela decide estancar o tempo, deter o império da cronocracia. Tomar o poder do tempo, assaltar os seus bancos, desafiar os mesquinhos guarda-costas, arrombar os cofres cheios de tempo sem uso... e distribuir tudo para os sem-tempo, os pobres-coitados que esmolam por horas velozes e dias curtos, que logo se vão.



O preço do amanhã (In time, EUA, 2011)
Direção: Andrew Niccol.
Com Olivia Wilde, Amanda Seyfried e Justin Timberlake.

5.11.11

Fertilidade do caos



O caos não suspende a ação por causa de uma entre outras ordens possíveis



A paixão ganha razões elementares no contraste com a privação dos prazeres, a dor prolongada e a perspectiva de morte prematura que fazem da guerra o cenário perfeito para a celebração da vida.

E a razão ganha argumentos apaixonantes diante do quadro desolador, do desespero reinante e das ruínas que nascem por todos os lugares em que a esperança se defronta com a destruição e a perda.

É do realismo chocante que brotam as raízes do delírio. É da brutalidade que se oferece com insistência à vista que a ternura se impõe necessária. É da penitência generalizada pelo terror que o perdão aparece sem esforço.

A culpa se espalha na poeira da devastação. Escombros e cicatrizes, todavia, não ficam totalmente para trás. O caminho também se faz do tropeço em escombros, e há feridas reabertas no menor passo adiante.

Pode demorar até que a redenção traga a reboque a coincidência entre o romance e a paz, unindo a liberdade de fora com a de dentro, selando o encontro do luto com um novo caminho, que surge surpreendente, confortante, sem explicação.

Sim, o caos cria mundos, novos sentidos, e até recupera antigos – mas o perigo da fertilidade caótica é que ela pode continuar indefinidamente. O caos não suspende a ação por causa de uma entre outras ordens possíveis.

O caos não para de semear e matar, como guerra sem origem sabida, nem desfecho previsível.



Esses amores (Ces amours-là, França, 2010)
Direção: Claude Lelouch
Com Audrey Dana e Dominique Pinon.

6.9.11

A eternidade suspensa




O tempo passa tão devagar que é como se não houvesse tempo, ou como se a sua percepção fosse tão limpa, como se fosse o tempo sólido, visível, envolvendo as coisas diante dos olhos, cada instante preso no olhar de um tempo em pura distensão.

Mas do fundo da visão cristalina não sai a vertigem do fim de tudo, que se sabe e se esconde desde o começo. Feita permanente, a vertigem não assusta como antes. A presença do que não traz sentido provoca a sensação de vazio preenchido, e a vertigem passa a ser não mais o que se teme enxergar, e sim, um modo cego de observar o mundo.

A velocidade transitória é retirada. A paralisia mobiliza os músculos, como se o corpo tomasse consciência da mente. A estupidez transitória é retirada, sobrando o estupor da razão ausente.

E o que se eternizava, sob a confiança monótona dos dias ligeiros e das horas intermináveis, dos segundos inapreensíveis e dos anos mal recordados, o que se eternizava em hábitos, credos e ritos dirigidos à eternidade, se despedaça.


Melancolia (2011)
Direção: Lars von Trier
Com Kirsten Dunst e Kiefer Sutherland.

20.5.11

De porta em porta



O idealismo romântico despreza a natureza do ser


É uma noção recorrente a de que um plano superior estabelece as coordenadas que seguimos em nossas vidas, quer entremos por uma porta ou por outra, como se houvesse sempre uma explicação convincente para erros e acertos pelo caminho. E assim confundimos vontade e necessidade, acaso e determinação, o começo de uma jornada com seu imprevisível final.

Destino é aquilo que se conta retroativamente, mas pode ser confortante pensar que tudo está definido, escrito em algum caderno psicodélico, quiçá rabiscado pelas estrelas na hora do nascimento, previsto por algum oráculo morto muitos anos atrás.

Da mesma forma, imaginar sujeitos magníficos escolhidos para um dado curso especial na história do mundo, capazes de guiar a maioria desorientada, é um mecanismo propulsor de enganos, perpetuados rigorosamente pelas doutrinas da salvação. O líder é ungido tanto por um poder invisível, que representa, quanto pelo desejo das massas, que nele crê. O messianismo, por outro lado, se exercita na esperança de que tudo mudará... esperança esfumaçada tão logo a profecia se realize e precise, com urgência, ser substituída.

No carrossel das cartas marcadas, a tradição romântica acompanha o novelo de relações impossíveis que se descobrem, por isso mesmo, inevitáveis, girando da improbabilidade para o grau de possibilidade máximo. Um casal verdadeiro é aquele predestinado, de preferência rodeado de circunstâncias que reforcem o impacto da ordem longínqua no aparente caos das ligações humanas.

O amor, neste cenário montado para uma performance esperada, surge não como surpresa, não como espanto, não como encanto que subverte a montagem estabelecida. O que se reconhece no outro – a imagem de si – reflete um brilho de eternidade que só pode ser visto no espelho das histórias controladas desde a origem, imunes à ação deletéria do tempo e amparadas em firmes convicções.

A felicidade ideal dos contos em que o romantismo domina, vinga e vence, esconde delimitações arbitrárias que desprezam a natureza do ser, lançado ao risco e às variações da existência desde o nascimento, impelido assustadoramente ao idêntico desfecho de toda matéria no universo: decaindo e se decompondo para se recompor adiante, à mercê de um relojoeiro cego (na imagem criada por Richard Dawkins para a evolução).

O determinismo que se espalha em tantas direções faz de conta que existe sempre a porta certa, a pessoa certa, a carreira certa, a hora certa. Mesmo que haja, só se sabe olhando para trás. Enquanto o tempo consome e é consumido em nossa pequena cadeia de acontecimentos, o fato é que as portas não cessarão de se mostrar, uma atrás da outra, chamando para o destino que nunca está lá.


Os agentes do destino (The adjustment bureau, EUA, 2011)
Direção: George Nolfi
Com Matt Damon e Emily Blunt.
Baseado em conto de Philip K. Dick.

5.3.11

Espelho d'água





Mesmo de olhos fechados o que é visto é o intocado.

O corpo enxerga tão perto que pode não enxergar nada.

A imagem do tato e a da retina se cruzam, num mergulho em água cristalina.

Porque são mundos distintos, o corpo e a visão.



O que a gente vê no espelho espanta.

Quanto mais luz pior. O espelho parece mentir menos na penumbra.

O corpo faz outra imagem de si, enquanto a vista compõe a face do mundo.

De uma janela do corpo, o que não é corpo se forma.



A visão de dentro se afasta no exterior sumidouro.

Mantemos o rosto fora da água.

No limiar que separa da consciência o real.

O corpo está imerso no sonho, ou o sonho diante do olhar?




Foto de Toni Frissell, no álbum de Juliana Lombardi.

21.2.11

O desfrute da droga amorosa




Modo de estar ou de ser, a paixão parece mesmo uma substância aplicada no corpo, pronta para alterar o juízo... Muda a percepção de tudo. Como saber o que a razão recusa na inundação de um cérebro apaixonado? Como fugir da corrente que define o sentido de cada vão racional por onde passa? O que fazer para levar o pensamento a uma clareira onde se possa vê-lo por inteiro, onde o pensar não seja inútil?

A paixão dita o seu curso até o último suspiro. Até a última gota da inundação química que paralisa o organismo em único propósito. Sem pausa para a lucidez, sem hiatos que sirvam de ilhas para os desesperos da reflexão.

Se o medo insinua um atalho de volta, a sombra generosa da paixão ainda convida. O atalho teria sabor de renúncia. Que fique a razão à deriva, na rota de certa, ainda que breve, ventania.

Abandonar a torrente de sensações, pra que? O horizonte é distante. O futuro continua o presente. O passado, ou é presente derramado, ou não é nada. A paixão é a grande explosão de significado, o nascimento que conta. A ordem cronológica se desfaz diante da desordem que importa.

A derrocada da paixão enquanto cumpre o seu destino é imersão em sofrimento. A estupidez funciona como campo de energia de proteção contra a intrusão da dor. A paixão é uma estupidez necessária para a fruição da paixão. E o destino se cumpra, até o fim do prazer, durante a eternidade do encontro inaugurado com a mesma intensidade a todo apaixonante instante.

O tempo da paixão não se esgota no temor de hipóteses de agonia, mas só começa a estancar no flagrante de entediante reprise. Quando a eternidade, ao invés de perpetuação de benévola dependência, começa a figurar como repeteco sem gosto. A paixão acaba quando dá certo, e o efeito do vício se esgota. Se der mais certo, é porque o amor aprende a se desvincular da própria droga.

Como modo de estar, quase toda paixão tem hora marcada e prazo de validade. Como modo de ser, é distração cambiante, no desfrute intermitente do tsunami passional.


O amor e outras drogas (Love and other drugs, EUA, 2010)
Direção: Edward Zwick
Com Anne Hathaway e Jake Gyllenhaal.

22.1.11

Realidade seduzida



Entre os motivos fáceis para gargalhar, um motivo fácil para sorrir.


O papel é secundário, mas a presença rouba a cena quando a beleza aparece, despretensiosamente. Como se não fosse importante. Como se não mudasse o eixo das atenções, e não perturbasse o curso da narrativa. Como um silêncio que abre nova conversa, apresentando a justificativa para falar de outra coisa. Mesmo que não troque o assunto, ela impõe nova perspectiva, enquanto o pensamento vai cedendo espaço cada vez maior à contemplação: diante do belo, a expressão do posto aos olhos perde status para a expressão do susto...

Uma participação pequena na trama não retira a impressão de permanência da personagem marcante. O inverso acontece com frequência. Para dar peso às aparições de poucas linhas, convidam-se nomes famosos para conferir charme aos instantes cruciais da história. Coadjuvantes de luxo dispensam explicações porque atraem a curiosidade do público. Ao alterar momentaneamente o foco, e descentrar o mundo dos protagonistas, indicam rumos alternativos, caminhos paralelos, e até raízes diferentes daquelas que supostamente conduzem o relato até ali.

A realidade é transfigurada pela beleza a qualquer hora – ou pelo menos pode sê-lo, rendida à súbita ou repetida sedução. A realidade não resiste muito tempo, de toda forma, agarrando-se à beleza a fim de não naufragar em si mesma. Ou agarrando-se à possibilidade criada antes que ela desapareça.


Entrando numa fria com as crianças (Little Fockers, EUA, 2010)
Direção: Paul Weitz.
Com Robert De Niro, Ben Stiller, Owen Wilson, Dustin Hoffman, Barbra Streisand e Jessica Alba.


13.10.10

Bom é aproveitar




Uma viagem que não se completa pode ser extenuante até o momento em que se percebe e se sente o gosto puro de viajar. Mesmo sem sair do lugar, já que não é sempre o corpo externo que necessita do movimento, da variação.

Por isso o ensinamento inclui o sorriso do fígado: da alma do corpo que se retrai. A meditação não vale apenas para a mente aquietar-se. Vale para o corpo inteiro sair do declive e achar a justa velocidade no percurso que não tem volta.

O equilíbrio humano é sutil e enganoso. Há quem se equilibre no alto do abismo, há quem prefira a segurança de ondas na beira do mar. O engano está em supor o equilíbrio seguro, ou tomar uma zona de conforto pelo equilíbrio final.

Escapar do conforto é uma busca clássica, no entanto, que também não garante a jornada tranquila... Estar em constante fuga, e em eterna manutenção, é próprio do homem - da insatisfação do ser que não se cansa de estar atrás de si mesmo, de experimentar os prazeres, as dores, os traumas e alegrias de uma travessia que é feita, de uma forma ou de outra.

Através do tempo, e de cada um, caminhos se formam e se cruzam, aqui ou em outro lugar. E à semelhança do desbravamento de mundos e do deslumbre de novas paisagens, o primeiro passo é pedido a quem quiser aventurar-se no vasto repertório de imagens, direções, paladares e transcendentes ligações possíveis durante toda a viagem - que todos querem, mas nem todos sabemos ou podemos aproveitar.


Comer rezar amar (Eat pray love, EUA, 2010)

Direção: Ryan Murphy
Com Julia Roberts e Javier Bardem.

26.9.10

Partido da opinião pública




Editorial do Jornal do Commercio

A manifestação promovida pelo Partido dos Trabalhadores, sindicalistas e partidos aliados na última quinta-feira, contra o que se chamou de “golpismo da mídia”, extrapola o âmbito eleitoral, apesar de convocada neste momento. Irritados com a sucessão de notícias sobre as denúncias envolvendo a ex-ministra da Casa Civil Erenice Guerra, ex-assessora da candidata palaciana à sucessão de Lula, Dilma Rousseff, os manifestantes coroaram, com o evento, uma série de declarações infelizes feitas nos últimos dias a respeito do tema.

O ex-ministro – e quem sabe futuro – José Dirceu foi o primeiro a disparar contra o estado de direito que o transformou em réu do mensalão, dizendo que “o problema no Brasil é excesso de liberdade de imprensa”. Na mesma linha, o presidente da República afirmou que “o povo mais pobre não precisa de opinião pública. Nós somos a opinião pública”. Para Lula, jornais e revistas tomam as dores dos virtuais derrotados e se comportam como se fossem um partido político. Na ótica do líder petista e chefe da Nação até 31 de dezembro, o fortalecimento democrático atrelado à liberdade de imprensa só parece ser válido se estiver isento de críticas – o que seria a negação do princípio de independência que deve pautar a livre expressão em qualquer país do mundo.

O secretário de comunicação do PT, André Vargas, ratificou as palavras de Dirceu e Lula. “Achamos que isso pode influenciar a eleição. Não podemos esperar isso acontecer”, disse, referindo-se aos editoriais que estariam “muito agressivos” na cobertura do escândalo da Casa Civil. A manobra diversionista que ataca os emissários de notícias desagradáveis à cúpula partidária não é novidade na história petista. É quase um expediente de manual: houve denúncia, primeiro dá-se a vitimização dos suspeitos, e em seguida, tira-se o foco do mérito para fazer de alvo os canais de comunicação.

O que nos deixa mais preocupados é a elevação do tom de guerra contra a imprensa ao longo do tempo. Quanto mais o PT permanece no poder, menos a agremiação se mostra confortável com o funcionamento das instituições cujo dever é prezar pelo aperfeiçoamento democrático. Se os casos de corrupção que afetam o partido e o governo não passam de “invenção da mídia”, porque todos os principais suspeitos foram afastados de seus cargos, desde 2005, incluindo José Dirceu e Erenice Guerra? Sintomaticamente, a frequência com que se tem tratado da questão da liberdade de expressão no Brasil é incompatível com um ambiente democrático amadurecido.

Ainda que o calor da disputa tenha afetado a emoção presidencial, nunca antes na história de seu mandato Lula foi tão contundente. Para ele, a verdadeira opinião pública dos pobres é aquela veiculada pela voz inconfundível, exclusiva, da autoridade do governo. O que o presidente não diz é que, sem imprensa livre, não há opinião pública – pois a imprensa tutelada, restrita à redação oficial, produz apenas a opinião de governo.

Além disso, vale lembrar que a opinião pública não vem somente do que dizem os meios de comunicação, mas repercute o que pensa parcela importante da sociedade. Ou o PT teria coragem de afirmar que entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também são inimigas que precisam ser derrotadas? Em atenção aos fatos e em resposta à urgência ética que passa à margem do PT e ultrapassa a agenda eleitoral, foi lançado, um dia antes do evento petista, um manifesto em defesa da liberdade e da democracia, assinado por juristas e personalidades como o cardeal dom Paulo Evaristo Arns, Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior, Ferreira Gullar, Carlos Vereza, e o ex-secretário da Receita Everardo Maciel. Com o nome de Se Liga Brasil, o documento traz um alerta contra o autoritarismo latente nas propostas restritivas do exercício da atividade jornalística e da liberdade de opinião.

Passada a estação eleitoral, esperamos que o presidente e o PT recuperem o bom senso, e se convençam de que o partido da opinião pública não tem sigla, nem dono, sendo a pluralidade e a capacidade de crítica seus principais atributos.

Foto: Último Segundo/iG
 

18.9.10

Queda na Casa Civil



Editorial do Jornal do Commercio

A saída de Erenice Guerra do governo federal, por força das circunstâncias, não pode deixar de ser devidamente analisada em detrimento do pleito eleitoral que se aproxima. Pelo contrário, é por causa das eleições gerais que o episódio precisa ser posto à luz da objetividade, sem as lentes de aumento de casuísmos.

Neste sentido, importante é ressaltar o papel que coube à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). No dia anterior à renúncia forçada, o presidente nacional da entidade, Ophir Cavalcante, defendeu o afastamento imediato de Erenice, pelo bem das instituições e das investigações. A manifestação isenta e veemente da OAB em prol de valores éticos na política é um bom sintoma de amadurecimento democrático. Sua participação na redemocratização, desde 1985, merece capítulo à parte em nossa história recente – e não seria diferente agora, nas graves denúncias contra a ex-ministra, seu filho, marido, irmãos e círculo familiar.

Quando organizações como a OAB entram em cena, a propósito, logo sucumbem as tentativas de se desqualificar certas denúncias como mero produto de uma mídia engajada. Apenas poucos dias atrás, o Partido dos Trabalhadores, o Palácio do Planalto e a candidata Dilma Roussef faziam questão de detonar o mérito das notícias, como se fossem balões de ensaio arquitetados pelos concorrentes. A contundência dos fatos, no entanto, elevou o volume das críticas nos principais órgãos de imprensa do País, culminando no posicionamento firme, em tom de cobrança, do presidente da OAB.

A gravidade do escândalo que toma o governo Lula em plena transição eleitoral se fia na suposição de que o balcão de negócios da politicagem voltou a se instalar com desenvoltura, servindo-se do privilegiado ponto de apoio e articulação da Casa Civil – como nos tempos de José Dirceu, denunciado pela Procuradoria Geral da República como líder da quadrilha do mensalão. Foi isso que levou a OAB e parcela dos meios de comunicação a aumentarem a pressão, diante da fratura exposta no círculo familiar de Erenice Guerra. Com ou sem eleições à porta, o Palácio do Planalto não poderia seguir fazendo de conta de que tudo não passava de factoide, e continuar eximindo-se da responsabilidade de dar uma resposta à sociedade.

O esquema de propinas flagrado na Casa Civil recorda a sistemática da República de Alagoas – como ficou conhecido outro famoso esquema de corrupção coordenado, no governo Collor, por Paulo Cesar Farias. Os indícios de momento estão longe de configurar, como escreveu Erenice em sua carta protocolar de renúncia, uma "sórdida campanha" dirigida à sua família. A diversidade de fontes e a identificação de novo foco do mal crônico que circula pelos corredores de Brasília contribuíram para tornar insustentável a sua permanência no cargo.

O escândalo da Casa Civil volta a revelar o perigoso fio solto de um Estado corrompido, corruptor e corrupto, em que ideologia e patrimonialismo andam de mãos dadas. É verdade que é possível extrair algum peso da crise, sob a alegação de que nem o governo Lula, nem o PT inventaram o sórdido pecado que assola a nossa elite política. Assim como o atual governo não foi o único, neste quarto de século, a ostentar viciada máquina pública às voltas com suspeitas de desvios, comissões, superfaturamentos e outras maracutaias engendradas para assaltar o dinheiro suado do contribuinte.

Ocorre, todavia, que o viés político da crise não se encerra com a saída de Erenice Guerra. Até porque uma relação de afinidade profissional também entrou em crise – aquela que, desde a época do ministério de Minas e Energias, fez de Dilma Rousseff a principal protetora de Erenice no governo, tornando-a sua sucessora na Casa Civil. Tal relação solicita da candidata governista, favoritíssima nas pesquisas para suceder Lula, que ofereça o seu quinhão de respostas às perguntas no seio do escândalo.

A apuração das denúncias é necessidade premente. Mas a queda na Casa Civil demonstra ao menos que, no Brasil, o poder central ainda não é capaz de fazer ouvidos moucos ao clamor da opinião pública.

Foto: Agência Brasil.
 

13.9.10

Mimo na agenda cultural





Editorial do Jornal do Commercio

A sétima edição da Mostra Internacional de Música de Olinda (Mimo), encerrada dia 7, foi um grande sucesso de público. Este ano, a mostra cresceu em todos os aspectos: o número de atrações saltou de 27, no ano passado, para 39, houve expansão geográfica, com eventos também no Recife e em João Pessoa, e o público estimado durante os seis dias de programação pode ter passado de 100 mil pessoas. Além disso, a organização também diversificou apostando na exibição paralela de filmes de temática musical, juntamente com as palestras e oficinas. Até a repercussão do festival, que nesta edição homenageou o mineiro Wagner Tiso, foi maior, com cobertura da crítica especializada da Alemanha e da França.

O interesse da mídia internacional foi consequência direta da escolha dos convidados. Das 1.200 pessoas envolvidas na produção, 650 eram músicos. Alguns deles, consagrados no exterior, e pouco conhecidos do nosso público, como os pianistas McCoy Tyner e Mario Canonge, e ainda o guitarrista Mike Stern, vencedor de seis prêmios Grammy. Entre os convidados nacionais, nomes de destaque como o maestro Isaac Karabtchevsky, o pianista Jean Louis Steuerman, o cantor Tom Zé, Leo Gandelman, Egberto Gismonti, Dado Villa-Lobos e Carlos Malta deram mais brilho ao festival. Talentos regionais tiveram seu espaço, como Antônio Madureira, Ana Lúcia Altino e Leonardo Altino, o Conjunto de Cellos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), bem com as orquestras sinfônicas da UFRN e da cidade do Recife. A Orquestra Sinfônica de Barra Mansa, do Rio de Janeiro, foi a orquestra residente.

Nas Igrejas da Sé, da Misericórdia, do Convento de São Francisco, de Guadalupe, da Madre de Deus, ou na Praça do Carmo, as orquestras de música clássica e os grupos de jazz deixaram os ambientes lotados e o público emocionado com inesquecíveis performances. O que teve início modestamente, com cinco concertos, sete anos atrás, em pouco tempo rendeu os frutos esperados de uma boa ideia, capitaneada pela produtora carioca Lu Araújo, diretora do evento, e hoje consolidada na agenda do País graças ao apoio de grandes patrocinadores, como o Ministério da Cultura (MinC), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Companhia Elétrica do São Francisco (Chesf), além da Prefeitura de Olinda. O custo desta edição foi de R$ 1,5 milhão. Apesar do sucesso reconhecido, a Mimo enfrenta dificuldades para sua sustentação, uma vez que promove eventos gratuitos. “Ficamos numa gangorra para fechar os patrocínios”, afirmou Lu Araújo à reportagem do JC.

A proposta de utilização das igrejas como casas de espetáculos para shows e concertos musicais gratuitos não poderia ter outro destino senão o êxito obtido pela Mimo. Aproxima o público dos artistas, serve de vitrine tanto para monstros sagrados como para aqueles que estão buscando espaço, populariza a arte musical e ainda valoriza o patrimônio histórico representado pela bela arquitetura religiosa encontrada no Brasil. O investimento na expressão cultural em locais vocacionados para a arte se revela igualmente proveitoso para a economia. O turismo obtém ganhos importantes, com o aumento da taxa de ocupação de hotéis e pousadas, a movimentação gastronômica e o comércio no entorno dos pontos de realização dos eventos. De acordo com a Associação dos Empreendedores do Sítio Histórico, a ocupação média do setor de hospedagem foi de 85% durante a Mimo.

Por outro lado, a definição de um programa eclético, marcado pela mistura entre o erudito e o popular, parece ter sido a melhor opção para um evento com o caráter de atrações múltiplas e simultâneas. Os problemas isolados de acústica nos templos transformados em palcos, ou mesmo na distribuição de senhas para os espetáculos, não retiram da Mimo a excelência conquistada. A mostra evoluiu, alcançou o respeito mundial e caiu nas graças do público pernambucano. Merece a inclusão no nosso calendário cultural, com todas as honras de um evento bem concebido, bem montado e bem recebido pela plateia apaixonada por música da melhor qualidade.


 

12.9.10

Praça vazia





No início a aventura é solitária. A descoberta de si toma o roteiro da percepção: o cheiro do ar, o som das vozes, o tato, o paladar da nutrição. Tudo é assustadoramente simples. A vida parece simples a olhos recém-chegados.

Seguir o roteiro original é seguir só até o fim. A solidão por companhia é a única certeza em uma jornada imprevista. Sem outra rota: sem alternativa. O rumo mantido traz a ilusão de que se conhece o caminho. Assim é que cada um se integra à multidão, multidão que mal se nota por causa dessa integração, que reveste a solidão em várias faces.

Até que algo acontece no meio da rua. Algo que não existia, passa a existir. Como alguém que nascesse – fora de você.

No mar de gente à deriva em todo lugar, encontrar um náufrago não é difícil. O que não é fácil é sair da condição primeira que lhe põe a vagar sem destinação, acatar um destino vinculado à imprecisão de rota alheia, que não a sua.

Quando se diz que uma pessoa “saiu de si”, é porque está fora do prumo, descontrolada. Quando você se apaixona, é o que acontece. Você perde o controle, descarrilha. A paixão faz sair de si, provoca um descentramento. Viagem fora do corpo, atrás dos segredos de outra alma, por dentro e por fora de outro corpo.

Você sempre preferiu fugir. Você fugiu do lugar em que “as coisas são sempre as mesmas” – em casa, o lugar de origem, a vizinhança familiar – para criar o seu próprio lugar de imutabilidades. Enquanto permanece só, alimenta a ideia de que a rotina de família não o contém. Mas quando a solidão é quebrada, não tarda a ver a ameaça do lar arquetípico a rondá-lo, prestes a atirá-lo num poço de areia movediça.

Você não frequenta casamentos. As cerimônias, diz, deixam-no claustrofóbico. Qual a claustrofobia das cerimônias, senão aquela do que se impõe como escolha e, estranhamente, como destino do qual não há saída? O sufocamento e a sensação de estar numa prisão, que lhe afastam das cerimônias dos outros, servem de barreira para o caso improvável de sua sedução pelo infortúnio. Por isso você nunca irá se casar – para continuar livre. Não lhe ocorre que podem não ser, todos os elos, correntes.

Seu isolamento é visto como parte de sua força. Você habitaria o silêncio dos fortes, que não largam dúvidas pela estrada, rastros de sentimentos. Você se expressa pouco e mal. Aparenta não ter aprendido a sofrer, como se não tivesse sofrido. Acuado pela novidade, você chega a ser rude.

Você, que se enfurnava no quarto quando criança, preferiu morar longe de casa, perto da multidão – e agora faz parte dela, e isso lhe faz tão bem quanto antes, na infância, fechado em seu mundo, entocado no quarto. Hoje se entoca na rua, na boate, no shopping, no bar e no trabalho, intocado e intocável a qualquer hora.

Então você topa com alguém que olha diretamente pra você, no meio da turba, sem dar pinta de ligar para o disfarce ou o medo. Ela sorri de tudo e se mantém ao seu lado, mesmo quando está ausente. Ela toma seus braços enquanto caminham, finge não vê-lo tropeçando. Ela merece um jardim inteiro de cores floridas a cada sorriso que dá... e ela sorri tanto! E para seu espanto, ela não demonstra o menor esforço. Para ela, acompanhá-lo é natural feito respirar. A coragem que falta em você, nela sobra: a coragem de se entregar.

O problema é que ela não faz nenhum sentido. Ela é dádiva abandonada numa praça vazia – e a praça é você. Ao lado dela, você jamais sentiu-se tão bem. Por que a projeção desse estado antecipa uma duração de dor? Ela é incompreensível dentro do vazio que você montou pra você. A construção de uma vida inteira não ruiria facilmente. Nem com ela. Quando ela recosta em seus ombros, você pensa quase instantaneamente que está errado.

Ainda que tê-la presente fosse presenciar espetáculo incessante de poesia e beleza. Rapidamente ela passara a fazer parte de sua vida. A principal parte, mais importante e urgente do que tudo mais. Ela era o que você temia? Você não tem como saber. Antes de ir além, de prosseguir naquele êxtase inexplicado até o limite, antes mesmo de sequer tentar, você achou que não suportava.

Um pensamento claro lhe ilumina, “Não quero ser parte da vida de ninguém, nem que ninguém seja parte da minha”. O pensamento obscuro lhe cega. A razão supostamente de escudo, a paixão é convidada a ir embora. A razão é mera desculpa. No fundo, o que o guia no freio da desistência é um sentimento mais profundo de desamparo, que lhe atiça e lhe queima desde cedo.

Depois que ela se vai você se dá conta da merda que fez – ou que não fez. Servir-se do consolo da história que passa, reduzi-la a um episódio único, obviamente não lhe ajuda em nada.

Você aprende da pior maneira que encerrar-se em manias e rotinas, fazer-se refém de preconceitos, é perder tempo, desperdiçar chances para o inusitado, a virada, a mudança.

A aventura, pra você, é uma aventura empobrecida.



Issiz Adam (Turquia, 2008)
Direção: Çagan Irmak
Com Melis Birkan e Cemal Hunal.


 
 
 
 

11.9.10

Reforma de um monumento





Editorial do Jornal do Commercio

Devem ser concluídas, em junho do ano que vem, as obras de reforma iniciadas há cerca de três anos no prédio da Faculdade de Direito do Recife (FDR). Mais do que uma referência histórica, para muitos pernambucanos a velha faculdade é uma referência de vida. Parte expressiva de nossos atuais políticos, intelectuais e integrantes do meio jurídico passou pela Casa de Tobias - como é conhecida, graças a outro ilustre aluno, Tobias Barreto, e por onde também passaram nomes como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Barbosa Lima Sobrinho. Parte importante de nossa história foi, em suas bancas, concebida.

O anúncio da previsão do encerramento das obras é simbólico, uma vez que em 2011 o prédio completa 100 anos de inauguração. A recuperação de um dos mais valiosos patrimônios da história social brasileira tem se arrastado desde 2007, quando se comemoraram os 180 dos primeiros cursos de direito no País, criados por dom Pedro I nas faculdades do Largo de São Francisco, em São Paulo, e de Olinda, inicialmente no Mosteiro de São Bento. Somente mais tarde a faculdade seria transferida para o endereço que ocupa até hoje, na Praça Adolfo Cirne, na Boa Vista, no Recife, junto ao Parque 13 de Maio. Durante as celebrações, em 2007, a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sem recursos, foi obrigada a lançar uma campanha para mobilizar empresas, ex-alunos e a sociedade com vistas a arrecadar fundos para a restauração que se mostrava urgente. Já em 2004, a história representada pelo antigo prédio chegou, literalmente, a ruir: um pedaço do teto se desprendeu em plena aula, caindo sobre a mesa da professora.

Em 2008, graças ao patrocínio de mais da metade do projeto pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), foram levantados os R$ 3,5 milhões necessários para custear a empreitada, com intervenções nos forros, nas estruturas metálicas, no revestimento das abóbadas, na impermeabilização das calhas e nas fachadas do prédio. Segundo a diretora da FDR, Luciana Grassano, a entrada da Rua Princesa Isabel deve ficar pronta daqui a alguns meses, em novembro, e o salão nobre poderá receber os alunos na abertura do primeiro semestre letivo do próximo ano. Dois anfiteatros e a biblioteca ainda estão na agenda da restauração, preparando-se para o centenário da edificação.

Como relatamos em matéria publicada no último dia 29, o que está em vias de finalização é apenas parte de um longo trabalho. A fim de recuperar esquadrias, portas, pisos e adornos internos, um novo projeto se encontra em elaboração, para ser submetido à Lei Federal de Incentivo à Cultura. Somente depois de aprovado, a faculdade estará autorizada a captar recursos para executar essas obras.

A restauração de monumentos vivos como a Faculdade de Direito enfrenta a via-crúcis comum dos prédios tombados no Brasil. Em vez de termos uma política consistente de manutenção patrimonial, que privilegie a conservação contínua, observamos o cíclico clamor pela recuperação, quando os edifícios dão sinais de cair aos pedaços. O resultado é que a gestão da preservação por projetos emergenciais se torna muito mais caro para a sociedade, que financia o remendo milionário quando podia pagar menos pela prevenção. A deterioração dos prédios públicos é um triste exemplo da má administração que reflete o desrespeito pela história e pela tradição nacionais, que não foge à regra em Pernambuco.

Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1979, o prédio da FDR mereceria mais atenção do poder público, em suas diversas esferas. A história que se repete desde a década de 1980 é a da busca periódica de recursos financeiros para minimizar os estragos do desgaste do tempo, visíveis na deterioração acelerada de construções antigas. O cumprimento do cronograma de obras, em tempo para as festividades que certamente ocorrerão no prédio recuperado, em julho do ano que vem, deveria servir como ponto de partida para uma nova fase da política de conservação de um patrimônio que embeleza o Centro da cidade, e ecoa no interior da Faculdade de Direito do Recife.